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O figo na literatura, nas artes e na estória oral

No documento Is Bn 9788539301874 (páginas 40-49)

o figo e sua árvore é espécie cantada e contada em verso e prosa há muito tempo, conforme se demonstrou no tópico sobre a figueira nas Sagradas escrituras judaico-cristãs e muçulmana. Consta como referência mitológica importante na representação da loba amamen- tando os fundadores de roma, a árvore na sombra da qual os heróis foram amamentados. Conta a lenda que depois de abandonados em uma cesta no rio tibre, foi embaixo de uma figueira que a cesta teria aportado (impelluso, 2004). na literatura clássica, popular, nas estórias e narrativas orais, conforme se demonstra a seguir, o figo e a figueira são presença marcante.

Don Quixote de la Mancha, considerado o primeiro romance

moderno, escrito por miguel de Cervantes, traz uma lista de 102 espécies, conforme levantamento feito por pardo-de-Santayana (2006), demonstrando que essas citações estão associadas aos usos feitos pela população no período em que a obra do escritor espanhol se contextualiza. o figo é uma dessas plantas, citado seu fruto sem- pre como referência a algo sem valor.

em manoel thomas, no seu livro 10 da Insulana, o figo é assim

descrito (Bluteau, 1712, p.112):

irá doçura o figo sustentando Com mostras de pobreza no vestido açúcar pelo olho distillando Com seu pé de cajado retorcido, Suaves embaxadas ensinando a mercúrio na planta offercido, Com q o reyno das arvores despreza porque mais a doçura estima, & preza

ainda de portugal do século XViii, os vários adágios impõem respeito e talvez provocassem algum medo, alegria ou riso disfar- çado. o mesmo autor cita:

em tempos de Figos, náo há amigos. não darei por isso um Figo podre. não busques o Figo na ameixeira.

o Figo cahido, para o Senhorio, & o que está quedo, para mim o quero. a branca com frio, não val hum Figo. (Bluteau, 1712, p.113)

alguns deles também são citados por Souto maior (1988, p.67), que apresenta algumas variações dos adágios anteriores e adiciona outros provenientes de pesquisadores da cultura popular:

não fiarei dele um figo podre. enquanto há figos, há amigos.

mais vale um pão duro que figo maduro. Uva, figo e melão é sustento de nutrição. Uns comem figo, outros arrebentam a boca.

merece destaque o adágio que associa léxicos semelhantes e já comentados referentes à cura de doenças, talvez como adaptação onomatopeica da teoria das assinaturas, mas certamente para favo- recer a memorização da receita: “Chá de folhas de figo para os males do fígado” (ibidem).

trazido de portugal, sem data precisa, dizia-se no campo: “Figo cortado é figo estragado”. Segundo Câmara Cascudo (2004), “o povo cisma em não cortar de faca certas frutas [...]. evita-se a con- centração do tanino, o gosto adstringente característico?”.

o figo verde não é tão adstringente quanto outras frutas, mas, por precaução, por que não respeitar o dito popular?

mitos envolvendo árvores são comuns e a figueira aparece em várias deles como amaldiçoada ou assombrada, tendo como expli- cação recorrente o fato de ter sido em uma planta dessa espécie que Judas teria se enforcado (porteous, 2002). os evangelhos

não dão detalhes sobre o suicídio de Judas, mas se consolidou a tradição de que teria sido em uma figueira que ele teria cometido o tresloucado ato.

a figueira foi amaldiçoada também pelo poeta português antónio nobre, (Silva, 2002, p.201), que retomou essa antiga lenda sobre o suicídio que Judas supostamente suicidara em uma figueira nos arredores de Jerusalém: “ó figos pretos, sois as lágrimas daquele/que, em certo dia, se enforcou em uma figueira. todos os que a amaldiçoaram viveram bem menos do que a árvore”.

na Sicília, muitas superstições giram em torno dessa árvore, como a de considerar imprudente repousar à sua sombra nas horas quentes do dia, pois em cada folha habitaria um demônio sangui- nário. Uma das lendas alerta sobre o risco de se encontrar uma mulher vestida como freira, com uma faca na mão, perguntando se a pessoa deseja pegá-la pelo cabo ou pela lâmina. Se a resposta for pela lâmina, a pessoa morrerá, se responder que será pelo cabo, terá sucesso em todas as tarefas assumidas.

