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O FOCO NO CORPO

No documento Tese D António Franco P. Silva (páginas 47-55)

REFLEXÕES E INTERROGAÇÕES INICIAIS

2. O FOCO NO CORPO

Os diversos conceitos de corpo suportam os diferentes modelos de EF e neste sentido, entre outros possíveis, concentramo-nos nos seguintes postulados:

O corpo como elemento humano de natureza material e mortal, alberga a alma, de natureza espiritual e eterna e, por isso, ele deve

31 O conceito de senso comum, tomado por este autor, é o do conhecimento vulgar

e prático do quotidiano, imetódico, retórico e metafórico, porque obtido pela consciência imediata, sendo o destino de todo o conhecimento considerado científico.

ser saudável, para não prejudicar as virtudes desta, preservando a saúde como meta dominante da actividade física:

A EF, numa perspectiva higienico-terapêutica realizada através da prática do exercício, das atitudes e dos hábitos físicos, supervisionados pela medicina, conduz à manutenção e melhoria da

saúde (objectivos higienistas e do tipo terapêutico ).

O corpo-matéria, precário e corrupto, é fonte do mal e, portanto, deve ser disciplinado e sujeito a provas. Na escola, as provas têm como componente essencial a emulação, que se reveste de três formas: os castigos (a escola tradicional institui a agressão corporal como meio disciplinador corrente, além das reprovações e das censuras constantes), os prémios (incluindo os lugares de honra, as aprovações, as distinções, os elogios, todos administrados parcimoniosamente) e os desafios (interrogatórios, sabatinas, exames e competições).

O factor comum à emulação é o “ideal agonístico” ou “espírito competitivo” (F. Gomes, 1995: 39-40) que hoje parece caracterizar excessivamente toda a EF de orientação desportiva:

Na EF, a disciplina corporal cumpre-se pela administração rigorosa, modelar, doseada e colectiva do exercício físico, de preferência, com

carácter competitivo (conceito metodológico).

O corpo, na escola, deve realizar exercícios recreativos no pátio durante os intervalos das (outras) áreas curriculares. Sendo a sala de aula o local nobre e sério, identificado com a própria escola, onde são leccionadas as áreas intelectuais ou cognitivas, torna-se necessário compensar os alunos do esforço e da imobilidade provocados pelas aulas. O pátio, quando existe, é o espaço para os relacionamentos espontâneos e caóticos, para as brincadeiras e os jogos. É a EF recreativa:

A EF no EP, não sendo área de sala, não é importante, ficando com o estatuto de recreação e de catarse que (ainda) possui (natureza

educativa secundária).

O corpo na escola deve ser adestrado segundo processos massificadores, consoante as formas em uso e mais ou menos aparatosas e publicitadas para participar no reforço do poder instituído, como importante material de propaganda política:

A EF no EP serve para os clubes desportivos captarem precocemente os seus atletas e, de preferência, treiná-los. Também serve para as autarquias mostrarem, de modo fácil, obra desportiva. A EF no EP serve igualmente para os governos apresentarem publicamente o “desporto escolar” infantil, que na realidade não existe, através de

grandes aglomerações de crianças 32 (finalidades estranhas ao EP:

vínculo político).

O corpo como centro do fenómeno educativo deve ser auto- explorado, de forma regular e metódica, ao ritmo das necessidades e possibilidades das crianças e de acordo com os seus próprios interesses para o desenvolvimento equilibrado e optimizado da personalidade:

A EF no EP é meio propiciante de maturidade, em especial pela auto- confiança, ou auto-conhecimento, que a realização de determinados exercícios físicos promove (formação pessoal: construção do eu).

O corpo, como meio relacional, deve ser abundantemente solicitado para o exercício das interacções com o mundo exterior, aumentando as capacidades de informação e de exteriorização dos alunos, das suas ideias e dos seus sentimentos, para o desenvolvimento de uma

32 Está quase generalizada a ideia de que no EP se deve começar a “fabricação” de

campeões desportivos, pois “de pequenino se torce o pepino”. Porém, não vemos a mesma preocupação em formar no EP os futuros músicos sinfónicos e compositores, os artistas plásticos, os escritores, os físicos, etc..

comunicação e expressão fáceis, agradáveis e eficazes com as outras pessoas:

A EF no EP compreende uma área multidisciplinar de expressão por excelência, constituindo matéria curricular prioritária (formação

pessoal: comunicação, expressão, socialização).

O corpo, como estrutura humana, desenvolve as capacidades condicionais e coordenativas, organiza as funções lógicas elementares, propedêuticas das aprendizagens escolares, concretiza noções complexas e projectos interdisciplinares:

A EF no EP, com as suas diversas formas de motricidade, participa nas metodologias regulares das aprendizagens escolares, previne e compensa dificuldades surgidas e, assim sendo, é uma área na primeira linha de importância curricular (formação pessoal:

desenvolvimento e estruturação das aprendizagens básicas).

