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O desenvolvimento local e a territorialização educativa

CAPÍTULO III – Poder Local, Desenvolvimento Local e Políticas Locais de

1.1 O desenvolvimento local e a territorialização educativa

Numa perspectiva sociológica, a descentralização administrativa não se pode cingir aos decretos e às normas, nem a um acto ou um momento de “recepção” de atribuições, competências e meios, mas sim a um processo permanente, dinâmico e partilhado pelos actores locais, de construção de projectos adequados ao seu território de promoção do desenvolvimento local. Assim como, numa perspectiva política, a descentralização administrativa, enquanto processo de transferência de competências da administração central para entidades locais, pressupõe a sua (re)distribuição por diferentes centros, a nível regional ou local, não sendo portanto compatível com a existência de um centro polarizador, mas sim com uma “policentração”. (Barroso, 1996c). Neste sentido, a descentralização administrativa não corresponde apenas a uma delegação ou devolução de competências, antes se integra em movimentos mais amplos sobre a concepção do papel do Estado, no modelo de desenvolvimento existente e no sistema político-administrativo vigente.

São vários os factores que convergiram para o emergir das políticas de descentralização administrativa e para o reconhecimento das relações horizontais entre os parceiros educativos, dos quais salientamos a falência da concepção do modelo de desenvolvimento dos anos 50 a 70 e do paradigma de Estado-Educador. O primeiro perspectivava o desenvolvimento como sinónimo de crescimento económico, enfatizava a produtividade, a quantidade, o individualismo e as perspectivas unilaterais, a homogeneização e o racionalismo e, em termos espaciais, a concentração e a hierarquização em pólos de crescimento (Amaro, 1996). O segundo, pautado pelo centralismo político e administrativo, encarava as escolas - de acordo com o modelo taylorista - como organizações uniformes, fechadas e regidas por detalhados e

inúmeros regulamentos ou normativos centrais, cuja missão era consolidar as identidades nacionais, instruir e qualificar a mão-de-obra necessária a esse crescimento económico. Belmiro Cabrito, citando Coombs (1970) e Poignant (1967), afirma que neste período:

A planificação da educação, acompanhando um interesse crescente pelas práticas de planificação económica e adoptando uma metodologia semelhante, tornava-se o instrumento macro-educativo privilegiado capaz de fazer o equilíbrio entre a procura social da educação, as necessidades naturais da economia e as exigências do crescimento.” (1995, 133)

O forte crescimento económico facultou um acentuado investimento na educação e a massificação do ensino, o que permitiu uma democratização social por possibilitar um maior acesso à educação, mas não correspondeu a um sucesso generalizado e transportou, ainda, para o interior da escola, problemas diferenciados e socialmente complexos. Estes problemas foram sendo agravados pela crise económica que entretanto se fez sentir e que teve como implicações directas a redução dos investimentos educativos, apesar de se continuar a exigir à escola respostas para as quais não estava organizada nem estruturada. Assim, ao ser incapaz de assegurar a equidade e igualdade de oportunidades, de atenuar o desajustamento entre as qualificações académicas e as necessidades do mercado de trabalho, de diminuir o desemprego e as taxas de abandono escolar, de contribuir para o desenvolvimento, o sistema educativo mostrou-se ineficaz e ineficiente e entrou, também ele, em estado de crise.

O novo modelo de desenvolvimento que então emerge assenta numa visão integradora de desenvolvimento económico, de desenvolvimento social, cultural e político e numa lógica de integração territorial “compatível com uma organização descentralizada das sociedades, propiciadora de maior autonomia das instituições locais e de maior grau de participação de todos” (Amaro, 1996: 18). Este modelo de desenvolvimento integrado tem um carácter sistémico, assumindo a interdependência entre as várias componentes de um todo, valoriza, por isso, o local e os seus recursos endógenos, na medida em que se insere e influencia o global numa lógica de desenvolvimento que parte do local para o central, ou seja, de baixo para cima e pondo “em evidência a importância

do local enquanto determinante da natureza das políticas e dos instrumentos de desenvolvimento a utilizar” (Cabrito, 1995: 136). Assim, como refere Bachmann (1990, cit. por Ferreira, 1999: 214), “encontramo-nos, actualmente, no «tempo do desenvolvimento local» em que começa a emergir a consciência da falência da ideia de desenvolvimento ligada apenas à ideia de crescimento económico”. Trata-se, em suma, de pensar globalmente e agir localmente.

