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O FOCO NA MONODOCÊNCIA

No documento Tese D António Franco P. Silva (páginas 65-74)

REFLEXÕES E INTERROGAÇÕES INICIAIS

4. O FOCO NA MONODOCÊNCIA

Fora do quadro descrito atrás, quer os programas de ensino, quer os programas de formação inicial dos docentes, quer sobretudo as orientações expressas e, muito particularmente, a maior parte das acções de implementação da área promovidas pelos departamentos oficiais centrais, apontam para que seja o próprio docente a leccionar a EF, tal como as restantes áreas curriculares.

Recorde-se que para a actual LBSE, o ensino do 1º ciclo realiza-se no regime de monodocência, portanto, da responsabilidade pedagógica e administrativa de um só professor. É o modelo tradicional, e sempre

assim foi, com uma excepção que não muda a questão essencial48.

Recordamos o Artº 8º :

«No 1º Ciclo, o ensino é globalizante, da responsabilidade de um professor único,

que pode ser coadjuvado em áreas especializadas».

A parte do articulado que nós não sublinhamos pode ser entendida como um elemento legal acessório, uma espécie de concessão às intervenções governamentais, autárquicas, de clubes ou de federações desportivas, ou no enquadramento das escolas integradas do tipo 1, 2, 3, aspectos em que já tocámos.

Nesta perspectiva de monodocência, o professor único não se justifica por ser polivalente mas, sim, porque é um especialista em todas as áreas do programa. Mas quem o consegue ser?

O que este docente deve possuir, do nosso ponto de vista, é uma preparação genérica, embora consistente, dos respectivos conteúdos e, fundamentalmente, uma elevada capacidade de aplicação metodológica dos mesmos, tendo em vista o carácter básico, ou estruturante, do primeiro nível da escolaridade obrigatória.

Já no início do século XX, António Sérgio (1918: 19) defende que:

“O essencial é ter professores que saibam usar os bons métodos de ensino. Reparem que não digo: ter professores que conheçam bem os assuntos a ensinar; não digo mesmo: ter professores que conheçam bem as boas teorias de educação, lidas nos livros dos bons pedagogos”.

“Nenhum de nós ficará sendo um bom marinheiro por ler bons livros de...”

A monodocência é o melhor regime lectivo para concretizar a globalização exigida. Também é o único regime docente que permite

48 É o caso da Moral e Religião, que "... só pode efectuar-se mediante autorização do Director do Distrito Escolar, sob proposta do Prelado da Diocese" (nº 3 dos

Horários Escolares - programa em vigor - Organização de Classes e sua Distribuição, Escola Portuguesa, Suplemento nº 474, de 6 de Setembro de 1965). A Moral e Religião era dada habitualmente pelo pároco, por um ex-seminarista e, raramente e nas condições referidas, pelo professor titular. Actualmente, com abertura a outras religiões, a alternativa à educação cívica e o papel selectivo dos pais, o referido carácter de excepção à monodocência mantém-se.

que o mesmo professor acompanhe os mesmos alunos durante quatro anos, sendo esta característica considerada ideal do ponto de vista formativo, desde que as interrelações pessoais sejam marcadamente positivas e empáticas.

O regime da monodocência baseia-se em argumentos psicológicos e sociológicos que não vamos aqui expor, mas que não só justificam uma pedagogia globalizante como permitem aplicações curriculares integradas.

Dizemos atrás que o programa de 1990 parece estar organizado por

“disciplinas” e não por “áreas”, sendo, neste caso, contraditórios com

o regime da monodocência. E o articulado legal transcrito acima é claro: «No 1º ciclo, o ensino é globalizante, da responsabilidade de

um professor único...».

A globalização curricular, segundo Pacheco (1996), conduz às aprendizagens por unificação de conteúdos, independentemente das áreas curriculares.