na verdade, na Sicília as superstições sobre as árvores são muitas e, particularmente na noite de São João, diz-se ser muito perigoso dormir embaixo delas, sob o risco de sofrer assédio de demônios (ibidem).

existem citações em que o figo é associado com a sorte, como no caso de textos gregos e árabes que revelam que pessoas que sonham estar colhendo figos maduros seriam abastecidas com dinheiro (Simmons, 1998). além disso, segundo o mesmo autor, o formato erótico do fruto do figo levou a associações na grécia antiga para o campo da prosperidade e fertilidade, representações comuns na festa de Dionísio. na antiga roma e em partes da índia e do Quênia, o leite de figo fazia parte de cerimônias importantes, igualmente associadas aos aspectos eróticos e reprodutivos.

talvez parte dessas associações e usos tenha influenciado outros povos europeus e, trazida ao Brasil pelos missionários no período colonial, ainda se faz presente nos dias atuais. Jean Baptiste Debret (1978, p.208) descreve algumas cenas religiosas da época, em que mães penduram “pequenos antebraços de punho

fechado e que têm em geral uma polegada de comprimento” para a proteção das crianças:

estes amuletos (feitos de raiz de arruda) têm o nome genérico de figas, porque a princípio esculpiam-se pequenas peras ou figos consagrados ao mesmo uso. a superstição recomenda que no momento de pendurá-los no pescoço da criança se reze uma oração a São João, o qual indubitavelmente preservará o pequeno de todas as desgraças. (ibidem)

no Brasil Colônia, alguns escritores produziram saborosos textos sobre a fruta. alguns exemplos podem ser vistos no livro de Cascudo (2008), Antologia da alimentação no Brasil:

[...] o figo de cor roxa graciosos poucos se logram, salvo-se à porfia se defendem de que com os biquinhos, os vão picando os leves passarinhos. (atribuído a Frei manuel de Santa maria de itaparica, 1704-1768)

[...] as bananas famosas na doçura, fruta que em cachos pende e cuida a gente

Que fora o figo da cruel serpente. (atribuído a Frei José de Santa rita Durão, 1720-1784, do livro sobre “Frutos, caça e pesca do Brasil”, de 1781, poema épico do descobrimento da Bahia)

aqui não faltam figos,

e os solicitaram pássaros amigos, apetitosos de sua doce usura, porque cria apetites e doçura; e quando acaso os matam porque os figos maltratam,

parecem mariposas, que embebidas na chama alegre, vão perdendo as vidas.

esse texto é atribuído a manuel Botelho de oliveira (1636-1711), “as frutas e legumes”, produzido em Lisboa, em 1705, na forma de música dividida em quatro coros de rimas portuguesas, castelhanas, italianas e latinas.

ainda no Brasil, e mais recentemente, o figo foi merecedor de citações em textos literários infantis, como em O Minotauro, de

monteiro Lobato (apud Camargos & Sacchetta, 2008, p.24), que escrevia: “Jantar em casa de péricles primou pela simplicidade e discrição: Carneiro assado – e ótimo! merecedor até da aprovação de tia nastácia; pão; peixe; queijos de vários tipos; frutas secas e frescas, figos, uvas; mel; leite; ótimos vinhos [...]”.

e ainda, em uma inimaginável viagem no tempo e no espaço, a turma do Sítio do pica pau amarelo é levada para a antiga grécia, à procura da cozinheira raptada, e lá encontra-se com Sócrates e Heródoto. tia nastácia, sábia nos dotes culinários, encanta-se com um prato oferecido por uma senhora helênica de nome aretusa, feito de leite e toucinho preparado em folhas de figo. “Com que regalo devorei o pitéu! tive a sensação de ambrosia dos deuses. Que tempero, que arte não usou a velhinha para conseguir aquele prato!” (ibidem), surpreendeu a cozinheira.

