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O governo Lula nos editoriais da Folha de S. Paulo

CAPÍTULO 3 - DO DISCURSO DA MÍDIA SOBRE A OPINIÃO PÚBLICA ÀS

3.2 A opinião pública sobre o Governo Lula

3.2.2 O governo Lula e a opinião pública nos editoriais

3.2.2.1 Analise dos editoriais de Folha de S. Paulo

3.2.2.1.1 O governo Lula nos editoriais da Folha de S. Paulo

Nesta parte, vamos analisar de que modo a Folha de S. Paulo apresenta o Governo Lula, nos editoriais que tratam das pesquisas de opinião. É importante ressaltar que, em outras matérias de outras editorias e ao longo do jornal, o discurso jornalístico busca constituir, para o público dos leitores, uma visão do que é o governo, o que ele faz ou não faz, quais são as suas qualidades e deficiências, enfim, dá visibilidade a alguns aspectos do desempenho do governo e do presidente que poderão fazer parte do repertório de informações e entendimentos que a população tem para formar uma imagem do governo, para se relacionar com ele.

Importa notar, como discutimos anteriormente, que essa visibilidade não se dá livre da concorrência de diversos fatores que incidem sobre o sistema dos mídia, que vão desde a lógica de valores própria desse sistema, a influência de outros sistemas como o econômico e o político, até os interesses que os atores do sistema dos mídia possam ter acerca da constituição de uma determinada imagem do governo e da formação da opinião pública.

Quando os jornais analisam os resultados das pesquisas de avaliação, alguns elementos desse amplo conjunto de discursos sobre o governo são retomados. No caso dos editoriais, é possível identificar mais claramente a visão dos veículos sobre o governo, sua opinião e a forma como o analisam.

Nos editoriais de Folha, a construção do discurso sobre o governo Lula se baseia em três argumentos principais: 1) o governo não é capaz de tirar as idéias e projetos do papel, trata-se de uma gestão inoperante; 2) o marketing é lógica de ação central no governo, tendo papel preponderante nas suas ações e decisões; 3) o presidente Lula exerce uma liderança carismática sobre o público que sustenta a avaliação positiva do governo.

O governo inoperante

Nas matérias publicadas em janeiro e fevereiro pela Folha, as quais tratam das primeiras pesquisas de opinião relativas ao Governo Lula, o foco é a grande expectativa da população. O Governo ainda estava em seu início e pouco havia para falar ou comentar sobre suas ações e desempenho. Apesar disso, há um editorial, no dia 29 de janeiro, que aponta para o tom que veremos ao longo do ano nos comentários do jornal.

O artigo “A imagem trabalhada de Lula” começa afirmando que “não é à toa que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva apresenta novas propostas a cada semana para salvar o Brasil e a humanidade”, se referindo às palavras do presidente em sua primeira viagem à Europa.

Em seguida, alega que a pesquisa Sensus, divulgada no dia anterior, atesta que o presidente é “habilidoso em seu ofício”, mas não especifica qual ‘ofício’ seria esse.

Essa lacuna, ou este ‘não dito’ (VAN DIJK, 1991), ajuda a desvelar a visão que o veículo tem do presidente e que pretende construir discursivamente. Neste caso, embora não explicitada, a expressão ‘ofício’ parece se referir ao ofício de “saber falar aquilo que faz bem à sua imagem”, como sugerido no início do mesmo parágrafo e não ao ofício de governar o país.

Essa inferência que fazemos, em relação ao preenchimento do significado do termo omitido no texto, encontrará eco em outros artigos que se referem à habilidade de ‘bom orador’ do presidente Lula.

No final da matéria, encontramos a indagação: “A única dúvida - grande - que permanece é sobre como estarão a imagem e a popularidade presidencial quando parte das idéias e das propostas não sair do papel”. A dúvida apresentada no texto é sobre o que vai acontecer com a popularidade presidencial, não sobre o que o governo irá fazer. Sobre o desempenho do governo parece não haver dúvidas. De fato, a certeza oferecida no texto é exatamente a de que as idéias e propostas não irão sair do papel. Neste caso, o discurso do jornal coloca a expectativa do veículo no lugar de uma avaliação que é mantida até o final do ano.