Desde os inícios do século XX que a globalização escolar, em alternativa ao ensino por “disciplinas”, é uma questão pedagógica em aberto, especialmente com dois dos mais destacados pedagogos desse tempo: John Dewey (1859-1952), nos Estados Unidos, e Ovide Decroly (1871-1932), na Europa. Ambos colocam a criança no centro da acção pedagógica, construindo a sua autonomia através da própria experiência no seu meio social e conforme as suas necessidades e interesses. Um e outro, como educadores pragmáticos, subordinam o pensamento à acção e, daí, procurarem métodos activos: método dos projecto (Dewey) e centros de interesse (Decroly). E, para ambos, uma das necessidades fundamentais é a recreação, por meio de jogos e de outros tipos de exercitação corporal.

Dewey, estabelece uma ligação orgânica entre a educação e a experimentação (T. Santos, 1971) - “learning by doing” - com característica essencialmente social. Para tanto, a sua doutrina assenta em três pontos principais que continuam actuais: o

pragmático, realizado pela experiência real; o psicológico, colocando

o aluno como sujeito da acção educativa; o sociológico, integrando a escola na sociedade. As experimentações dos alunos são assumidas sob a forma de projectos (Planchard, 1973)49, técnica que o seu

discípulo William Kilpatrick desenvolve e pelos quais se pretende ligar o ensino à vida, partindo de problemas autênticos. Os projectos, hoje ressuscitados como pedagogia de vanguarda, são de diversos tipos, nomeadamente de jogos e de excursões, e desenvolvem-se até à promoção da aprendizagem globalizada que, assim, substitui os

programas formais.

Decroly, na sua obra de 1929, precisamente sobre este tema, fala do fenómeno da “percepção dos inteiros sem distinção das partes” (Abbagnano e Visalberghi, 1982), que leva à substituição dos programas das áreas escolares por unidades de trabalho (Planchard, 1973). Ele inclui na percepção a afectividade, elegendo-a como elemento pedagógico concretizando-se nas actividades escolares em torno dos “centros de interesse” ligados às necessidades bio- psicológicas fundamentais da criança e que compreendem a recreação. No seu princípio de ensino global, Decroly suprime da escola as matérias tradicionais, substituindo-as por outras, como as actividades expressivas onde surgem a ginástica e os jogos

educativos (Planchard, 1973).

Mas um modelo global só pode realizar-se, repetimos, com a monodocência.

49 Segundo o autor, um projecto, em Dewey, é uma actividade com finalidades reais

que mobiliza os alunos para as várias tarefas necessárias para as atingir. Tomando J-M. Barbier (1993), podemos hoje ampliar muito mais a noção de projecto de acção

Importa também distinguir um método global (que toma o todo sem distinção de partes) da função sintética (na qual a síntese supõe a união das partes distintas). É esta advertência que nos faz Claparède, para evitar possíveis confusões, que, não obstante, julgamos persistirem, propondo a “percepção sincrética”, em que a síncrese é, segundo Piaget, a tendência para ligar tudo a tudo (Abbagnano e Visalberghi, 1982)50, perspectiva assumida por Morin (200151) como o

«desafio do século XXI».

No método global, vai-se directamente, nos exemplos das iniciações da leitura e do salto em altura, respectivamente, para as palavras e para a transposição da fasquia, ao passo que, no método analítico, parte-se das letras e das componentes motoras isoladas. A abordagem metodológica global nem sequer é inversa da analítica. Insiste na percepção do todo, residindo aqui o processus do verdadeiro conhecimento, o saber. Simultaneamente, dá autonomia ao aluno, deixando que ele chegue por si mesmo às componentes constituintes, ou partes, que depois identifica e associa noutros conjuntos, acabando por dominar os saberes formais das áreas escolares.

A globalização não é apenas pedagógica, consistindo num processo de desenvolvimento cultural (Waters, 1994: 154) que afecta o sistema geral do conhecimento, nomeadamente a educação vindo, nesta medida, a interessar um número cada vez maior de investigadores e de educadores. O conceito de globalidade associa-se e amplia-se nas perspectivas mais contextualizadas de tipo holístico, naturalístico e sistémico, pois que são variantes doutrinárias com a mesma base de apreensão do todo, tomado no seu ambiente natural, como um organismo ou sistema dinâmico, conferindo-lhe prioridade

50 Para a definição de sincretismo também podemos recorrer a J. Leif (1976: 357). 51 Toda a sua obra com o título, precisamente, “O Desafio do Século XXI – Religar

sobre os seus elementos orgânicos aos quais se chega, todavia, por um processo analítico.