em seu livro Plantas medicinais, benzeduras e simpatias, téo

azevedo apresenta algumas crendices e adágios:

figueira: planta sagrada, no local que tem pé de figueira tudo corre bem. figo(s): comer significa satisfação; figos frescos é prosperidade; secos é sinal de decadência financeira; doce de figo é amizade sin- cera, auxílio de amigos. (azevedo, 1984, p.35)

nem sempre o papel da figueira é explicitado senão como mero elemento do enredo, como em A menina e a figueira, cabendo porém

a interpretação de sua importância no devido contexto. essa estória possui muitas variantes, como se depreende dos outros títulos que recebe (A madrasta, Figo da figueira, Menina enterrada, História da figueira) e das diversas formas de contar, embora se mantenha o

De domínio público, aqui citada a partir do relato feito por Souto maior (1988), trata-se de uma estória de maus-tratos a uma menina que teve por tarefa ficar espantando os pássaros de uma figueira, a pretexto de manter-se ocupada, enquanto a madrasta saía sabe-se lá para que afazeres. o pai, nessa estória, como em outras de madras- tas, viajava muito frequentemente, deixando os cuidados da casa e da menina para a madrasta. a criança, por distração, não obedeceu a ordem, indo brincar com outras crianças, e deixou a figueira ser atacada, o que serviu de motivo para que fosse enterrada viva. na fantasiosa estória, a menina é salva por um jardineiro e pelo pai.

José Lins do rego, no livro Menino do engenho, pela boca de

totonha contava estória semelhante (maior, 1988), e tantos outros escritores também assim o fizeram. nas diversas versões existem muitas variações, mas se mantêm os elementos principais, entre os quais a figueira. a figueira, nesse caso, é elemento contextual, sendo ideia-força a da madrasta perversa, reeditada após o caso amplamente divulgado na mídia de maus-tratos com final criminoso envolvendo o pai e a madrasta na capital paulista (Caso isabella, 2008; Brito, 2009).

Sobre essa lenda, há ainda algumas versões cantadas e outras transformadas em filmes. elba ramalho, ainda pouco conhecida na época, interpreta a “estória da figueira” em CD encartado no livro Folclore musicado da Bahia, de ester pedreira de Cerqueira,

lançado em 1978.

Variações sobre a música entoada nessa estória são muitas, como os versos com que a criança espantava os pássaros, retirado de neves (2009, p.1):

Xô, xô, passarinho, ai, não toques o biquinho, vai-te embora pro teu ninho, xô, xô, passarinho,

Do mesmo autor, quando se aproxima o final desse conto, a canção triste é entoada quando o capineiro carpia o terreno perto de onde a menina havia sido enterrada:

Capineiro de meu pai, não me cortes o cabelo, minha mãe me penteava, minha madrasta me enterrou, pelo figo da figueira

que o passarinho bicou. (ibidem)

o caráter mágico da figueira aparece ressaltado em várias estórias e contos, como no do caso registrado por Luciana Hartman (Fapesp, 2009). o enredo apresenta um dono de figueiral que espantava os amigos a tiros de espingarda. os surrupiadores de figo descobrem que ele tinha medo de assombração e o espantavam imitando vozes do além, a partir do próprio figueiral, ficando livres para o delito.

o que chama a atenção na literatura em que entra a figueira é o fato de esta sempre estar associada à sua prolificidade, seu sabor, sua cor e textura, como nos anteriormente citados e em outros, como no poema “o pisco e o figo” (petronilho, 2005), e em “a figueira” (audrey, 2009). no primeiro, um figo convida um pássaro a expe- rimentar suas qualidades, no segundo, uma figueira improdutiva deseja ser prolífica, o que consegue, mas passa a ser por demais assediada, arrependendo-se de ter desejado ser o que não era.

nas estórias de fundo moral, é comum encontrar figo e figueira associados à nobreza, como no caso do Talmude, em que se encon-

tram pelo menos duas estórias com a presença dessa planta. o

Talmude é um livro considerado sagrado, utilizado pelos rabinos, em

que se encontram registrados debates, tradições e contos judaicos de caráter moralizante.