Em março, aparecem com maior ênfase nos editoriais os questionamentos sobre a lentidão do governo; ganha destaque no discurso do jornal o embaraço do governo para governar de fato. No artigo, do dia 15 de março, “Curto circuito social”, a cobrança é relativa ao programa Fome Zero, que, neste período, se torna alvo de críticas e cobranças da mídia e de diversos setores sociais. Para o jornal, as dificuldades tornam imperativa uma gestão que faça os projetos avançarem. Em “Lula: sinal amarelo”, de 16 de março, é acusada a “ausência de um projeto” de governo que seria, também, a explicação para o resultado de pesquisa Sensus, que acusa queda nos

índices de satisfação com o governo.

Também no dia 16, o editorial “Lento apressadinho” acusa a falta de coerência do governo. O texto cita a incongruência do presidente Lula ao discursar para dois públicos diferentes, no mesmo dia: para empregados de uma fábrica, Lula teria dito que não há pressa para a preparação das reformas (da previdência e tributária) e para empregadores, teria dito que as enviará ao congresso antes de maio. O veículo cobra do governo tempo para “um amplo debate com a sociedade”. Além desse fato, critica também a falta de criatividade e de planejamento na preparação dos textos das reformas, que visariam somente os resultados finais - controle das contas - sem se preocupar com o seu sentido mais amplo.

Em abril, começam a ganhar espaço no jornal as discussões sobre o marketing do governo e sobre a habilidade do presidente Lula como orador. Mas as inferências sobre a inoperância do governo continuam a aparecer pontualmente ao longo do ano.

Em junho, reafirma-se a idéia de que o governo não está de fato tirando do papel as idéias e projetos. No artigo “A popularidade recorde de Lula”, afirma-se que a boa avaliação de Lula pode ser explicada pelo que o governo não fez, ao deixar intacta a política econômica, e não pelo que o governo fez: “quase nada, exceto lotear cargos e tentar tomar pé da administração”. O artigo refere-se ao desempenho do governo como “pastel de vento” e chama de paradoxo a relação entre o desempenho real do governo e a sua boa avaliação pela população.

A comparação com o governo FHC também é encontrada nos editoriais, para demonstrar que não há motivos concretos para a boa avaliação do governo, como podemos observar neste trecho do editorial “Estoque de paciência”: “Em junho de 1995, FHC tinha para exibir a relativa novidade da estabilização da moeda e um crescimento econômico que garantiu aos mais pobres acesso a inéditos bens de conforto. O Brasil de Lula é o da fila desesperada por uma vaga de gari”.

De forma geral, nos editoriais, o desempenho do governo é apresentado pelo discurso do jornal como insatisfatório. Mas, para o veículo, pode-se encontrar, na prática do governo, dois fatores que contribuem para a bom desempenho nas pesquisas: o marketing do governo e a liderança carismática do presidente Lula, que vamos analisar nos próximos tópicos.

O marketing do governo

Nesta seção vamos avaliar como o discurso da Folha de S. Paulo apresenta a idéia de que o projeto de governo, a imagem de Lula e a condução das ações do PT passaram a ser regidas pela lógica do marketing, especialmente pelas idéias do marqueteiro Duda Mendonça.

Interessa notar que o marketing de que fala a Folha, como veremos a seguir, refere-se a uma função de manipulação, de maquiagem, de falseamento. É visto como ferramenta de propaganda que modifica as características originais ou reais do produto, tornando-o mais atraente, mais vendável. Nesse sentido, o marketing é visto como algo exterior à política, como ferramenta de propaganda independente da atuação dos atores políticos. Para Almeida (2001), embora o marketing possa potencializar determinadas características dos candidatos e ofereça um instrumental para a comunicação e a relação de atores políticos com a mídia, a ação política é fundamental e não pode ser subjugada pelas estratégias de marketing e propaganda.

O discurso de Folha de S. Paulo, no entanto, apresenta um entendimento diferenciado, em que o marketing dirige o governo e ilude o público. Neste trecho do editorial “O poder da incoerência”, de 26 de outubro, as críticas à incoerência do governo aparecem mais uma vez e são apresentadas como um desmentido em relação à estratégia de marketing do governo:

como a coerência do governo está em ser incoerente, é por aí que se deve entender também o complemento da vitória anunciada, segundo a qual, já que os pesquisados reclamaram da estagnação econômica, ‘o país está pronto agora para voltar a crescer’. Duda Mendonça já foi melhor. Antônio Palocci talvez não. Pois o ministro que anuncia a volta à política de crescimento passou a semana passada batalhando para que o Congresso mantenha, no Orçamento proposto pelo governo para 2004, os cortes de todos os investimentos governamentais e até gastos

exigidos pela Constituição, como os destinados à saúde. A política econômica pede ao Congresso a aprovação de um Orçamento para manter a estagnação. Ou seja, a política verdadeira do governo, que não passa pela maquiagem ilusionista de marketeiro nenhum, está destinada a reproduzir estas manchetes que apontaram algumas das derrotas e tonturas do governo nos últimos dias [...]

