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CAPÍTULO III – MERCADO DE CAPITAIS

III.2. O mercado de capitais no Brasil

III.2.3. Poder Regulamentar da CVM

O desenvolvimento do mercado de capitais depende da conjugação de interesses de investidores que aplicam recursos no mercado com os de sociedades interessadas na obtenção de financiamento. Ocorre que as forças do mercado nem sempre atendem aos interesses dos investidores, de modo que passa a ser fundamental a intervenção estatal para assegurar o funcionamento regular do mercado. Norma Parente expõe que “nesse caso, o regulador deve estabelecer como um dos pilares de sua atividade a proteção ao investidor. Nesse sentido, é fundamental que seja assegurado o rápido e uniforme fluxo de informações entre a companhia aberta e o mercado”.

O aparecimento do papel regulador do Estado surge portanto quando o investidor não tem o poder de gestão e sua expectativa financeira depende diretamente do sucesso do tomador dos recursos. Quando um investidor adquire um valor mobiliário, o tomador dos recursos é que passa a comandar a ação e por esta razão é que a legislação e o Estado interferem na gestão do tomador através da criação de regras e sanções.

Nas palavras de Ary Oswaldo Mattos Filho

O pressuposto é que o investidor não controle o empreendimento no qual seus recursos foram investidos. Assim, o debenturista não tem poder de gestão, e o preenchimento de sua expectativa financeira depende diretamente do sucesso do tomador dos recursos. É esta a situação que gera o aparecimento do papel regulador do Estado, dada a inexistência, em maior ou menor grau, do poder de decisão do investidor sobre seu investimento116.

O objetivo, portanto, do legislador ao instituir o poder regulamentar ou disciplinar é a tutela do mercado, que pode ser entendida como o conjunto de atribuições que competem à CVM, nos termos dos artigos 8º e 9º117. Neste sentido, conclui José Alexandre Tavares Guerreiro:

117 Art. 8º “Compete à Comissão de Valores Mobiliários:

I - regulamentar, com observância da política definida pelo Conselho Monetário Nacional, as matérias expressamente previstas nesta Lei e na lei de sociedades por ações;

II - administrar os registros instituídos por esta Lei;

III - fiscalizar permanentemente as atividades e os serviços do mercado de valores mobiliários, de que trata o art. 1º, bem como a veiculação de informações relativas ao mercado, às pessoas que dele participem, e aos valores nele negociados;

IV - propor ao Conselho Monetário Nacional a eventual fixação de limites máximos de preço, comissões, emolumentos e quaisquer outras vantagens cobradas pelos intermediários do mercado;

V - fiscalizar e inspecionar as companhias abertas dada prioridade às que não apresentem lucro em balanço ou às que deixem de pagar o dividendo mínimo obrigatório.

§ 1o O disposto neste artigo não exclui a competência das Bolsas de Valores, das Bolsas de Mercadorias e Futuros, e das entidades de compensação e liquidação com relação aos seus membros e aos valores mobiliários nelas negociados.

§ 2o Serão de acesso público todos os documentos e autos de processos administrativos, ressalvados aqueles cujo sigilo seja imprescindível para a defesa da intimidade ou do interesse social, ou cujo sigilo esteja assegurado por expressa disposição legal.

§ 3º Em conformidade com o que dispuser seu regimento, a Comissão de Valores Mobiliários poderá:

I - publicar projeto de ato normativo para receber sugestões de interessados;

II - convocar, a seu juízo, qualquer pessoa que possa contribuir com informações ou opiniões para o aperfeiçoamento das normas a serem promulgadas.

