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CAPÍTULO II – AS SOCIEDADES ANÔNIMAS

II.4 O governo da empresa e o poder dos administradores

Até 1930, nos EUA os acionistas majoritários comandavam a sociedade como se fosse sua propriedade privada. Nesta época, a doutrina norte- americana distinguiu adequadamente a propriedade de ações do exercício do poder nas sociedades anônimas, separando a gestão da titularidade das ações, reconhecendo então a sociedade anônima como entidade autônoma, que se distingue das pessoas dos acionistas.

Naquela época vigorava a teoria contratualista, segundo a qual o interesse da sociedade confundia-se com o interesse do grupo de acionistas, de modo que os administradores de tais sociedades deviam atuar sempre visando os interesses dos acionistas, sem observar os interesses dos empregados, da comunidade local ou da nação.

Em oposição à teoria contratualista teve origem após a Primeira Guerra Mundial a teoria institucionalista, através de Walter Rathenau, economista alemão que em período de crise econômica concebeu a grande sociedade como um instrumento para o renascimento econômico do país. Para Rathenau, as sociedades existem e se desenvolvem não para atender aos acionistas, mas sim para servir ao interesse público. Diante disso, a assembléia geral de acionistas é desvalorizada em favor do órgão de administração, que deve considerar os interesses externos dos acionistas88.

86 Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, cit., p. 11-12.

87 Governo da empresa na definição dada por Arnold Wald significa “o estabelecimento do Estado de Direito na sociedade anônima, ou seja, refere-se à organização e à dinâmica dos poderes, ao estabelecimento da adequada definição dos órgãos sociais e das respectivas competências, assim como dos direitos e deveres dos vários acionistas. No fundo, significa a institucionalização da empresa, mediante a regulamentação de sua estrutura administrativa”. O Governo das Empresas. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, Ano 5. jan.-mar. de 2002. Arnoldo Wald (Coord.). Editora Revista dos Tribunais. p. 55.

88 Eduardo Secchi Munhoz, Poder de controle e grupos de Sociedades. Empresa Contemporânea e Direito Societário. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 38.

Após a Segunda Guerra Mundial, as dimensões das companhias aumentaram muito, em decorrência do processo intenso de globalização das economias. Em decorrência da pulverização das ações, da complexidade do mundo empresarial, das exigências de especialização e da demanda de sofisticados métodos para a gestão de uma companhia, os administradores passaram a ter maior autonomia, adquirindo com isso mais poder. Esse poder amplo concedido aos administradores fez que substituíssem o capitalista empreendedor que os precedeu.

Há, em conseqüência, a ruptura do binômio poder-risco, considerado como um dos principais fundamentos do capitalismo. Isso porque o gestor do capital não é mais o seu proprietário, mas, sim, os administradores da companhia, geralmente profissionais sem vínculo acionário. Adolf A. Berle e Gardiner C. Means reconheceram o poder dos administradores, classificando- o como o quinto poder de controle da sociedade89.

Como conseqüência deste fenômeno, a vontade dos administradores passa a ser autarquicamente exercida, não cabendo aos acionistas outro papel senão o de homologar formalmente os atos daqueles.

Diante de tanto poder, alguns administradores cometeram abusos, haja vista conflito entre os interesses dos administradores e da própria sociedade e do país. Os administradores preocupavam-se com seus salários, gratificações, opções de compra de ações (stock options), ou seja, tinham planos a curto prazo, enquanto a sociedade tinha planos de médio e longo prazos.

89 Berle e Means classificaram o poder de controle em cinco espécies: (i) controle fundado na posse da quase-totalidade das ações; (ii) controle fundado na posse da maioria das ações; (iii) controle obtido mediante expedientes legais; (iv) controle com menos da metade das ações; (v) controle administrativo ou gerencial. A Moderna Sociedade Anônima e a Propriedade Privada. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. Editora Victor Civita, 1984. p. 85-98. Fabio Konder Comparato, tomando como ponto de partida a classificação proposta pelos autores norte-americanos, reduz a quatro as modalidades de controle interno, quais sejam: controle totalitário, majoritário, minoritário