No discurso do jornal, podemos perceber uma diferença entre o que ele considera “a política verdadeira do governo” e o “marketing”. Este último, com a clara função de iludir a opinião pública. O objetivo do editorial parece ser o de desvelar para o público um discurso falso, no qual o governo anuncia crescimento econômico.

No editorial “A queda de Lula41, é possível perceber que a ascensão da fome ao segundo lugar no hanking das preocupações dos brasileiros aparece na cobertura jornalística como um ‘produto’ do marketing do governo:

A violência cedeu o lugar a uma nova e veloz estrela, que ocupava o último lugar nas inquietações aferidas em final de setembro de 2002: fome/miséria. Efeito da emergência do tema na imprensa e na TV, de início com a campanha eleitoral de Lula e, nos últimos meses, com o amplo espaço ocupado pelo Fome Zero.

De forma geral, no discurso da Folha, o governo Lula é ‘governado’ pelo marketing. A preocupação com a imagem pública e com os ‘efeitos’ sobre a opinião pública seriam prioridade no governo, em detrimento de avaliações técnicas e de políticas que gerem resultados positivos para a população. Segundo o jornal, a reforma ministerial também seria pautada pela estratégia de marketing. Em outubro, o jornal aponta:

Eis aí uma razão para esperar o início de 2004. Novos ministros dariam uma cara nova para o governo. Pelo raciocínio lulista, essa ação de marketing (mais uma) ajudaria a fazer crescer a popularidade presidencial na hora certa, bem no princípio do processo eleitoral.42

Mas, segundo o jornal, a estratégia de marketing não seria o suficiente para a explicar a boa avaliação do governo Lula, nas pesquisas. O carisma e a figura do presidente, capazes de gerar uma

41

Folha de S. Paulo, 10 abr. 2003.

42

identificação com o comportamento e a linguagem populares” seriam o sustentáculo dessa boa avaliação.

No próximo tópico, vamos ver como o jornal trata do carisma e da figura do presidente para explicar a aprovação do governo.

A liderança carismática do presidente Lula

É possível perceber na leitura dos editoriais que, embora o veículo considere que existe um padrão de tolerância da população em relação aos presidentes em início de mandato e que o marketing tem um papel importante na avaliação positiva do governo, é o carisma de Lula o principal fundamento de sua popularidade.

A liderança carismática é uma noção ligada aos tipos de dominação descritos por Weber (1991): dominação legal, tradicional e carismática. Neste último tipo, a legitimidade é de caráter carismático, baseada na veneração do líder, por suas características extraordinárias, divinas, heróicas, ou exemplares, as quais inspiram laços de fidelidade e de confiança. Também as habilidades de oratória seriam características dos líderes carismáticos.

O problema com este tipo de dominação carismática, que é também acionado no discurso do veículo, é que a sua legitimação está relacionada a aspectos afetivos e pessoais e não a uma avaliação racional do exercício do poder. Além disso, a relação do público com o líder independe das instituições formais de exercício do poder; dessa forma, a sustentação do poder subsiste enquanto o líder estiver presente ou enquanto as pessoas reconhecerem nele alguém extraordinário. Assim, para a perpetuação de uma liderança carismática ela precisa desenvolver aspectos da dominação tradicional (baseada nos costumes) ou da dominação racional (baseada nas leis). Este tipo de relação aparece no discurso da Folha sobre a relação do presidente Lula com a população. O veículo chega a questionar “ o que será do governo quando (e se?) o dom divino de Lula cair

na real, ou diante da realidade?43.

Nesse sentido, é importante ressaltar que, embora o presidente tenha características de um líder carismático, a sua eleição e o governo se estabeleceram em concordância com a ordem constitucional vigente.

Em cerca de 8 editoriais, ao longo do ano, características pessoais do presidente Lula são apresentadas como causa da aprovação do governo. Essas características são relacionadas ao seu carisma e à forma como isso afeta a avaliação que a população faz do presidente e do governo: “O estilo pessoal de Lula - afeito ao corpo-a-corpo com a população e sempre preocupado em salientar a sua própria origem popular - é um elemento que, embora difícil de medir objetivamente, por ora conta a favor da imagem presidencial44.