Art. 9º A Comissão de Valores Mobiliários, observado o disposto no § 2o do art. 15, poderá:

I - examinar e extrair cópias de registros contábeis, livros ou documentos, inclusive programas eletrônicos e arquivos magnéticos, ópticos ou de qualquer outra natureza, bem como papéis de trabalho de auditores independentes, devendo tais documentos ser mantidos em perfeita ordem e estado de conservação pelo prazo mínimo de cinco anos:

a) as pessoas naturais e jurídicas que integram o sistema de distribuição de valores mobiliários (Art. 15);

b) das companhias abertas e demais emissoras de valores mobiliários e, quando houver suspeita fundada de atos ilegais, das respectivas sociedades controladoras, controladas, coligadas e sociedades sob controle comum;

c) dos fundos e sociedades de investimento;

d) das carteiras e depósitos de valores mobiliários (arts. 23 e 24); e) dos auditores independentes;

f) dos consultores e analistas de valores mobiliários;

g) de outras pessoas quaisquer, naturais ou jurídicas, quando da ocorrência de qualquer irregularidade a ser apurada nos termos do inciso V deste artigo, para efeito de verificação de ocorrência de atos ilegais ou práticas não eqüitativas

II - intimar as pessoas referidas no inciso I a prestar informações, ou esclarecimentos, sob cominação de multa, sem prejuízo da aplicação das penalidades previstas no art. 11;

III - requisitar informações de qualquer órgão público, autarquia ou empresa pública;

IV - determinar às companhias abertas que republiquem, com correções ou aditamentos, demonstrações financeiras, relatórios ou informações divulgadas;

V - apurar, mediante processo administrativo, atos ilegais e práticas não eqüitativas de administradores, membros do conselho fiscal e acionistas de companhias abertas, dos intermediários e dos demais participantes do mercado;

A proteção dos interesses das minorias acionárias, no regime da Lei 6.385/76, constitui tarefa relevante para a CVM, mas não como fim em si, e sim unicamente como meio de a CVM exercer a tutela do mercado de valores mobiliários118.

O poder de polícia administrativa da CVM é exercido sobre todos os negócios e atividades desenvolvidos no mercado de valores mobiliários. Neste mercado estão incluídas as companhias abertas e as companhias incentivadas, as entidades que podem ter os valores mobiliários de sua emissão colocados ou negociados publicamente.

Também estão sujeitas à fiscalização da CVM as instituições financeiras que realizam as atividades de intermediação de valores mobiliários, como as Corretoras, Distribuidoras, Bancos de Investimentos, as instituições que propiciam os locais públicos de negociação e que são legalmente obrigadas a fiscalizar a conduta de seus membros, como: Bolsa de Valores, Mercado de

VI - aplicar aos autores das infrações indicadas no inciso anterior as penalidades previstas no art. 11, sem prejuízo da responsabilidade civil ou penal.

§ 1o Com o fim de prevenir ou corrigir situações anormais do mercado, a Comissão poderá:

I - suspender a negociação de determinado valor mobiliário ou decretar o recesso de bolsa de valores;

Il - suspender ou cancelar os registros de que trata esta Lei;

III - divulgar informações ou recomendações com o fim de esclarecer ou orientar os participantes do mercado;

IV - proibir aos participantes do mercado, sob cominação de multa, a prática de atos que especificar, prejudiciais ao seu funcionamento regular.

§ 2o O processo, nos casos do inciso V deste artigo, poderá ser precedido de etapa investigativa, em que será assegurado o sigilo necessário à elucidação dos fatos ou exigido pelo interesse público, e observará o procedimento fixado pela Comissão.

§ 3o Quando o interesse público exigir, a Comissão poderá divulgar a instauração do procedimento investigativo a que se refere o § 2o.

§ 4o Na apuração de infrações da legislação do mercado de valores mobiliários, a Comissão deverá dar prioridade às infrações de natureza grave, cuja apenação proporcione maior efeito educativo e preventivo para os participantes do mercado.

§ 5o As sessões de julgamento do Colegiado, no processo administrativo de que trata o inciso V deste artigo, serão públicas, podendo ser restringido o acesso de terceiros em função do interesse público envolvido.