Nestes fragmentos opinativos sobre o corpo e os modelos de EF deles emergentes sobressaem duas lógicas opostas de interpretação sobre a mesma realidade que é o ser humano, filiadas à distância, insistimos, na filosofia platónica ou na aristotélica.

Vamos condensar, por agora, essas duas lógicas em duas vertentes: a) do corpo-objecto,

b) do corpo-sujeito.

A primeira insere-se no paradigma (Zeichner, 1983: 8-61)33 cartesiano

da dualidade espírito-matéria, ou mente-corpo, atrás evocada, e no qual a dimensão corporal é, essencialmente, mecânica.

A EF, nesta perspectiva, concebe o exercício físico apenas como resultando do funcionamento de alavancas com fulcro nas articulações humanas móveis e sujeitas às leis universais da Física -

33 A partir do termo vulgarizado por Kuhn (1962, 1970, 1972), tomamos de Zeichner

(1983), o conceito de paradigma: sistema de pesquisas; pressupostos e princípios configuradores; matriz de crenças.

por exemplo, “a função faz o órgão” - e, neste princípio funcional, a repetição, à qual se chama impropriamente “treino”, é a condição do desenvolvimento (da máquina corporal). O exercício físico explica-se por si mesmo, com finalidade predeterminada.

Deste modo, o que é válido para uma pessoa serve para todas as outras, com pequenas alterações, devidas a diferenças (mecânicas) individuais. As aulas são todas semelhantes, com os mesmos “esquemas” de exercícios. Aliás, o ideal, aqui, é o modelo único, a ausência de desigualdades.

Quem, da nossa geração, não se lembra do ideal físico (o modelo do atleta grego) do professor de EF?34 - ideal transferido nos dias de

hoje, pelos ditames do consumismo, para o “visual” e para a “idolatria do corpo”, nas representações extremadas do “grande-

músculo” e “bulimic-models”?

O bom professor de EF, e de qualquer outra área curricular35, é

sempre o modelo à vista de todas as virtudes demonstradas aos seus alunos que atentos, submissos e ansiosos por imitar o mestre, atingem pelas repetições, também eles, a perfeição. Eis alguns dos ingredientes da pedagogia (tradicional) resultante deste modelo: a lição colectiva, a demonstração, a atitude rígida e distanciada, a observação avaliativa, o autoritarismo, e a coacção, por parte do docente; o cumprimento exacto das ordens dadas, o silêncio, a atenção, a imitação e a repetição, quanto aos alunos.

34 Além da exigência nas diversas provas gimodesportivas de aptidão para o INEF,

os exames médicos verificavam o bom estado de saúde e o bom aspecto físico exterior em ausência de “defeitos”, em peso, em altura e noutras medidas dentro dos parâmetros do modelo.

35 A partir de agora, em vez de disciplina curricular, e para não se confundir com

disciplina comportamental, utilizamos o termo área curricular ou, simplesmente,

área. No entanto, no capítulo seguinte apresentamos uma melhor definição deste e

É o ambiente reprodutivo e perfeccionista que confunde a EF, vendo-a sem distinção de objectivos, de meios e de processos, tanto na escola como num clube desportivo36.

De acordo com o paradigma dualista, na escola, para atingir a harmonia educativa, enaltecida nos objectivos gerais programáticos, deve estabelecer-se uma ligação do corpo com a mente, que é alcançada, conforme neles se proclama, através das virtudes físicas, tais como a coragem, a perseverança, a obediência, quando transferidas para a optimização das aprendizagens escolares. Por outras palavras, tal ligação funciona quando o físico não estorva, e até favorece, a mente.

Também nesta mesma óptica, existem programas oficiais cujos conteúdos e metodologias são para aplicação indiferenciada do primeiro ao último ano da escolaridade do EP, já que são concebidos num único molde formativo para servir todas as crianças, tenham elas seis, nove ou catorze anos.

Herdeiros da cultura cartesiana, quantos de nós, professores, pais ou governantes, não caímos frequentemente no defeito da

generalização (Ryle, 1970)37 mencionando, por exemplo, a expressão

“educação física do ensino primário” querendo referir-nos a uma única proposta curricular, como se fora uma receita igual para todos os alunos?

36 Tal confusão resulta das concepções filosóficas que nos conduzem à ideia de corpo-objecto, que estamos a acompanhar, e à teoria do homúnculo.

