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O desenvolvimento dependente e a contribuição de Peter Evans

1 INTERPRETAÇÕES SOBRE A BURGUESIA NACIONAL E O EMPRESARIADO

1.4 O DEBATE ACADÊMICO SOBRE O EMPRESARIADO INDUSTRIAL

1.4.3 O desenvolvimento dependente e a contribuição de Peter Evans

As obras de Fernando Henrique Cardoso (1964) e Caio Prado Júnior (1987) conseguiram levar para dentro de suas análises, revelando suas contradições, aquilo que Jaguaribe (1958) e Simonsen (1973;2010) já consideravam como elemento fundamental para a constituição da industrialização do país: a participação do capital estrangeiro. Mais conhecida como “teoria da dependência”, essa produção intelectual procura observar as relações entre Estado, empresariado nacional e capital estrangeiro no desenvolvimento econômico brasileiro.

Cardoso (1964) já apresentava uma série de associações e pactos entre o empresariado nacional e o capital estrangeiro, revelando as intensas imbricações entre os setores. O desenvolvimento dependente baseia-se na compreensão do desenvolvimento nacional por meio de seu condicionamento à expansão de outra economia num determinado contexto de expansão industrial. Isso significa que a própria industrialização de um país não se traduz, necessariamente, em sua independência, sendo necessário analisar a participação dos interesses estrangeiros na promoção do desenvolvimento industrial de uma nação. Ele se caracterizaria, portanto, pela associação entre capital internacional e nacional com forte participação do Estado, que desempenharia um papel de sócio ativo (EVANS, 1980). Essa associação resultaria, evidentemente, na acumulação de capitais dentro de países periféricos e

na geração de uma industrialização diversificada com impactos transformadores na estrutura econômica e social desses países – como foi o caso do Brasil.

Desse mesmo modo, as produções que se seguiram não perderam a referência quanto ao peso do Estado na consolidação da burguesia nacional, em diálogo intenso com as proposições elaboradas por Simonsen (0000) e Furtado (0000) no tocante à participação direta do Estado para o desenvolvimento industrial do país.

Nesse sentido, uma obra ainda pouco debatida nos tempos atuais é A tríplice aliança, de Peter Evans (1980). Publicada em 1977, a obra de Evans avalia a penetração do capital estrangeiro na economia brasileira e as relações entre as multinacionais, o empresariado nacional e o Estado, realizando estudos de caso e estabelecendo definições conceituais sobre o comportamento de cada setor no desenvolvimento dependente brasileiro.

Evans (1980) realiza uma análise lúcida da teoria da dependência, baseada na aliança entre multinacionais, capital nacional e Estado como pilar para o desenvolvimento dependente. O autor aponta que a industrialização da periferia não constituiu ameaça para os interesses do capital nos países de centro, ao contrário: o desenvolvimento dependente se apresentaria como uma das facetas do imperialismo em sua nova fase, no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Para Evans (1980), os elementos do imperialismo que inibiam o desenvolvimento do capitalismo na periferia desapareceram, esgarçando a tradicional divisão internacional do trabalho. O imperialismo transformou-se a partir das novas condições de competição entre os países do centro, que não mais poderiam estabelecer uma divisão monopolista estável da periferia, visto que, após as duas grandes guerras, não havia mais condições para uma competição violenta que estabelecesse domínios políticos nos países periféricos. Ao mesmo tempo, após diversas crises econômicas, os países da periferia capitalista, como bem demonstram as análises realizadas por Simonsen (1973), Furtado (1961;2000) e Jaguaribe (1958), não poderiam sujeitar suas economias à fragilidade da exclusividade na produção de bens primários: industrializar era um imperativo.

Dentro dessas perspectivas, as novas condições de competição entre os países do centro obrigavam a modificações dentro das empresas multinacionais, que aumentaram seus investimentos devido ao próprio acirramento da competitividade entre elas. Os países periféricos passaram a receber parte desses investimentos sob determinadas condições. Nessa nova lógica que se estabeleceu, segundo Evans (1980), as multinacionais buscaram o apoio dos Estados nacionais e da própria burguesia local, visando parcerias que garantissem o retorno de seus investimentos. Na condição de parceiros, Estado e burguesia industrial nacionais, por sua vez, puderam barganhar frente às inversões estrangeiras.