§ 6o A Comissão será competente para apurar e punir condutas fraudulentas no mercado de valores mobiliários sempre que:

I - seus efeitos ocasionem danos a pessoas residentes no território nacional, independentemente do local em que tenham ocorrido; e

Balcão, administradores de carteiras de valores mobiliários, auditores independentes, prestadores de serviços no mercado de capitais e fundos de investimentos.

Não podemos deixar de mencionar que não são todas as práticas infracionais sujeitas à ação da CVM. Por exemplo, se os administradores de uma companhia aberta levam-na a descumprir a lei tributária, resultando tal prática em prejuízos para a companhia, não terão praticado infração alguma no âmbito disciplinar de competência da CVM, apesar de estarem sujeitos à ação direta da administração fiscal. José Alexandre Tavares Guerreiro apresenta outro exemplo:

O abuso do poder de controle nem sempre gera responsabilidade disciplinar, no âmbito das companhias abertas. É o caso, por exemplo, da adoção de políticas ou decisões que causem prejuízo aos que trabalham na empresa, para usar da linguagem do art. 117, § 1º da Lei 6.404/76. Com exceção de suas repercussões quanto à obrigação de disclosure, esta sim sujeita à vigilância e repressão disciplinares, os ilícitos trabalhistas, em sua materialidade, não configuram, per se, infrações de caráter administrativo, refulgindo ao poder disciplinar da Comissão.

Reversamente, o abuso de poder de controle, na companhia aberta, quando implique em prejuízo aos acionistas minoritários ou aos investidores em valores mobiliários emitidos pela companhia, como os debenturistas, pode acarretar responsabilidade disciplinar, na medida em que a ação ou a omissão do controlador projete efeitos diretos no mercado de valores mobiliários.

Em termos gerais, a regulação da CVM leva em conta os seguintes fundamentos:

(a) Interesse Público

São do interesse público os atos e fatos relativos ao mercado de valores, haja vista que as operações e alterações ocorridas no mercado de valores mobiliários refletem sobre o aparelho produtivo, atingindo inclusive aqueles que dele não participam diretamente.

118 Guerreiro, José Alexandre Tavares. Sobre o Poder Disciplinar da CVM, Revista de Direito

(b) Confiabilidade

A confiabilidade é requisito fundamental para a existência e desenvolvimento de um vigoroso mercado de valores mobiliários. Portanto, o esforço em preservar a confiabilidade no mercado constitui tarefa do órgão regulador, pressupondo que a atração e a permanência do público investidor garantirão um crescente volume de recursos ao mercado.

(c) Proteção ao investidor

Com vistas a manter a confiabilidade do mercado e a atrair um contingente cada vez maior de pessoas, há necessidade de um tratamento eqüitativo a todos os que dele participam, principalmente aos investidores individuais. Estes, em face de seu menor poder econômico e menor capacidade de organização, precisam de proteção, de forma que resguarde seus interesses no relacionamento com intermediários e companhias.

(d) Transparência

A transparência de suas atividades e das operações realizadas na órbita do mercado de valores imobiliários atrai novos investidores, pois transmite confiança e confere proteção.

Basicamente, o trabalho de regulação da CVM compreende a identificação de práticas irregulares, a identificação de indícios de infringência de leis ou outros atos normativos, a realização de inspeções nas instituições envolvidas e, se for o caso, a instauração de inquéritos administrativos e aplicação de penalidades aos infratores.

Mercantil, vol. 43, 1981.

Através da instauração de um processo administrativo, a CVM julga os atos ilícitos praticados no mercado de capitais, podendo aplicar aos infratores as penalidades previstas em lei. O processo administrativo constitui uma das modalidades de processo administrativo mediante o qual a autoridade aplica penalidades administrativas às pessoas submetidas ao seu poder de polícia que praticaram atos qualificados em lei ou em regulamento como ilícitos administrativos. Os processos administrativos da CVM, da mesma forma que os demais órgãos reguladores de atividades desenvolvidas por particulares, devem pautar-se pelo devido processo legal, assegurando aos acusados o exercício do direito de defesa.

