• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO I – A RELAÇÃO TRABALHO E EDUCAÇÃO E A CRISE

1.2 Divisão internacional do trabalho

1.2.2 O Estado brasileiro e as ações de conformação da classe trabalhadora

Antes de adentrarmos as especificidades do Estado brasileiro, faz-se importante situarmos a concepção de Estado à qual nos filiamos, sobretudo, devido à centralidade dessa categoria para este trabalho. Por meio da qual, buscamos apreender as disputas em torno da lei da aprendizagem.

Nesse sentido, cabe ressaltar que, embora existam diferentes concepções de Estado ao longo da história – Estado Antigo, Estado Feudal e Estado Moderno –, neste estudo, ativemo- nos à teoria do Estado Moderno.

Contudo, vale salientar que, independentemente da concepção de Estado, este constitui a expressão do poder político exercido sobre “um território e conjunto demográfico” (GRUPPI, 1980, p. 7). O Estado, portanto, é constituído de poder político, povo e território.

As reflexões acerca do Estado moderno têm por base as formulações de Nicolau Maquiavel, especialmente através da obra O Príncipe (MAQUIAVEL, 2018). O contexto sócio-histórico no qual Maquiavel desenvolveu suas análises data da segunda metade do século XV, período em que França, Inglaterra e Espanha inauguraram o Estado independente de outros poderes (GRUPPI, 1980). Assim, enquanto sujeito histórico, ele desenvolveu sua teoria a partir das observações de sua realidade concreta.

Ao distinguir o Estado moderno de suas formas pretéritas, Luciano Gruppi destaca que:

A primeira característica do Estado moderno é essa autonomia, essa plena soberania do Estado a qual não permite que sua autoridade dependa de nenhuma outra

autoridade. A segunda característica é a distinção entre Estado e sociedade civil que vai evidenciar-se no século XVII, principalmente na Inglaterra, com o ascenso da burguesia. O estado se torna uma organização distinta da sociedade civil, embora seja expressão desta. (GRUPPI, 1980, p. 9, grifos do autor)

Importa sublinhar que essa separação entre sociedade civil e Estado, naquele contexto histórico, representou um importante avanço no pensamento político, sobretudo diante da grande influência da igreja sobre o Estado (MENDONÇA, 2014).

Entretanto, “os pensadores liberais buscaram transformar as ciências do homem em algo tão rigoroso e passível de comprovação quanto as ditas ciências exatas, tomando a Matemática como seu paradigma” (MENDONÇA, 2014, p. 28-29). Negando, dessa forma, a historicidade das relações humanas.

A partir da concepção de Estado em geral e da apreensão das características do Estado moderno, podemos nos debruçar sobre a teoria crítica de Estado – em que se destacam Marx, Engels, Lenin e Gramsci –, na qual fundamentamos esta pesquisa.

Desse modo, para compreendermos o papel do Estado, é fundamental que entendamos como se dá a relação entre Estado (sociedade política) e sociedade civil. Tendo em vista que “sociedade civil” compreende o conjunto das relações econômicas e sociais, a sociedade política corresponde ao Estado stricto sensu.

De acordo com Gruppi (1980, p. 26), “Marx viu então a conexão entre as duas, separadas pelo pensamento liberal: elas estão entrelaçadas, uma é a expressão da outra. A sociedade política, o Estado, é expressão da sociedade civil, isto é, das relações de produção que nela se instalaram”.

Nesse sentido, o Estado não é uma abstração, um ser místico que controla a sociedade, tampouco uma estrutura estritamente política, estanque a ela. Podemos compreendê-lo, então, grosso modo, como a concretização do poder político sobre um determinado território, de acordo com os interesses da sociedade civil.

Entretanto, não há neutralidade no Estado, logo, ele não opera de acordo com os interesses da sociedade como um todo. Foi diante dessa constatação que Marx definiu o Estado como espaço de constante disputa pelo poder. Disputas estas que são determinadas pelas correlações de forças num dado contexto histórico (MARX; ENGELS, 2009).

É nesse sentido que Marx e Engels afirmam: “a história de toda sociedade até aqui, é a história de luta de classes” (MARX; ENGELS, 1997, p. 3).

