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3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1. O enfoque antropológico

O programa epistemológico de investigação em Didática da Matemática iniciou na França, nos anos 60,mas somente nos anos 70, é que as discussões foram se intensificando com a Teoria das Situações Didáticas (TSD) de Guy Brousseau, que integrou o “matemático” e o “pedagógico” modelando de maneira inseparável os conhecimentos matemáticos e as suas condições de utilização em situação escolar. Tendo como fundamentação a TSD, Yves Chevallard desenvolveu a Teoria da Transposição Didática, na qual discute as noções de saber sábio, saber a ensinar e saber ensinado.Estes conceitos permitem mostrar as diferenças entre o saber matemático (produzido pelos matemáticos) e o saber a ser ensinado, o qual sofre as transformações adaptativas de um objeto de saber a ensinar em objeto de ensino.

A Transposição Didática ocorre nos âmbitos externos e internos da escola. As instituições de transposição de saberes, espaço onde se opera a interação entre o sistema didático e o ambiente social, são definidas por Chevallard (2005) como noosfera, as competências estão delimitadas com precisão pelos representantes do sistema de ensino e os representantes da sociedade.

Para Chevallard (2005), a noosfera atua prioritariamente por um reequilíbrio intermediado por uma manipulação do saber. No contexto da noosfera é que se realiza a seleção do saber sábio designado como o saber a ensinar, esses saberes serão submetidos ao trabalho de transposição; é a noosfera que assume a parte visível deste trabalho, o que o autor chama de trabalho externo,

em oposição ao trabalho interno. O trabalho interno é designado pelo professor quando prepara o texto eminente do saber a ser ensinado e quando no interior do sistema didático o coloca em ação.

Da problemática da Transposição Didática, Chevallard (1999) desenvolveu a Teoria Antropológica do Didático (TAD), que inicialmente foi construída como uma teoria cujo objetivo consiste em controlar os problemas da difusão de conhecimentos e de saberes quaisquer, compreendidos em suas especificidades, assim como, os conhecimentos matemáticos.

As primeiras formulações da TAD, e que posteriormente evoluíram, surgiram da problematização do conhecimento matemático, na qual Chevallard (1999) evidencia a relatividade institucional do conhecimento matemático e sua evolução no centro de uma instituição didática. Para o autor, a TAD estuda o homem perante o saber matemático, e mais especificamente, perante situações matemáticas. Um motivo para a utilização do termo “antropológico” é que a TAD situa a atividade matemática e, em consequência, o estudo da matemática, dentro do conjunto de atividades humanas e das instituições sociais.

Os elementos primitivos da TAD são os conceitos de instituições (I), indivíduos (X) e objeto (O). Chevallard (1999) explica que uma instituição (I) é um dispositivo social total que pode ter apenas uma extensão muito reduzida no espaço social, mas que permite – e impõe – a seus sujeitos maneiras próprias de fazer e de pensar. Sob a ótica da TAD, cada saber é saber de pelo menos uma instituição; um mesmo objeto do saber pode “viver” em instituições diferentes e para viver em uma instituição um saber necessita submeter-se a certas imposições, o que o conduz a ser transformado.

Dessa forma, o conhecimento entra em cena na TAD com a noção de relação. Um objeto existe, se existe uma relação com este objeto, ou seja, se um indivíduo ou uma instituição o reconhece como objeto. É a partir das práticas que se realizam com o objeto que se define a relação (institucional) da instituição com o objeto. Assim, dados um objeto O (por exemplo, a noção de Permutação simples) e uma instituição I (por exemplo, o livro didático), a noção de relação, segundo Chevallard (1999), diz respeito às práticas sociais que se realizam na

instituição e que põem em jogo o objeto em questão, ou seja, o que se faz na instituição com este objeto.

Elemento importante da Teoria Antropológica do Didático é o estudo das organizações praxeológica: a noção de Organização Matemática (OM), que constitui a ferramenta fundamental para modelizar a atividade matemática. Uma organização matemática é qualquer estrutura possível de atuação e conhecimento, assumindo que toda atividade humana apresenta dois aspectos inseparáveis: a prática matemática ou “práxis”, que consta de tarefas(T) e técnicas (𝝉), e o discurso fundamentado ou “logos” sobre essa prática que é constituída por tecnologias(𝜃) e teorias(𝜣).