Nesta linha, vamos referir um pouco o modelo dos sistemas de acção que postula um paradigma sistémico pelo qual, genericamente, se procura compreender o ser humano como ele é na verdade: uma pessoa em permuta constante com o seu envolvimento real, físico e social, ou contexto ecológico, também este sempre em actividade, produzindo-se trocas permanentes e mútuas “tendo em vista

equilíbrios mais ou menos estáveis” (Barreiros & Sardinha, eds.,

199552), sendo o sistema ao mesmo tempo totalidade em si mesmo e

no seu exterior. Esta totalidade é, no fundo, um organismo lógico que

“morre”, sendo substituído por outro, quando se verifica a

transformação de uma parte do sistema a qual afecta, como reacções em cadeia, todo o conjunto, criando-se novas interdependências. Trata-se do “efeito de sistema” designado por Bourdieu (1969).

Na sua relação com o envolvimento, o ser humano capta directamente a informação (Barreiros & Sardinha, eds., 1995)53

necessária à sua acção por um processo intuitivo - teoria da

percepção directa -, sem ter de recorrer à mediação de construtos

perceptivos, como na teoria do esquema (Schmidt, 1975, in Barreiros & Sardinha, eds., 1995:12-23)54 do modelo informacional (Gibson,

1979; Kugler, Kelso & Turvey, 1982). Tal relação percepção-acção

52 Estes autores salientam a concepção do postulado da mutualidade: o facto destas

trocas entre envolvimento e indivíduo (permitidas pelas estruturas coordenativas elementares ou sinergias), constituírem uma mesma realidade de mútuos constrangimentos, no interior dum mesmo ecossistema.

53A informação percebida é única e específica no ecossistema considerado, vindo

daqui o postulado da especificidade.

54Notemos também que Dewey, no final da sua carreira, em meados do séc XX,

interpreta a percepção como uma transacção entre organismo e ambiente, possivelmente, numa nova prefiguração funcional do “circuito reflexo”, in E. R. Hilgard, op. cit., p. 414.

A teoria do Esquema é formulada por Schmidt (1975), a partir do desenvolvimento de noções variadas de representação mental antecipadora da acção, propostas por autores de inspiração teórica muito diversa. Vidé ainda: N. Mendes e V. Fonseca (1978) e M. Godinho, J. Barreiros e P. Correia (1997).

controlada pelo próprio envolvimento sobre as estruturas coordenativas é a “affordance”55, segundo Gibson (1979).

Nesta perspectiva, a aprendizagem é realizada não só num processo global como de uma forma mais dinâmica, mais real e mais envolvente. A acção inerente a esta teoria pode ser traduzida como movimento lógico, coordenado com o objectivo, com as propriedades do indivíduo e com o envolvimento, formando um todo.

Como um sistema aberto que é, produzindo trocas regulares com o meio envolvente, espera-se que a escola seja regida por uma pedagogia filiada na globalidade. No entanto, pela razões gerais expostas, vemos que nela pontifica a “disciplinaridade”, ou repartição por áreas curriculares. E nestes dois extremos - globalidade e “disciplinaridade”-, surge na escola, regulada pela sua reclamada propriedade de homeostasia dos conhecimentos, a

interdisciplinaridade, conceito que, não reunindo ainda acordo tem,

todavia, como denominador comum a integração dos saberes das diversas áreas escolares que, não obstante, continuam a existir por si, sendo, portanto, substituído por nós pela expressão integração

curricular, nos seus dois sentidos56. Considerada moda pedagógica na

última década de setenta a interdisciplinaridade deve ser compreendida como uma espécie de luta dos docentes contra a especialização e fragmentação do conhecimento científico e das áreas programáticas.