As relações sociais marcadas pelas lutas de classes determinam, portanto, que

O Estado torna-se uma necessidade a partir de um determinado grau de desenvolvimento econômico, que é necessariamente ligado à divisão da sociedade

em classes. O Estado é justamente uma consequência dessa divisão, ele começa a nascer quando surgem as classes e, com elas, a luta de classes. (GRUPPI, 1980, p. 30)

Nessa correlação de forças,

A burguesia suprime cada vez mais a dispersão dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária disto foi a centralização política. Províncias independentes, quase somente aliadas, com interesses, leis, governos e direitos alfandegários diversos, foram comprimidas numa nação, num governo, numa lei, num interesse nacional de classe, numa linha aduaneira. (MARX; ENGELS, 1997, p. 8, grifos dos autores)

Foi diante desse processo que Marx e Engels afirmaram o Estado sob hegemonia da burguesia, logo, “é apenas uma comissão que administra os negócios comunitários de toda a classe burguesa” (MARX; ENGELS, 1997, p. 5).

Importante lembrar que o Estado não é uma instituição intrínseca à sociedade. Trata- se, portanto, de uma construção social. De acordo Gruppi, para Engels, “o Estado não existiu desde sempre. Houve sociedades que prescindiram do Estado, que não tiveram a menor ideia de Estado e de poder estatal” (GRUPPI, 1980, p. 30).

Logo, o Estado Moderno

[...] é o resultado de um processo pelo qual a classe economicamente mais forte – isto é, a que detém os meios de produção decisivos nessa determinada sociedade – afirma todo o seu poder sobre a sociedade inteira; e estabelece também juridicamente esse poder, essa preponderância de caráter econômico. (GRUPPI, 1980, p. 30)

Contudo, a predominância de uma classe sobre a outra não é estática, tampouco está previamente estabelecida. Essa dominação se estabelece de maneira dinâmica a partir da relação dialética entre classes sociais, propriedade e Estado, sendo determinada de acordo com as correlações de forças.

Outra categoria fundamental para a compreensão das formas de atuação do Estado é a hegemonia. Entretanto, para a compreensão desta e de outras categorias centrais, nesta análise, faz-se importante a discussão da concepção de Estado Ampliado desenvolvida por Antonio Gramsci. Para o autor, o Estado Ampliado consiste na articulação entre sociedade civil e sociedade política. Segundo ele,

Estamos sempre no terreno da identificação de Estado e Governo, identificação que é, precisamente, uma representação da forma corporativa-econômica, isto é, da confusão entre sociedade civil e sociedade política, uma vez que se deve notar que na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção). (GRAMSCI, 2000, p. 244)

Entretanto, essa formulação busca apenas resumir uma teoria bastante complexa, determinada por um conjunto de mediações. Em primeiro lugar, é importante destacar que essas duas categorias, articuladas, compõem o Estado Ampliado. Segundo Coutinho, a sociedade civil, em Gramsci, é composta

[...] precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa), etc. (COUTINHO, 2012, p. 127)

Enquanto a sociedade política ou Estado stricto sensu, compreende o “conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência e que se identifica com os aparelhos de coerção sob controle das burocracias executiva e policial-militar” (COUTINHO, 2012, p. 127).

Importante sublinhar que o Estado Ampliado não é a soma da sociedade civil mais sociedade política, mas sim o todo, articulado na totalidade das relações sociais. Assim, embora a sociedade civil represente o espaço privilegiado de formação de hegemonia pelo consenso, por meio dela, também se exerce coerção. Consenso e coerção são, portanto, estruturas para garantia da hegemonia. Ao tratar dessa relação entre coerção e consenso, Gramsci os define da seguinte forma:

[...] 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) obtido pelo grupo dominante por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o consenso espontâneo. (GRAMSCI, 2006, p. 21)

Na acepção gramsciana, hegemonia vai muito além da predominância de uma classe sobre outra. O processo de disputa e manutenção por hegemonia pode ser sintetizado como um processo de assimilação e subordinação moral e intelectual de uma classe ou frações de classes sobre as demais, através da educação e da persuasão política, oferecendo um novo elemento para o exercício da dominação. Compreende aspectos políticos e culturais. Assim sendo,

[...] uma classe é dominante em dois modos, isto é, é “dirigente” e “dominante”. É dirigente das classes aliadas, é dominante das classes adversárias. Portanto, uma classe desde antes de chegar ao poder pode ser “dirigente” (e deve sê-lo): quando está no poder torna-se dominante, mas continua sendo também “dirigente”. (LIGUORI, 2017, p. 366)

Desse modo, para exercer o “domínio”, a coerção faz-se imprescindível. E o processo de disputa e manutenção por hegemonia pode ser sintetizado como um processo de assimilação e subordinação moral e intelectual de uma classe ou de frações de classes sobre as demais, através da educação e da persuasão política, oferecendo um novo elemento para o exercício da dominação.