Chevallard, Bosch e Gascón (2001, pag.275) consideram que não é possível,

nem para o matemático profissional nem para os alunos de uma série do ensino fundamental, atuar matematicamente com verdadeira eficácia sem entender o que está fazendo. Mas também não se pode entender em profundidade uma organização matemática determinada se, simultaneamente, não for realizada uma prática matemática eficaz. Não há práxis sem logos, mas também não há logos sem práxis. Ao unir as duas faces da atividade matemática, obtemos a noção de praxeologia.(p.275) Assim, podemos entender uma organização praxeológica ou praxeologias, como a realização de certo tipo de tarefa, que resulta da aplicação de uma determinada técnica, que precisa ser descrita e justificada por uma tecnologia, que necessita de uma justificação, que é chamada de teoria da técnica. Chevallard e Bosch (1999) explicam que as distinções entre a técnica, a tecnologia e a teoria são funcionais e devem ser referenciadas ao tipo de tarefa que se toma como ponto de referência.

Um tipo de tarefa pode se exprimir por meio de um verbo. Por exemplo: integrar uma função, dividir um inteiro por outro etc. Uma praxeologia relativa à tarefa requer, em princípio, uma maneira de realizar as tarefas. Uma determinada maneira de se fazer a tarefa recebe o nome de técnica. Assim, uma praxeologia relativa ao tipo de tarefa contém, pois, em princípio, uma técnica relativa à tarefa. Temos, assim, o bloco designado por tarefa/técnica que se denomina bloco prático-técnico (T/ 𝝉) e que se identificará, genericamente, com o que comumente

se denomina o saber- fazer um determinado tipo de tarefa, e uma determinada maneira de fazer (técnica) de realizar as tarefas deste tipo. No entanto, uma determinada técnica pode não ser suficiente para realizar todas as tarefas; ela pode funcionar para uma parte das tarefas e fracassar para outras. Para Chevallard (1999), isso significa que em uma praxeologia pode existir uma técnica superior a outras técnicas, ao menos no que concerne à realização de certo número de tarefas.

Um discurso racional (logos) sobre certa técnica se denomina tecnologia, cujo primeiro objetivo é justificar racionalmente a técnica, para assegurar-se de que a técnica permite realizar as tarefas de certos tipos de problemas, ou seja, realizar o que se pretende. Em matemática, tradicionalmente, a justificação de uma técnica é realizada por meio de demonstração. O segundo objetivo da tecnologia consiste em explicar, tornar inteligível e esclarecer uma técnica, isto é, em expor porque ela funciona bem. Além disso, segundo Chevallard (1999), a tecnologia tem também a função de reproduzir novas técnicas, mais eficientes e adaptadas à realização de uma determinada tarefa.

O discurso tecnológico, por sua vez, contém afirmações, mais ou menos explícitas, as quais necessitam de justificativas. Passa-se, então, a um nível superior de justificação, explicação e produção da teoria, que retoma em relação à tecnologia o papel que a última tem a respeito da técnica. A teoria tem como objetivo justificar e esclarecer a tecnologia, bem como tornar inteligível o discurso tecnológico. Temos, assim, o bloco designado por Saber que se denomina bloco tecnológico/teórico (𝜃/ 𝜣). Chevallard (1999) adverte, no entanto, que geralmente essa capacidade de justificar e de explicar da teoria é quase sempre obscurecida pela forma abstrata como os enunciados teóricos são apresentados, frequentemente por meio de uma técnica, justificada por uma tecnologia, que, por sua vez, é justificada por uma teoria.

Em resumo, uma praxeologia ou organização praxeológica é constituída por dois blocos: o saber fazer (prático-técnico), e o bloco do saber (tecnológico- teórico). Assim, ao unir a práxis ao logos obtêm-se as organizações praxeológicas.

Para Chevallard (1999), as praxeologias associadas, a um saber matemático, são de duas espécies: Matemáticas e Didáticas. As praxeologias matemáticas ou organizações matemáticas (OM) referem-se à realidade matemática que pode ser desenvolvida em uma sala de aula, elas são elaboradas em torno de uma noção, ou conceito, inerente à própria Matemática. As praxeologias didáticas ou organizações didáticas (OD) referem-se à maneira de como se faz essa construção, são as respostas (a rigor) a questões do tipo “como realizar o estudo de determinado assunto”. Refere-se ao modo que possibilita a realização do estudo de um determinado tema.