Para Evans (1980), é a partir da década de 1930 que o desenvolvimento dependente se estabelece na América Latina – sem dúvida, esse marco relaciona-se diretamente com as novas diretrizes de planejamento econômico adotadas pelo Estado nacional brasileiro a partir da Revolução de 1930. O desenvolvimento dependente se constituiria com o fomento do mercado interno, a partir da industrialização, por meio do processo de substituição de importações, tal como concebia Celso Furtado (1961;2000). Porém, na análise de Evans (1980), a industrialização intensificou-se com a internacionalização desse mercado interno, à medida que recebia investimentos das multinacionais na produção de bens de consumo duráveis, intermediários e bens de capital. Essa penetração das multinacionais no setor produtivo brasileiro formou uma “burguesia internacionalizada”, uma espécie de núcleo transnacional – expressão desse novo momento do imperialismo. Ainda segundo Evans (1980), o núcleo transnacional formado nos países periféricos contribuiu para a desarticulação de suas economias, reforçando a dependência:

Assim as multinacionais têm ao mesmo tempo um interesse em manter os baixos salários para que possam ter lucro nas operações rotineiras de manufatura, e na concentração de renda, para que tenham um mercado para os tipos de produtos que tentam vender. Se cuidarem de seus próprios interesses empresariais, as multinacionais intensificarão tanto as tendências de exclusão do desenvolvimento dependente como a desarticulação da tecnologia e das condições sociais. [...] O interesse das multinacionais como firmas contribui também para outros tipos de desarticulação. Elas proporcionam canais naturais para atrair seus gerentes nacionais a outros aliados locais para o “núcleo transnacional”. Têm ligações com organizações de fornecedores e de serviços no país do centro, relações que reforçam a tendência para a separação entre as multinacionais e outras firmas nacionais. A eficiência dos laços que unem o núcleo empresarial da multinacional com suas partes distantes multiplica os “elos que faltam” na periferia. (EVANS, 1980, p. 49)

O desenvolvimento dependente apresenta, portanto, um quadro no qual o investimento estrangeiro constituiu-se como um dos fundamentos da industrialização nacional, ao mesmo tempo em que expressava a impossibilidade de a burguesia industrial local deter a hegemonia econômica no país. Além disso, Evans (1980) aponta a necessidade de a burguesia industrial negociar com os diversos setores brasileiros, como os ligados à exportação de produtos primários e à própria classe trabalhadora, reforçando as ideias de Cardoso (1964) sobre a incapacidade de a burguesia nacional impor um projeto de classe, colocando-a numa situação que a obrigava a ter a frequente capacidade de buscar e efetivar alianças com as elites já existentes no país para garantir seus interesses.

Nesse aspecto, o que distingue a análise de Evans (1980) daquela elaborada por Cardoso (1964) é sua aproximação com as perspectivas propostas por Florestan Fernandes (2005), que enxergava nessa situação particular o verdadeiro poder da burguesia industrial

nacional. Ela estreitava seus laços com o centro na mesma medida em que defendia a acumulação interna de capital; pleiteava investimentos externos ao mesmo em tempo em que exigia garantia de participação na exploração de determinados setores da economia nacional (FERNANDES, 2005). Esse duplo caráter se fortaleceu à medida que o empresariado industrial nacional, ciente de que seu poder político não viria da hegemonia na acumulação de capital, desenvolveu – para além das negociações com os outros setores da elite na busca pela manutenção de seus privilégios – uma série de laços com a “tecnoburocracia” estatal. Portanto, em lugar da “falta de projeto de classe” que garantiria sua hegemonia política, são as características do desenvolvimento dependente que levaram a burguesia industrial local a tomar posições políticas que pareciam, num primeiro momento, contraditórias. É a partir dessa condição que devem ser analisadas as relações entre o empresariado industrial brasileiro e o Estado nacional.