Lula é âncora de si próprio, com suas metáforas, discurso popular e um misto de esperança e abulia do eleitorado45.

Em outros editoriais, essas características seriam um apelo direto para a população de classe social ou cultural mais baixa: “Espécie de última esperança do eleitorado, Lula parece estar obtendo a paciência que tem solicitado para mostrar resultados. É legítimo crer que seu poder de comunicação com as classes de baixa renda esteja sendo eficaz, apesar de alguns lamentáveis destemperos46.

Em alguns trechos, fica claro que, para o veículo, as ações de marketing não seriam capazes de produzir a avaliação positiva do governo. O carisma de Lula seria, então, a explicação:

Não se deve, certamente, subestimar o carisma de Lula, cuja identificação com o comportamento e a linguagem populares é incontestável. A figura pessoal do presidente é ela mesma u m dos trunfos da nova gestão. [...] Parece contribuir ainda

43

Folha de S. Paulo, 02 nov. 2003. Matéria: “O bem-amado e a esperança”.

44

Folha de S. Paulo, 10 abr. 2003. Matéria: “O Lastro do governo”.

45

Folha de S. Paulo, 22 out. 2003. Matéria: “O tempo do governo”.

46

para a avaliação o fato de que o presidente tenha assumido um perfil mais moderado e se constituído numa espécie de ‘última esperança’. Mesmo que se queira ver no resultado das ações de marketing, como as que cercaram até agora o pífio Programa Fome Zero, há que reconhecer que isso não bastaria para produzir tamanho apoio.47

Talvez seja obra, em parte, de Duda Mendonça, já que a pesquisa foi feita num período de extensa exposição lulista na TV, semana passada. Talvez seja obra da cobertura agradável - agora como na era FHC - da rede hegemônica.

Mas o marqueteiro mágico e a rede hegemônica não têm como agir sem um bom produto para vender. É Lula, com sua mística, suas gafes e tudo o mais, quem segura a avaliação.48

O discurso do jornal busca, também, deixar claro que a liderança carismática exercida pelo presidente sustenta uma atitude irracional ou pouco crítica, baseada em uma espécie de fascinação pela figura do presidente e que traz um grande risco para o país:

Ainda assim, o que faz ricos e pobres, instruídos ou não, capital e interior, avaliarem o governo tão bem? Esperança? A esperança é um tipo de alienação. Projeta-se num símbolo a ânsia por dias melhores.

Apesar das críticas (que, na maioria, circulam entre a mínima elite que lê jornais), Lula parece estocar enorme massa de esperança dos cidadãos de diversas classes. Trata-se de um sentimento embebido da forma mais instável e inflamável de atitude política, a fascinação pelo carisma. O que será do governo quando (e se?) o dom divino de Lula cair na real, ou diante da realidade?49

Em outro momento, a sinceridade do presidente é questionada. A sua atuação é apresentada como performance dramática para agradar aos cidadãos:

Não é. Lula é a razão.

É ele quem chega a chorar em público, no dizer da CNB, diante das vaias na central que criou [...] É ele quem, trêmulo, errando as palavras, brada contra os ‘preconceituosos’ que antes questionaram a sua capacidade para o cargo. [...] Enquanto isso, o presidente se despedaça emocionalmente em público, no altar de sacrifício ao telespectador.50

De forma geral, o que percebemos no discurso da Folha sobre o governo Lula é que o veículo considera o seu desempenho insatisfatório, especialmente em relação à área econômica. A

47

Folha de S. Paulo, 01 set. 2003. Matéria: “Avaliação de Lula”.

48

Folha de S. Paulo, 09 dez. 2003. Matéria: “Tolerância”.

49

Folha de S. Paulo, 02 nov. 2003. Matéria: “O bem-amado e a esperança”.

50

opinião do jornal é oposta à opinião da população, uma vez que os resultados das pesquisas revelam que o público faz uma avaliação positiva do desempenho do governo e, ainda mais positiva, do desempenho pessoal de Lula.

Esta contradição aparece de forma mais explicita nos editoriais e se manifesta na busca de explicações para a avaliação positiva que se encontra em fatores que não são baseados no desempenho ‘real’ do governo. Mas, para que estes fatores tenham ‘efeito’ sobre a opinião pública, o público precisa atuar de forma não racional ou pouco crítica.

No próximo tópico, vamos analisar como a Folha de S. Paulo caracteriza a opinião pública e o seu sujeito - os cidadãos.