Os acionistas minoritários que eram pessoas físicas passaram a ser Fundos de Ações, com força de atuação e dimensões muito maiores, os quais passaram a exigir maior atenção dos administradores e controladores das empresas. Esta fase foi chamada por Peter Drucker the “revolução invisível”. Os fundos se organizaram, passando a monitorar as empresas, exigindo informações amplas e claras e acompanhando a gestão dos negócios de perto, foi assim que os acionistas minoritários começaram a intervir nas empresas, liderando movimentos que visavam a modificação da política e da gestão empresarial. Portanto, o minoritário deixou de ter uma função passiva. Os fundos passaram a integrar o Conselho de Administração e os comitês indicavam representantes independentes para integrá-los. Diante disso, os administradores têm sua competência e atuação ampliadas. Na composição do conselho de administração que no passado era de pessoas ligadas aos controladores, passaram a encontrar conselheiros independentes, representantes dos minoritários e da própria sociedade90.

Segundo estudo de Arnoldo Wald, na Inglaterra, a questão sobre o governo da empresa passou a ser discutida a partir de 1981 por sugestão do Banco da Inglaterra, que defendia a presença de membros independentes nos Conselhos de Administração. Em 1992 foi elaborado um código das melhores práticas (Code of Best Practice), que estabelecia mecanismos de controle da atuação da diretoria pelo Conselho de Administração. Atualmente, a legislação determina que a empresa deve atender aos objetivos comunitários e incentiva os fundos de pensão a aplicar seus recursos em sociedades cuja atuação respeite os critérios sociais, ambientais e éticos, além dos fins econômicos. Na Alemanha, os bancos figuravam como controladores de muitas companhias, situação esta que foi alterada em decorrência da edição

e gerencial. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 3. ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 1993. p. 38.

90 Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem. Ano 5. jan.-mar. de 2002. Arnoldo Wald (Coord.), cit., p. 63.

de normas limitadoras da atuação dos bancos como principais acionistas. A idéia de maior transparência na gestão societária foi adotada aos poucos. Na França, durante muitos anos o Estado administrou as empresas. Muitos anos após as privatizações, desenvolveu-se o capitalismo francês mediante presença relevante do capital estrangeiro na Bolsa de Paris. Apesar de várias privatizações, somente com a privatização do BNP Paribas é que se reconheceu terem as empresas francesas saído do jugo do Estado. A jurisprudência francesa obrigou os administradores a uma maior transparência nas suas decisões, fortalecendo os Conselhos de Administração, os quais passaram a ter mais independência91.

A administração das sociedades por ações era, portanto, o órgão de maior importância, haja vista o poder e as conseqüentes responsabilidades atribuídas pelos acionistas. Neste sentido, João Eunápio Borges92:

Os acionistas abdicaram em seu favor dos poderes que têm, em face da lei, transferindo-lhe direitos mas aumentando-lhe a responsabilidade.

E a diretoria assumiu resolutamente essa responsabilidade e passou a exercer ditatorialmente aqueles direitos. Em geral, com grande proveito para a empresa que somente pode desenvolver-se e progredir no regime fortemente majoritário que caracteriza o anonimato. Que seria das grandes sociedades anônimas se a atuação dos diretores se subordinasse às injunções e entraves de sistemas oriundos da representação proporcional? Elas seriam tão ingovernáveis como certo país que bem conhecemos, onde o Poder Executivo não tem nem ao menos o poder de escolher livremente os seus auxiliares direitos. Fica-lhe somente a responsabilidade da má escolha feita por outros, com grandes danos para a coletividade.

É certo, pois, que as sociedades anônimas valem o que vale a sua diretoria. E o fator confiança, aquele intuitu personae que seria o característico das sociedades de pessoas, continua a existir nas sociedades anônimas, deslocando-se apenas das relações entre os sócios, para as relações entre os acionistas e a diretoria.

Tanto na fase de constituição da sociedade como durante a sua existência, quem subscreve ações ou posteriormente as adquire tem, em geral, os olhos fixos nos fundadores ou diretores.

Isso explica, aliás, por um fenômeno puramente psicológico, a diversidade na cotação de ações de certas sociedades: com o mesmo objeto, o mesmo capital, a mesma situação econômica, pagando dividendos iguais, no entanto, as ações de umas valem mais, na bolsa,

91 Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, ano 5, cit., p. 64-65. 92 João Eunápio Borges, Curso de Direito Comercial Terrestre, p. 489-490.

do que as de outras. Simples questão de maior ou menor confiança nos diretores.