À luz deste modelo e do reconhecimento do local como espaço privilegiado de promoção do desenvolvimento local, a reconceptualização do papel da escola, das suas finalidades, processos e soluções educativas no seio da sociedade actual, implica a sua abertura à comunidade, a diversificação de acções e soluções de acordo com as suas necessidades educativas, a criação de parcerias e a participação de diversos actores locais num sistema permanente de trocas, por forma a construírem a sua identidade local. Em suma, implica o assumir-se como “agente local de desenvolvimento” (Cabrito, 1995: 136) inserido numa teia de complexidade interaccional com outros agentes, internos ou externos, em que, mais do que contribuir para aumentar o Produto Nacional Bruto (PNB), pretende melhorar a qualidade de vida dos cidadãos e o bem-estar social.

Roberto Carneiro afirma que “A escola ocupa, desde sempre, o lugar geométrico de todas as crises sociais” (1998: 7), porque, dada a sua natureza social, a percepção do serviço de proximidade e o seu protagonismo comunitário, não é possível regenerar o tecido social sem se repensar e redefinir o papel e as finalidades da escola (ibid: 8). De facto, a educação está intrinsecamente relacionada com o modelo de desenvolvimento e de sociedade, não podendo estes ser entendidos como partes isoladas, pois influenciam e são influenciados reciprocamente. Assim, a descentralização administrativa, a policentração educativa, a valorização das relações horizontais entre diferentes entidades educativas, a co-responsabilização e a integração são pilares indispensáveis a este modelo de desenvolvimento, mais concretamente às políticas de territorialização educativa e de desenvolvimento local, as quais dizem respeito a um processo de redefinição do papel do Estado e de redistribuição do poder entre o central e o local, o que não pode deixar de incluir a “reinterpretação local, de negociação local e de reinterpretação dos normativos nacionais” (Charlot, 1994:

211). Neste quadro, os conceitos de território educativo, comunidade educativa, participação, partenariado, parceria e projecto, assumem grande relevância e actualidade.

Tal como Évelyne Burguière afirma que “se o conceito de Território designa um espaço, no sentido geográfico do termo, ele evoca igualmente um conjunto de actores sociais ou de actores e atributos administrativos, jurídicos, económicos e culturais“ (In Charlot, 1994: 101), assim, territorializar não se refere apenas ao espaço físico ou geográfico, mas ao espaço humano de acção, onde o território contribui para definir a identidade e a natureza dos estabelecimentos escolares (Cardi, In Charlot, 1994), atende à complexidade e diversidade dos seus actores e às suas interacções, visa aproximar a tomada de decisão dos cidadãos através de processos de participação, discussão e negociação na construção conjunta de uma política educativa local e insere-se numa concepção de sociedade democrática.

Contudo, Bernard Charlot assinala que, no caso francês, “a territorialização das políticas educativas não é uma conquista do local, mas o efeito de uma política nacional: ela foi desejada, definida, organizada e colocada no terreno pelo Estado” (1994: 27), pois apesar da mudança de concepção de “Estado-Educador” para “Estado- -Desenvolvimentista”, a educação permanece como assunto do Estado (ibid: 31).

Também Rui Canário realça esse aspecto, ao referir que a centralidade do território radica em três pressupostos: i)o carácter ingovernável dos sistemas educativos”, dada a sua complexidade, centralidade e grande dimensão, é a razão pela qual a administração central, pretendendo aliviar-se das suas funções, transferiu para o nível local a resolução de problemas e a gestão de contradições que ela não conseguia assegurar; ii)a difusão das funções da educação e da formação” e a ruptura do monopólio educativo e da hegemonia do “modo escolar”, no campo dos princípios e das práticas, fez emergir outros actores educativos; iii)a «reabilitação» do local em termos de políticas de desenvolvimento integradas, baseadas na endogeneidade e na participação”, impõe a criação de sinergias entre os diferentes níveis, modalidades e parceiros educativos, numa perspectiva “ecológica” da educação (formal, não formal

e informal), o que reforça o potencial educativo do espaço local, enquanto “meio ambiente” de uma aprendizagem permanente ao longo de toda a vida (1998: 18).

No seguimento desta perspectiva deparamo-nos com a polissemia do conceito de local. A noção de local, apesar de aparentar uma unidade, corresponde, na realidade, a fenómenos diversos e diferenciados, pois pode ser a escola, o agrupamento de escolas (enquanto território político-administrativo dotado de um projecto educativo), o território de intervenção prioritária, o “saco” da formação-emprego, a região, o município, a cidade ou o bairro. (Charlot, 1994: 212). Em Portugal, a polissemia deste conceito está presente também na letra e no espírito da lei aprovada desde os anos 90: criando os Conselhos Consultivos dos Conselhos Pedagógicos; os Conselhos de Escola e as associações de escolas; na constituição dos TEIP e das Escolas Básicas Integradas; ao instituir os agrupamentos de escolas; na criação das Assembleias de Escola; na elaboração dos contratos de autonomia; na redenominação dos Conselhos Locais de Educação em Conselhos Municipais de Educação; na Carta Educativa ou na parceria com as autarquias para a implementação do Programa de Generalização do Ensino de Inglês no primeiro ciclo do ensino básico.