em versões contadas por pinto (2009), na primeira das estó- rias, intitulada “o imperador e os figos”, um agricultor oferece as primeiras frutas de seu pomar ao imperador, recebendo em troca, cheia de ouro, a mesma cesta na qual levara os figos. Um outro

agricultor, invejoso, manda ao mesmo imperador uma cesta maior ainda, esperando retribuição semelhante, recebendo, no entanto, o desprezo do imperador.

na segunda estória, intitulada “os guardas do rei”, um cego e um coxo são os protagonistas. o rei, constituindo-os guardas de suas figueiras, ficou sabendo que os melhores frutos tinham desa- parecido logo depois da primeira noite de vigília daqueles guardas. interrogados, os dois inicialmente negam sua culpa alegando suas deficiências físicas, posteriormente confessando terem se associado para colher indevidamente os figos. ambos foram castigados.

entre as letras de músicas religiosas, a figueira também se faz presente, evocando a parábola evangélica:

ainda que a figueira não floresça e os campos não produzam mantimentos não vem das mãos dos homens

minha força e provisão É Deus a minha salvação É Deus o meu alto refúgio

ainda que as bençãos pareçam não chegar Deus é fiel e sem demora vem

a minha parte eu faço, eu não paro de adorar a ele minhas mãos levantarei

mesmo se eu passar por um deserto pelo vale ou seja onde for

nada poderá me abalar

pois quem me segura é o senhor Deus determinou no coração nos escolheu e nos chamou

e se chamou... com sua unção... nos capacitou Deus nos escolheu

Deus nos chamou Deus nos ungiu

o mito do papa-figo, em que pese o título que remeteria à fruta, nada, de fato, tem a ver com a planta da qual trata este artigo, apesar das mesmas grafia e fonética referentes ao fruto da figueira.

a expressão papa-figo é uma corruptela de papa-fígado e se refere a uma estória de fundo moralizante, de caráter repressor (Queiroga, 2009), usualmente contada a meninos de mau compor- tamento para amedrontá-los e forçá-los à obediência aos adultos (Barros, 2009). o mito teria surgido da incompreensão de campone- ses após uma epidemia da doença de Chagas, no nordeste brasileiro, quando agentes de saúde coletavam amostras do fígado de pessoas mortas com essa doença, em geral crianças (papa-figo, 2009), para verificação da causa mortis. o papa-figo é representado por um

negro velho, sujo, vestindo farrapos, com um saco. pode ser pálido, esquálido, com barba sempre por fazer. atrai crianças para comer- -lhes o fígado, com momices ou mostrando-lhes brinquedos. Costuma ficar à saída das escolas, jardins e parques. Conhecido em todo o Brasil. (Lenda o papa-figo, 2009, p.1)

Há ainda uma versão indicando ser o papa-figo uma pessoa rica, educada e respeitada, que foi vítima de uma terrível maldição, não se sabe por parte de quem. Depois de se alimentar do fígado de alguma criança, compensa financeiramente a família enlutada ao efetuar o enterro da pequena criatura por ele sacrificada (ibidem).

ressalta-se nesse item que a expressão “papa-figo” pode tam- bém se referir ao nome de um pássaro europeu, conforme citado por Cascudo (2002), por aquele consumir essa fruta com frequência, aumentando ainda mais a quantidade de variações nas estórias a serem contadas sobre o tema.

associada ao imaginário infantil, a estória da moura encantada também tem o figo presente. Um homem encontra uma mulher com um cesto de figos à cabeça e pede um, que guarda para comer mais tarde. ao sentir fome e tirar o figo do bolso, este se transformara em uma moeda de ouro, percebendo o homem que a mulher encontrada tratava-se de uma moura encantada (era uma vez, 2009). manuel e

os pássaros é outra estória em que o figo aparece como fruta desejada por uma criança maltratada pela patroa e bem cuidada por uma águia (torrado & malaquias, 2009).

as inúmeras representações infantis, juvenis e para adultos envolvendo o fruto da figueira reforçam a ideia de sua difusão e importância cultural em praticamente todo o país.

No documento Is Bn 9788539301874 (páginas 40-49)