Os poderes delegados por lei aos órgãos reguladores são extremamente amplos e por esta razão ao acusado deve ser concedida ampla defesa.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LIV, dispõe expressamente que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. O mesmo artigo estabelece que aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

No processo administrativo sancionador, a Administração é autora e juíza. Ao mesmo tempo que é parte interessada, é a julgadora, e por isso a necessidade de rigor absoluto na obediência dos princípios relativos ao devido processo legal.

Segundo Nelson Elzirik

o processo administrativo sancionador não é discricionário, mas vinculado ao devido processo legal; em conseqüência, a decisão administrativa deve ser sempre motivada, com base na acusação, na defesa e nas provas, sob pena de nulidade119.

O processo administrativo foi regulamentado pela Resolução nº 454, de 16/11/77, do Conselho Monetário Nacional.

De acordo com o artigo 9º da Lei n. 6.385/76 e do artigo 1º da Resolução 454, a CVM tem competência para instaurar inquérito administrativo para apurar atos ilegais ou práticas não eqüitativas de administradores ou de acionistas de companhias abertas, dos intermediários financeiros e dos demais participantes do mercado de valores mobiliários.

A CVM pode aplicar as punições administrativas aos infratores das normas das Leis n. 6.385/76 n. 6.404/76, e das Resoluções da CVM. No entanto, como não poderia ser diferente, o processo administrativo para atender ao princípio constitucional do devido processo legal deve assegurar ao acusado as seguintes garantias: princípio da legalidade, a irretroatividade das normas punitivas, a tipicidade da conduta, a culpabilidade do acusado e a proporcionalidade das penas, presunção de inocência do acusado, prescrição das sanções administrativas, impossibilidade de dupla apenação, legalidade do procedimento e cabimento de recursos administrativos.

Apenas a título de curiosidade indicamos a seguir algumas das penalidades que podem ser impostas pela CVM, as quais constam do artigo 11 da Lei n. 6.385/76:

(a) cinqüenta por cento do valor da emissão ou operação irregular;

(b) três vezes o montante da vantagem econômica obtida ou da perda evitada em decorrência do ilícito;

(c) no caso de reincidência, poderá ser aplicada multa de até o triplo dos valores fixados;

(d) no caso de inabilitação, até o máximo de 20 anos;

(e) proibição temporária, até o máximo de 20 anos, de praticar determinadas atividades ou operações, para os integrantes do sistema de

distribuição ou de outras entidades que dependam de autorização ou registro na CVM;

(f) proibição temporária, até o máximo de 10 anos, de atuar, direta ou indiretamente, em uma ou mais modalidades de operação no mercado de valores mobiliários.

(g) um outro tipo de sanção, multa cominatória, aplica-se ao não- cumprimento de uma determinação da CVM e às situações de atrasos na entrega de informações por parte dos participantes do mercado de valores mobiliários. A multa cominatória, no valor de até R$ 5.000,00 por dia, não decorre de ilícito apurado em inquérito, aplicando-se diária e automaticamente sempre que a obrigação não for cumprida.

A importância crescente do mercado de capitais como fonte de financiamento das sociedades e principalmente a conscientização do investidor continuou a produzir modificações intensas na legislação societária de diversos países, inclusive na legislação brasileira.

Surgiu na economia anglo-saxônica um movimento conhecido como governança corporativa. Este movimento visava não somente ao estreitamento das relações entre as sociedades e o mercado, mas também entre os fornecedores, consumidores, através da instituição de práticas protetivas dos direitos dos investidores120.

Em razão de o mercado encontrar-se saturado, os investidores institucionais dos países desenvolvidos aumentaram seus investimentos fora do país, pressionando os mercados externos a se modernizarem através da adoção de determinadas práticas protetivas.

O movimento da governança corporativa, de grande relevância para o tema deste estudo, será tratado no capítulo seguinte.

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