A territorialização apresenta-se assim como um conceito difuso e essencialmente político, ao não se circunscrever ao leque de transferências centrais, mas sim ao conjunto de opções políticas resultantes do conflito de legitimidades entre o Estado e a Sociedade, entre o público e o privado, entre o interesse comum e os interesses individuais, entre o central e o local. Insere-se em lógicas e objectivos distintos: por vezes como introdução de uma lógica de mercado, ou seja, como porta de entrada para a privatização ou empresarialização da escola pública; outras vezes como resposta à ineficácia e ineficiência central, embora se mantenha uma estrutura centralizada, pois o Estado manipula os financiamentos às políticas que determina; também como um processo “auto-limitado” e onde o Estado perpetua o seu poder, substituindo o seu controlo directo (normas e regulamentos) por um controlo remoto (resultados(20)), isto é, em que liberta as “tácticas” e os regulamentos, mas preserva as

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Num quadro legislativo pautado por uma tendência descentralizadora, a introdução de exames nacionais (2004/2005), pode ser interpretada como uma medida onde o Estado mantém as escolas sob a sua governação e

estratégias”; ou ainda como um processo de apropriação do espaço social (e educativo) por parte de uma comunidade local (Barroso, 1997: 10). É nesta última lógica que entendemos a territorialização educativa: enquanto contextualização e adaptação das políticas e processos educativos, respeitando e integrando as identidades locais; na confluência das relações e trocas entre os actores locais que, num processo de participação e implicação horizontal, buscam a construção de um bem comum, integrado e sempre decorrente das grandes finalidades nacionais.

É também nesta perspectiva que se inserem diversas iniciativas e projectos já realizados em Portugal(21),embora uns de iniciativa central e outros de dinâmicas locais, como: Projecto das Escolas Isoladas, Projecto Eco, PIPSE, PEPT 2000, Projecto da Gafanha da Nazaré, Centro de Formação de Associações de Escolas, TEIP, Projecto Educativo Local do Concelho da Golegã. Da congregação destas experiências educativas com as dinâmicas e acções implementadas pelas autarquias locais (isoladamente ou através de parcerias), ao nível da formação profissional, dos vários ciclos do ensino básico e também do ensino secundário (antecipando e extravasando o enquadramento legal), bem como com o investimento que têm feito na educação (apoiando directa ou indirectamente projectos e iniciativas e também, ao nível do reforço na afectação de recursos internos), constatamos que os municípios emergem, assumindo-se como entidades politicamente credíveis e localmente sustentadas, de congregação e de administração de sinergias locais que devem ser formalizadas num Projecto Educativo Local. Alguns trabalhos de investigação recentes - como os de Maria Graça Guedes (2002); Maria Manuela Prata (2002) e Sérgio Taipas (2002) - apontam precisamente para esta tendência, constatando a diversidade e amplitude das intervenções e dos projectos municipais. São precisamente estas dinâmicas educativas e a gestão das interacções, localmente contextualizadas e entendidas como projectos educativos socialmente construídos, que permitiram a emergência dos municípios, o alargamento e consolidação das suas margens de autonomia e, ainda, o reconhecimento da centralidade da sua acção na territorialização, que se pretende seja

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Dada a diversidade das iniciativas, A. Catarino, C. Leão, M.A. Ferreira e M.C. Lopes elaboraram um interessante estudo identificando e caracterizando as diferentes modalidades de associações que surgiram no terreno, verificando ainda os seus domínios (1997, 197-226).

educativa e não apenas escolar. Nos últimos anos, tem-se também registado uma tendência legislativa de consolidação do papel do município como dinamizador da Política Local de Educação, nomeadamente, com a regulamentação do Conselho Municipal de Educação, enquanto órgão de consulta e de coordenação da política educativa local centrado no município. São vários os investigadores, autarcas e políticos que reconhecem este papel, contudo, pela sua importância política, destacamos parte do discurso proferido por Valente de Oliveira, quando no exercício do cargo de Ministro do Planeamento e Administração do Território:

Os órgãos de Poder Local são, hoje em Portugal, instituições activas, próximas dos Cidadãos e com capacidade para introduzir transformações que têm muito a ver com o seu bem-estar, com a sua qualidade de vida e até com a sua postura diante da Sociedade, em globo, porque representam a alavanca mais eficaz da Educação Cívica, tomada em sentido amplo. Por isso devem assumir um papel crescente na preparação da mudança, mas não só da superficial que se traduz nos equipamentos e nas infraestruturas; ela tem de ir, especialmente, à mudança profunda que tem a ver com as pessoas e com os seus comportamentos” (In CNE, 1995: 37)