Outro aspecto central na construção da hegemonia consiste na ideologia, categoria primordial no processo de construção do consenso. Segundo Gramsci, a ideologia é indissociável da luta de classes e das relações de poder e, assim, as ideologias não são de modo algum arbitrárias. Na concepção gramsciana, “a filosofia da práxis sustenta que os homens adquirem consciência de sua posição social no terreno das ideologias” (GRAMSCI, 1999, p. 217).

No pensamento gramsciano, a ideologia é entendida como “uma concepção do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas” (GRAMSCI, 1999, p. 98-99).

Nessa concepção, o conceito de ideologia estabelece uma relação muito estreita com o conceito de hegemonia. Segundo Gramsci, o exercício da hegemonia

[...] caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública. (GRAMSCI, 2014, p. 96)

Na manutenção da “direção”, a permanente produção do consenso é igualmente importante. Desse modo, a ideologia constitui um aspecto central na construção da hegemonia. Ou seja, o consenso não se mantém apenas pelos interesses econômicos comuns, demanda, também, identificação de caráter sociocultural (COUTINHO, 2012).

Vale lembrar que a hegemonia exercida sobre a cultura está diretamente ligada à dominação econômica. Não à toa, “as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante” (MARX; ENGELS, 2009, p. 67).

Nesse processo de conformação da classe trabalhadora, o Estado exerce papel fundamental enquanto aparelho hegemônico da burguesia. Apesar da correlação de forças, não se negam, contudo, as disputas travadas nessa arena. Nesse sentido, o Brasil assumiu importante papel para a garantia da expansão do mercado no país. Para além disso, alicerçado pela OCDE, ele também passou a exercer papel estratégico na articulação dos países da América Latina. Assim,

O núcleo estratégico do executivo central do governo brasileiro passou a coordenar mais organicamente as ações dos diferentes “parceiros” na sociedade civil, buscando transformar a colaboração social, ainda fragmentada, em concertação social, pela implantação de redes sociais interconectadas, constituídas por organismos internacionais, organizações não governamentais internacionais e nacionais, organizações empresariais e movimentos sociais das classes trabalhadoras [...] (FALLEIROS et al., 2015, p. 42)

É a partir desse grande consenso que se constrói o projeto educacional hegemônico para a formação profissional da classe trabalhadora no Brasil.

Seguindo um dos motes do Capitalismo Neoliberal de Terceira Via – a ideologia da responsabilidade social –, os empresários, através de suas próprias fundações ou pelo financiamento de associações sem fins lucrativos que atuam no âmbito da educação, vêm incidindo de maneira significativa na conformação do trabalhador de novo tipo. Um exemplo dessa atuação é o movimento empresarial “Todos pela Educação20”, alinhado ao programa

promovido pela Unesco “Educação para Todos” (MELO; SOUZA; MELO, 2015, p. 38-41). A reestruturação produtiva iniciada na década de 1970 incidiu, desde então, em diversas ações de formação profissional implementadas no Brasil. Ao longo desse período, não foram poucas as intervenções articuladas por meio do Estado para a adaptação da classe trabalhadora ao novo padrão de acumulação flexível.

O Brasil, enquanto país subdesenvolvido, aderiu prontamente à ideologia propagada pela Teoria do Capital Humano que, em síntese, associa de maneira linear índices de escolaridade ao desenvolvimento econômico e, assim, culpabiliza os trabalhadores pelo atraso do país.

Entendemos que o mundo do trabalho é composto por um conjunto diversificado de trabalhadores que constitui o corpo do trabalhador coletivo. Compreendemos, por outro lado, que ações tomadas no capitalismo para a formação profissional da sociedade configuram, em essência, uma dualidade educacional estrutural “enquanto expressão do antagonismo capital- trabalho” (RUMMERT; ALGEBAILE; VENTURA, 2013, p. 735).