37 O defeito da generalização tem a sua lógica na escola de massas com inspiração

no paradigma dominante. Pode ser considerado um dos erros categoriais, segundo a expressão de Gilbert Ryle para designar a falácia onde assenta, por exemplo, a argumentação cartesiana ao descrever o espírito como elemento humano não material, em termos materiais de espaço e de tempo. A generalização dum conceito de EF será um erro categorial, na medida em que se abstrai do sujeito, dum sujeito concreto, a educar fisicamente, para quem supostamente se dirige, e, assim sendo, tal conceito não pode ser válido para diferentes sujeitos, tais como cada um dos alunos de uma turma escolar e de várias turmas de diferentes anos de escolaridade. Veja-se, ainda, a definição de erro categorial, partindo de Ryle, in Simon Blackburn (1997: 134).

Na lógica do corpo-sujeito, e para agarrar já o último aspecto do ponto anterior, não se pode aceitar um único programa para cada escola, nem para todos os alunos da turma, como se houvesse um só corpo, com as mesmas necessidades e possibilidades, para muitos sujeitos. Naturalmente que os sujeitos têm corpos idênticos, mas não iguais, e que os sujeitos são inseparáveis dos seus elementos, nomeadamente dos contextos constrangentes (se é que o corpo é, apenas, um elemento do sujeito e não a própria pessoa humana). A actual “gestão flexível do currículo” não está já nesta perspectiva unitária? Interessante é constatar, hoje, como Rousseau valoriza esta individualidade-unidade da criança:“...a infância (entenda-se, a infância em geral e, também, cada criança) tem processo de ver,

pensar e de sentir que lhe são caraterísticos” (Chateau 1956: 208)38.

Nesta perspectiva, as práticas físicas, sob a forma de exercícios, actividades e projectos, são a concretização, ou a expressão, dos propósitos formulados previamente, consoante as necessidades dos alunos, e realizadas segundo os ritmos individuais ou grupais. Os alunos, como parte mais interessada, participam com as suas experiências pessoais, na construção dos projectos e na modificação criativa das respostas motoras, apelando-se à sua participação voluntariosa e responsável e à reflexão clarificadora do vivido colectivamente39.

Em tal concepção corporal, existem metas possíveis, mas não modelos predeterminados, não havendo também lugar à demonstração exemplar ou modelar. Aliás, o verdadeiro interesse dos actos dos alunos está precisamente na sua diferenciação, pela originalidade e pela diversidade, porque não sendo ninguém igual a outro nem, tão-pouco, existindo uma pessoa no mesmo contexto de

38 J. Chateau transcreve a expressão de Rousseau, in Émile (livro III), De Julie, V, 3,

que pode ser reforçada com a seguinte frase: “tratai o vosso aluno de acordo com a

sua idade...A infância tem maneiras de ver, de pensar e de sentir que lha são próprias, nada mais insensato do que querer substituí-las pelas nossas...”

outrem, não pode haver duas respostas iguais. Assim, o movimento humano intencional, que a EF utiliza, é potencialmente de uma riqueza e variabilidade infinitas.

Estamos, portanto, na presença de uma pedagogia (actual) totalmente oposta à anterior, na qual as funções assumidas pelos professores e pelos alunos são completamente diferentes, desempenhando uns e outros, simultaneamente, papéis de autores e de actores. É uma pedagogia construtivista e também naturalista que valoriza os processos mentais, as atitudes, os valores, os contextos ecológicos para a tomada da iniciativa pessoal, mais do que os produtos e os pré-conceitos, com vista à construção continuada do aluno como pessoa e como membro social (Martins e Veiga, 1999).

As formas de que se reveste a EF são meios (e não fins) que conduzem ao desenvolvimento pessoal e social dos alunos, à sua autonomia. Ela própria, tal como as restantes áreas curriculares, são grandes meios para o alcance das metas educativas institucionalmente traçadas, assim se justificando a sua inclusão nos

programas.

Após estas reflexões, tomam vulto, para nós e em relação à EF no EP/ 1º ciclo, as seguintes dúvidas:

No EP, qual a importância efectiva do corpo, com os seus valores ou ausência deles?

Que conceitos e que conteúdos de EF são realmente adequados a este nível da escolaridade?

Quais, em concreto, os contributos da EF para a formação geral do aluno do EP?

A EF no EP fica irredutivelmente secundarizada ou marginalizada nos curricula como área corporal, por causa do modelo filosófico dualista ao qual se submete a organização escolar?

A condição de área curricular secundária facilita o aproveitamento fortuito da EF do EP pelos poderes regionais e nacionais, através de práticas físicas de impacto político?

Estas são algumas das questões, a acrescentar às colocadas noutros pontos á frente, que queremos ver de alguma forma respondidas.

No documento Tese D António Franco P. Silva (páginas 47-55)