Nenhum mal existe, pois, no ditatorialismo dos diretores. Indispensável é que a sua autoridade forte tenha como correspectivo uma grande e efetiva responsabilidade. É aliás o que se preconiza para característicos de uma sã e autêntica democracia: liberdade, autoridade, responsabilidade.

Waldirio Bulgarelli, ao tratar dos deveres e responsabilidades dos administradores informa que “Poder sem responsabilidade converte-se obviamente em arbítrio. Por esta razão é que a legislação atribui em contrapartida às funções e aos poderes conferidos aos administradores deveres e responsabilidades”93.

Alfredo Lamy Filho, ao tratar do poder da empresa e sua correlata responsabilidade, reconhece que os administradores detêm um poder da mais relevante expressão, haja vista tomarem decisões tão abrangentes, de que dependem a vida e a realização de tantas pessoas e o desenvolvimento econômico em geral. Diante disso, dispõe ainda que “A existência desse poder empresarial, de tão extraordinário relevo na sociedade moderna, importa – tem de importar – necessariamente em responsabilidade social”94. O Autor no seu estudo refere-se ao debate realizado entre os professores Adolf Berle e Merich Dodd Jr., através da Harvard Law Review, anos de 1931/1932. Berle sustentava que os poderes e responsabilidades dos administradores são necessariamente e em todas as hipóteses “exercisable only for the ratable benefit of all the stockholders as their interest appears”, enquanto Dodd afirmava que o uso da propriedade privada envolvia fundamentalmente o interesse público “deeply affected with a public interest”, que terminou com a concordância de Berle.

Eduardo Secchi Munhoz, ao fazer referência a este debate, também cita que Berle apesar de ter concordado com Dodd deixou claro que a ênfase na

93 Manual das Sociedades Anônimas, cit., p. 181. 94

Novos Estudos de Direito Comercial em Homenagem a Celso Barbi Filho. Rio de Janeiro: Forense. Theophilo de Azeredo Santos (Coord.), 2003. p.15.

visão da empresa como unidade produtora de lucros não poderia ser abandonada até que o reconhecimento de interesses externos viesse acompanhado de um sistema eficaz que, de um lado, atribuísse legitimidade aos titulares desses interesses para sua defesa e, de outro, estabelecesse os correspondentes deveres e responsabilidades aos administradores95.

O autor Alfredo Lamy Filho cita o estudo realizado por Eugene Rostow96 em que é transcrita manifestação do ministro Douglas da Corte Suprema, que na época era o presidente do SEC.

Hoje é geralmente reconhecido que todas as companhias possuem um elemento de interesse público. O Diretor de uma sociedade deve pensar não somente em função dos acionistas mas também do trabalhador, do fornecedor, do vendedor, e do consumidor último de seus produtos. Nossa economia é como uma corrente que não será mais forte que qualquer de seus elos. (manifestação do Ministro Douglas, da Corte Suprema, chairman da SEC em 2003)

No Brasil, a lei vigente reconhece que o controlador e os administradores da sociedade devem tomar em conta os interesses externos da sociedade, conforme pode ser observado nos artigos abaixo transcritos:

Art. 116, parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objetivo a cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. (grifos do autor)97

95 Eduardo Secchi Munhoz, Empresa Contemporânea e Direito Societário. Poder de Controle e Grupos de Sociedades. 1. ed., São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002.

96 Novos Estudos de Direito Comercial em Homenagem a Celso Barbi Filho. A Empresa- Formação e Evolução – Responsabilidade Social. Rio de Janeiro: Forense. Theophilo de Azeredo Santos (Coord.), 2003. Pág. 16.