Nesse sentido, devemos compreender a articulação desencadeada pelo empresariado no golpe de 1964 como a possibilidade manutenção de seus interesses de classe dentro do modelo do desenvolvimento dependente, supostamente ameaçados com a ascensão dos movimentos populares durante o período democrático, sobretudo no governo do presidente João Goulart. Seguindo a interpretação de Fernandes (2005), Evans (1980) enxergava nas relações entre os industriais brasileiros e o Estado uma marca do desenvolvimento dependente, considerando a modernização e a racionalização dessas relações como o poder de fato exercido pelo empresariado – formando o que Fernandes (2005) classificou como “autocracia burguesa”. O Estado nacional, nessa visão, tem reforçada sua posição privilegiada no desenvolvimento industrial do país:

A despeito das ambiguidades em sua relação com a burguesia nacional, a posição central do Estado em relação à acumulação na periferia é incontroversa. O imperialismo como processo e as multinacionais como organizações concentram a acumulação no centro do sistema internacional. A classe proprietária nacional não conseguiu realizar o domínio sobre a indústria local, mesmo nos países periféricos mais adiantados. A menos que o Estado possa impor sua prioridade na acumulação local e promover efetivamente a industrialização nacional, não há um patrocinador efetivo para a industrialização periférica. (EVANS, 1980, p. 50)

Essa condição do Estado também foi favorecida pela desarticulação da estrutura social em países dependentes (EVANS, 1980), possibilitando à burocracia estatal agir de maneira autônoma frente à burguesia local e à burguesia internacional.

O Estado deve equilibrar-se na política entre coações e incentivos, visando à garantia do desenvolvimento industrial promovido pelas inversões externas e também à garantia da

acumulação local, ao mesmo tempo em que cede parte do excedente nacional para as multinacionais. Essas negociações dependem, por sua vez, da própria capacidade de o Estado nacional gerir seus recursos e também de sua capacidade de investir em determinadas áreas, por meio das empresas estatais, que atuam nos setores onde não há interesse externo tampouco capacidade de investimento por meio do capital privado nacional. De todos os modos, um Estado com forte capacidade empresarial pode possibilitar a concorrência com as empresas multinacionais ou mesmo o oferecimento de insumos e produtos com menor custo para as multinacionais, aumentando seu poder de barganha frente às corporações estrangeiras no desenvolvimento industrial do país.

Em relação à burguesia industrial local, o processo de participação do Estado nacional como agente direto da acumulação nacional produziu uma modificação na estrutura burocrática do Estado que teve como consequência a formação de uma “burguesia estatal”. Consolidou-se uma espécie de fração do empresariado nacional ligada ao Estado, que estabelecia relações estreitas com o capital privado nacional, no sentido de garantir a acumulação em nível nacional. Essa “autocracia burguesa”, portanto, insere-se como elemento constituinte da burguesia nacional.

Ainda, segundo Evans (1980), se o objetivo do Estado nacional era garantir a acumulação do tripé (multinacional, capital nacional privado e capital estatal) em nível nacional, dentro de um projeto comum, é ele também que deveria administrar as contradições entre os interesses de cada fração e garantir as condições para que a acumulação de capitais ocorresse. Para isso, o autor destaca que o papel do Estado deveria ser também o de um agente de controle social:

O elemento de exclusão extrema que existe na natureza do desenvolvimento capitalista dependente acentua os aspectos coercitivos do Estado [...]. A tendência para a repressão nasce, em parte, da justificativa lógica da exclusão. Qualquer aumento nos salários da força de trabalho ameaça as atrações que um determinado país periférico oferece como local para atividades manufatureiras de rotina [...]. (EVANS, 1980, p. 53)

Diante das circunstâncias apresentadas, não caberia ao empresariado nacional uma prática política que defendesse a existência de um Estado democrático. Sua opção, a fim de garantir seus interesses, é a da manutenção de uma sociedade autoritária, no seio da qual a repressão fosse uma das práticas que garantisse a acumulação de capitais. A saída, para a burguesia nacional, num momento de industrialização e urbanização do país, foi apoiar a desarticulação dos movimentos da classe trabalhadora organizada. A defesa de um Estado autoritário por parte do empresariado industrial deveu-se, então, ao próprio entendimento de

que existência de uma democracia representativa não apresentava o melhor invólucro para o