No contexto dos anos 1990, um conjunto de projetos, programas e políticas foi implementado, embasado, sobretudo, pela ideologia da Terceira Via, com vistas à formação de mão de obra, bem como à (con)formação societal da classe trabalhadora. Importante salientar que, nesse contexto, o Estado assumiu uma postura que centraliza as ações no que tange ao financiamento e às avalições dessas ações, ao passo que descentraliza a

20 Criado em 2006, constitui um importante aparelho privado de hegemonia, que reúne diferentes frações do

capital, tais como: Banco Itaú, Banco Bradesco, Grupo Suzano, Grupo Gerdau, Organizações Globo, entre outras. Conforme Martins A. (2009b), esse organismo foi criado e vem sendo aperfeiçoado para produzir e difundir seu projeto de educação para o país.

implementação delas. Seja pelos ministérios responsáveis por essa “gestão”, seja pela implementação de projetos por meio de Organizações Não Governamentais (CASTIONI, 2013).

Observa-se que, desde os anos 1960, todos os grandes programas voltados para a formação profissional estão embasados na Teoria do Capital Humano, como o Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra Industrial (PIPMOI) em 1960, o Plano Nacional de Educação Profissional (PLANFOR), em 1995, e o Plano Nacional de Qualificação (PNQ), implementado em 2003 no governo Lula (CASTIONI, 2013, p. 27). Além do discurso de desenvolvimento socioeconômico embutido nos projetos que compõem esses grandes programas, fica evidente também o forte apelo para o controle social do público alvo (RUMMERT; ALGEBAILE; VENTURA, 2013, p. 731).

Além do nítido controle dos conflitos resultantes da desigualdade social, também podemos constatar, em todas essas ações, uma linha programática que atende ao receituário dos organismos supranacionais para a formação do trabalhador de novo tipo. Vemos, nos conteúdos programáticos desses programas, a teoria das competências sendo propagada em larga em escala. Assim, temas como empreendedorismo, empregabilidade, inclusão digital, trabalho em equipe, respeito às diferenças, flexibilidade, entre outros, encontraram estabilidade e legitimidade na composição do conteúdo programático desses projetos.

A influência dessa teoria, que não se limita aos discentes, incide estrategicamente também sobre a formação de professores. Sob o discurso da preocupação com a “mundialização da educação”, o que se observa é o processo de precarização do trabalho docente, sua formação acelerada e fragmentada, bem como orientada por essa ideologia. Para além disso, amplia-se a modalidade da educação a distância sob a justificativa da urgente demanda social, assim como pela redução de “custos”.

Desse modo, temos cada vez mais professores-mediadores da aprendizagem, guiados por apostilas e slides prontos, já que, segundo a ideologia do “aprender a aprender21”, o papel

do professor limita-se à mediação. “Esses são os pilares fundamentais para formação para o trabalho, simples ou complexo, das reformas educacionais consoantes às necessidades econômicas e políticas da sociedade do conhecimento” (FALLEIROS et al., 2015, p. 37).

A manutenção dessa diretriz também pode ser observada nos governos petistas, de Lula e Dilma. Nos quais se deu continuidade à política de dissociação da educação

21 Lema que sintetiza as bases dos quatro pilares da educação para o século XXI, desenvolvido pela Unesco e

coordenado pelo político francês Jacques Delors no relatório que ficou conhecido como Relatório Delors (FALLEIROS et al., 2015).

profissional da educação básica (CIAVATTA; FRIGOTTO; RAMOS, 2005). Apesar do conhecimento do amplo debate para a construção de uma proposta de educação profissional integrada à educação básica, bem como dos discursos favoráveis a esta, observa-se, contraditoriamente, o fomento de programas e projetos focais e contingenciais (CIAVATTA; FRIGOTTO; RAMOS, 2005).

Dentre vários desses projetos, interessam ao nosso estudo os projetos que mesclam a inserção no mercado de trabalho com a formação profissional. Entre eles, podemos citar: o PROJOVEM, o PRONATEC, a Escola de Fábrica, assim como a atualização da Lei da Aprendizagem.