No CPES e no ES, às razões gerais pelas opções “interdisciplinares” acrescentam-se, entre outras, tais como, a diminuição do número de horas lectivas de certas áreas, com sobrecarga dos curricula, por

55 De acordo com M. Godinho, J. Barreiros e P. Correia (1997: 77), «o termo

“affordance” - inventado pelo autor - é um conceito central na ‘teoria’ e provém da visão de Gibson sobre a relação percepção-acção».

56 Para Jean Piaget (1972), a interdisciplinaridade será um “intercâmbio mútuo e integração recíproca entre várias disciplinas, tendo como resultado um enriqurecimento recíproco”. Para Guy Palmade (1979) é “a integração interna e conceptual que rompe a estrutura de cada disciplina para construir uma axiomática nova e comum a todas elas, com o fim de dar uma visão unitária de um sector do saber”, in O. Pombo et al. (1994).

causa da inclusão de maior número de áreas, numa «aproximação de

disciplinas com conteúdos semelhantes» (Pacheco, 1996: 82).

Mas onde a integração curricular tem mais história é no EP, precisamente porque a monodocência é um modelo lectivo muito favorável à sua prática, podendo confundir-se, complementar-se e ligar-se com os procedimentos globais. Aqui, é uma processologia com vários interesses: o da economia temporal, “dando” simultaneamente algumas áreas com menor duração do que a soma dos tempos lectivos de cada uma delas; o de interessar os alunos para as próprias aprendizagens ao participarem em projectos atraentes; o de iniciar, consolidar e aplicar aprendizagens de forma concreta e com elevado empenhamento cognitivo e afectivo dos alunos. Não obstante os seus aspectos positivos encontramos, por vezes, propostas tidas como versões interdisciplinares que nos parecem ser demasiado deformadoras, como é o caso das aplicações de certos manuais comerciais de exercícios escolares, tais como os de “Expressão Dinâmica”, de inspiração galaica, onde a expressão corporal de um tema qualquer, por parte dos alunos, por exemplo, basta para o professor “dar” EF.

Não terminamos estas reflexões em torno da globalização pedagógica sem uma importante e perturbadora advertência de Giddens (1998). A globalização educativa, tão atraente e realizadora para alunos e docentes, é, afinal, para aquele autor, a outra face da mesma moeda onde está gravado o ensino disciplinar: a modernidade. Quer isto dizer que o paradigma da racionalidade científica, consequente da modernidade, se espraia para a educação, assumindo aqui, numa face, a divisão disciplinar e, na outra, a globalidade. É que esta globalidade, para Giddens, é um processo de desenvolvimento desigual, que se fragmenta na medida que introduz novas formas de interdependência mundial.

Apesar de tudo, na actualidade e cada vez mais, o corpo, a matéria, o vivido imediato, ocupam o centro da existência, a vida das pessoas com as suas variedades, intensidades, imprevisibilidades, originalidades... que elas reflectem como boas ou más, num processo dialéctico, numa simbiose acção-pensamento-acção, sem fronteiras filosóficas.

Desta digressão, com foco na monodocência, podemos extrair em relação à EF no EP/1º ciclo, as seguintes questões de fundo:

Partindo do princípio de que um dado programa é elaborado segundo uma única lógica (e não duas em simultâneo), como é possível existir nele, indistintamente, organizações curriculares diferentes, por separação de áreas e, ao mesmo tempo, por globalização, como parece expressar o Artº 8º da LBSE que transcrevemos?

Será que os respectivos programas de EF, tomam o corpo, com a sua acção, como um meio comparticipante da educação básica geral neste nível de escolaridade e, ao mesmo tempo se assumem, contraditoriamente, numa concepção tecnocrata do exercício físico transformado em fim em si mesmo?

Numa perspectiva global da acção pedagógica, o corpo, com as suas actividades tão variadas é, ou não, um dos meios mais ricos e estimulantes de realização de projectos de integração curricular, para a formação dos alunos e que os programas devem veicular ? Existe uma metodologia de EF apropriada ao primeiro patamar da escolaridade básica com capacidade de concretizar as suas propostas programáticas, pelo próprio docente do

Encontrar respostas satisfatórias para tais interrogações é um dos desafios a que nos propomos.

No documento Tese D António Franco P. Silva (páginas 65-74)