97 A exposição de motivos da Lei 6.404/76 comenta os fundamentos desta inovação. “O Art. 116 dá ‘status’ próprio, no Direito Brasileiro, à figura do “acionista controlador”. Esta inovação em que a norma jurídica visa a encontrar-se com a realidade econômica subjacente. Com efeito, é de todos sabido que as pessoas jurídicas têm o comportamento e a idoneidade de quem as controla, mas nem sempre o exercício desse poder é responsável, ou atingível pela lei, porque se oculta atrás do véu dos procuradores ou dos terceiros eleitos para administrar a sociedade. Ocorre que a empresa, sobretudo na escala que lhe impõe a economia moderna, tem poder e importância social de tal maneira relevantes na comunidade que os que a dirigem devem assumir a primeira cena na vida econômica, seja para fruir do justo reconhecimento pelos benefícios que geram, seja para responder pelos agravos a que dão causa. O tema cresce em importância quando se considera

Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder.

§ 1º São modalidades de exercício abusivo de poder:

a) orientar a companhia para fim estranho ao objeto social ou lesivo ao interesse nacional, ou levá-la a favorecer outra sociedade, brasileira ou estrangeira, em prejuízo da participação dos acionistas minoritários nos lucros ou no acervo da companhia, ou da economia nacional. (grifos do autor)

Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa. (grifos do autor)

É importante observar a ponderação feita por Berle, quando do debate com Dodd, de que o atendimento dos interesses externos (dos trabalhadores/ da comunidade/ da nação) somente seria possível após a elaboração de um sistema razoável e eficaz de atribuição de legitimidade aos titulares desses interesses para sua defesa e de deveres e responsabilidades aos condutores da atividade empresarial.

No Brasil inexiste um sistema dessa natureza, visto que a ação de responsabilidade por abuso de poder de controle é restrita aos acionistas, de modo que não há um agente legitimado para agir em prol do bem público. A ausência de um sistema de proteção retoma a discussão sobre quais interesses devem ser perseguidos pela sociedade.

Fabio Konder Comparato reconhece que atender aos interesses externos não significa transformar as sociedades em órgãos públicos. O escopo lucrativo fica subordinado, porém, aos interesses comunitários e nacionais, que prevalecem em caso de conflito98.

que o controlador, muitas vezes, é sociedade ou grupo estrangeiro, que fica, por força de sua origem, excluído até mesmo das sanções morais da comunidade.”

A simples atribuição ao controlador e aos administradores de deveres e responsabilidades para com acionistas, trabalhadores, comunidade local e nação, desacompanhada de uma definição de critérios objetivos para solucionar os conflitos de interesses, consubstancia fórmula genérica, deixando margem de manobra por parte dos condutores dos negócios sociais, o que contribui para a ineficácia do sistema de atribuição de responsabilidade. Afinal, quando o poder não é bem definido, torna-se difícil identificar os casos de desvio, o que é fundamental para a definição da responsabilidade do controlador e do administrador.

A sociedade anônima, portanto, deixou de ser propriedade individual e exclusiva do acionista controlador para dar origem a uma parceria, exigindo um novo padrão de conduta por parte dos administradores e dos maiores acionistas.

Arnold Wald resumiu de forma muito precisa as características do governo da empresa e as principais qualidades que se exigem no governo da empresa, conforme abaixo:

São características do governo de empresa:

a) separação e o equilíbrio dos poderes entre os órgãos sociais (Diretoria, Conselho de Administração e Assembléia Geral);

b) presença de administradores independentes no Conselho de Administração, ainda que todos não o sejam;

c) a convergência dos interesses dos acionistas controladores, dos administradores e dos demais integrantes da empresa;

d) a ampliação dos deveres do controlador e do administrador e a exigência da sua conduta conforme o princípio da boa-fé e o interesse social, o que significa o fim do nepotismo e da idéia de sociedade como propriedade do controlador;

e) existência de um amplo sistema de informações aos acionistas e ao mercado, as quais devem ser divulgadas para todos os interessados em igualdade de condições;

f) conhecimento, por todos os acionistas, das remunerações, vantagens e eventuais conflitos de interesses do controlador, dos demais acionistas e dos administradores;

g) fortalecimento do Conselho Fiscal, para examinar, além dos aspectos formais, a atuação da diretoria e os seus resultados.

Qualidades exigidas no Governo de Empresas

a) transparência (full disclosure); b) lealdade ou integridade (integrity);

c) responsabilidade de todos os participantes de prestar contas (accountability).

Trataremos as conseqüências da atribuição de poder aos administradores (Deveres e Responsabilidades) com maior profundidade no Capítulo V.

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