Em suma, um dos discursos da TAD é que um objeto existe a partir da existência de instituições e pessoas que cultivam relações com esse objeto. A questão da natureza desse objeto nos leva assim ao problema da descrição das práticas institucionais, em que o objeto está inserido, problema ao qual é preciso responder em termos de organizações praxeológicas.Seguindo este pensamento, podemos pensar quais são os tipos de tarefas e técnicas que compõem as praxeologias institucionais que compõem a Análise Combinatória e quais elementos tecnológicos e teóricos vêm descrever e justificar essas práticas, e que organizam um discurso sobre este objeto matemático. Pois, segundo Chevallard e Bosch (1999),os conceitos matemáticos podem assim ser considerados como emergentes dessas praxeologias e das relações institucionais em torno desse objeto.

No contexto das organizações didáticas encontra-se a noção de momentos didáticos que, segundo Gascón (2003), pode ser considerada como um modelo funcional do processo de estudo das organizações matemática. Para Almouloud (2007), os momentos do estudo ou momentos didáticos estão necessariamente presentes quando se pretende descrever uma organização didática em torno de um objeto matemático. Nessa direção, a TAD, para efeito de organizações didáticas, propõe seis momentos didáticos, também chamados de dimensões do processo de estudo.

O primeiro momento refere-se ao encontro com a organização praxiológica por meio de tarefas; esse encontro vai orientar o desenvolvimento das relações institucionais e pessoais do objeto. (...) este momento consiste em encontrar a OM por meio de, pelo menos, um dos tipos de tarefas que a constituem e que, no

entanto, não determina completamente a relação com o objeto, porque a OM é construída e modificada durante o processo de estudo. No segundo momento, tem-se a exploração das tarefas e o início da elaboração de uma técnica para resolver esse tipo de tarefa. É nesse momento que o professor tem o papel de orientar os alunos para que seja constituída, pelo menos parcialmente, uma técnica que, a princípio, possa resolver o problema, que representa uma espécie do tipo de tarefa estudado. Essa ação deve, posteriormente, possibilitar a emergência de outra técnica mais elaborada, geral e completa. (...) O terceiro momento diz respeito à construção do ambiente tecnológico/teórico que começa a ser constituir desde o primeiro encontro, tornando-se cada vez mais preciso no decorrer do estudo. (...) Assim, desde o primeiro encontro com um tipo de tarefa, têm-se inter-relações e/ou conexões com um ambiente tecnológico/teórico anteriormente elaborado. Vale a pena ressaltar que, no ensino tradicional, esse momento constitui a primeira etapa do estudo e as tarefas aparecem como aplicação do bloco tecnológico/teórico. No quarto momento ocorre o trabalho com a técnica em diferentes tarefas, que pode, eventualmente, ser aperfeiçoada pela sua mobilização relativa a um conjunto de tarefas qualitativamente e quantitativamente representativas da organização matemática em jogo. No quinto momento, o da institucionalização, a organização matemática é definida. Elementos que fizeram parte do estudo em fases anteriores podem ser descartados e outros integrados definitivamente a partir da explicitação oficial desses elementos pelo professor ou pelo aluno tronando-se parte integral da cultura da instituição ou da classe. (...) O sexto momento é considerado sob dois aspectos: a avaliação das relações pessoais e a avaliação da relação institucional, ambas em relação ao objeto construído, da técnica construída, buscando verificar sua capacidade intelectual. (ALMOULOUD, 2007, p.124-125).

É importante ressaltar que os momentos didáticos são uma realidade funcional, antes de ser uma realidade cronológica. O terceiro momento, por exemplo, constitui a primeira etapa do estudo, no ensino tradicional, e as tarefas surgem como aplicações do bloco tecnológico/ teórico. Contudo, Gascón (2003) ressalta que determinado processo de ensino, de algum saber matemático, produtor de situações que conduzam os sujeitos a uma aprendizagem sólida precisa que suas organizações didáticas possibilitem e gerenciem um processo de estudo cuja dinâmica pode ser descrita seguindo os seis momentos ou dimensões do referido processo. Diante disso, Chevallard (1999) explica que uma proposta de análise para organizações didáticas, de algum saber, pode buscar suas evidências nas questões sobre a realização dos diferentes momentos didáticos: Como realizar o primeiro encontro com a organização didática? Com

qual tipo de tarefa? Como conduzir o estudo exploratório de um tipo de tarefa dado? Como conduzir o momento da institucionalização? Como realizar a avaliação?

A partir da noção dos momentos didáticos, o pesquisador Josep Gascón elaborou um modelo teórico, chamado pelo autor de sistema de referência, que permite situar cada uma das organizações didáticas possíveis em correspondência com alguma das dimensões (momentos) da atividade matemática.