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3 É IMPERATIVO INVESTIGAR A VARIAÇÃO NO

3.1 O IMPERATIVO NA DIMENSÃO HISTÓRICA: A ABORDAGEM DE

Em 1982, Faraco apresenta à comunidade acadêmica um trabalho pioneiro e altamente relevante para o progresso de uma descrição mais rigorosa do funcionamento do verbo imperativo em PB, até então rarefeita e claudicante. Embora o autor naquele momento não lançasse mão da metodologia quantitativa da sociolinguística, ele já demonstrava uma sensibilidade bastante apurada à realidade sócio-histórica da língua humana e a relação íntima entre essa realidade e os processos de mudança que possa haver no interior de um sistema linguístico. Faraco, após uma rica e lúcida discussão sobre as propriedades semânticas da sentença imperativa do português brasileiro, no que tange às suas possibilidades de ser passível ou não de um enfoque formalista, passa a ensaiar seus primeiros movimentos de aproximação com a abordagem histórica da língua, aproximação esta que viria a torná-lo mais adiante num dos grandes expoentes da linguística sócio-histórica levada a cabo no Brasil. No terceiro capítulo de sua tese de doutorado (1982), ele confere, assim, especial ênfase às diferenças da estrutura

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É bom relativizar isso. Pode haver outros trabalhos interessantes sobre o assunto, mas é o que temos em mãos neste momento.

imperativa no velho e no moderno português. Por sua vez, ele trama uma intrincada rede de relações entre as profundas modificações pelas quais o sistema de tratamento do português sofreu em simbiose com as mudanças sociais particulares, que acabaram, em última instância, acarretando uma cadeia de mutações estruturais na língua. Nessa trama tecida pelo fluir da história, o verbo imperativo não passaria incólume por tamanhas modificações sobrevindas à estrutura da língua portuguesa em sua totalidade. A despeito de Faraco aventar sua defesa do reflexo das estruturas sociais sobre as estruturas da língua, ele ainda se apequena diante da empreitada grandiosa e não menos revestida de mistérios, qual seja, a de construir uma metodologia que abarque com um mínimo poder preditivo possível a atuação das metamorfoses sociais sobre as bases linguísticas:

We have no clear ideas off all the social factors that may determine a linguistic change and how they work. As a consequence of this, we still have enormous limitations in developing a sophisticated diachronic theory with a minimum of predictive power .And to build such a theory has been one of the main concerns in historical linguistics, and this apparently seems to be more easily achieved if a theory is built under purely immanent assumptions (FARACO, 1982, p.159).

Feitas tais colocações preliminares, Faraco vai esquadrinhar no arsenal de fatos da língua latina pistas linguísticas a fim de deslindar a formação do modo imperativo moderno da língua portuguesa, que se ostenta pelas suas formas indicativas e subjuntivas. A forma afirmativa do imperativo não seria rigorosamente uma homofonia do tempo presente do indicativo, mas sim uma similaridade acidental, ocorrida basicamente como resultado de um evento diacrônico: a perda do –t final da terceira pessoa do singular presente do indicativo latino, que gerou, por fim, tal homofonia entre as formas:

The form of the first person plural and of the third persons are especial forms which the grammarians, closing their eyes to the history of the language, or deceived by the formal similarities, or just as a mnemonic trick – present as derived from the correspondent forms of the present indicative, without the final –s. We may note in passing that in general the grammarians of the romance languages mention this ‘’derivation’’ with no further comment. If this homophonic relation can be an interesting pedagogical trick in the

teaching of these languages to foreigners, it must not deceive us in regard to the historical reality of the facts, since the similarity between the two forms is accidental, basically a result of a diachronic event the two forms is accidental, basically a result of a diachronic event (the loss of the final –t of the third person singular of the Latin present indicative), which produced the present homophony (FARACO, 1982, p. 163).

O fato é que Faraco considera a variante imperativa homófona ao verbo indicativo do presente a verdadeira forma de expressão do modo imperativo em PB, ou seja, do ponto de vista histórico é a forma legítima. A hipótese central na sua tese de doutorado, então, é que um processo de especialização pragmática, meio através do qual uma forma velha sobrevive a uma história de mudanças por desenvolver algumas marcações num contexto de fala, teria levado esta forma mais arcaica do imperativo a sobreviver a um complexo processo histórico de mudanças.

Sobre esse processo de especialização pragmática, Faraco arrazoa que as formas homófonas à indicativa teriam reduzida probabilidade de ocorrência no PB atual dado o amplo emprego de você no sistema de tratamento com o interlocutor. No entanto, um aumento de força ilocucionária atrelada à variante homófona indicativa teria preservado a forma mais antiga, apesar do colapso nervoso engendrado no sistema de tratamento a partir da entrada do pronome você. Essa força ilocucional equivale a um efeito de reforço na ordem quando o manipulador dispara um comando e o manipulado não obedece. Então haveria uma troca de verbo na manifestação dos comandos: a forma subjuntiva, mais branda e suave, para a forma homófona à indicativa, visando a esse efeito de reforço ou aumento de força manipulativa na propagação do comando, o que constituiria assim um processo de especialização pragmática.

Além dessa hipótese pragmática, Faraco vai atrelar a variação do uso do imperativo no PB às alterações pela qual passou o sistema de tratamento em nossa língua, esta por sua vez ocorrida em razão de uma gama de modificações profundas na estrutura social ocorridas a partir do século XVII em Portugal e depois refletidas no Brasil em meio ao processo de colonização. Os principais efeitos desse colapso nervoso engendrado no sistema de tratamento com a entrada do você seriam as seguintes, de acordo com o linguista curitibano:

a) The reformulation of the system of address of the second person of discourse (especially archaization of vós; and development of você);

b) The rearrangements in the pronominal system, with old dative and possessive forms developing new values in the language;

c) The rearrangements in the verbal conjugation (archaization of the verbal forms of the second plural; new values for the third person forms; and alterations in the composition of the imperative);

d) The rearrangements in the sentence structure with a strong tendency for overt nominative pronouns to occur mandatorily (FARACO, 1983, p.165).

Essa série de mudanças ocorridas numa espécie de efeito cascata no interior do sistema linguístico do PB levou a uma simplificação do paradigma verbal determinando, segundo Faraco, uma concentração de funções sobre a terceira pessoa verbal. Esse processo geral de simplificação haveria de deixar marcas também na composição do modo imperativo, cuja configuração, após entrada do você, se daria com o uso da forma subjuntiva, antes reservada a formas de tratamento de estrutura VOSSA + N, em contexto de segunda pessoa do discurso (a se considerar você como uma forma gramaticalizada de segunda pessoa).

Nesse emaranhado de veredas que se bifurcam, em outra via, teríamos a forma mais arcaica do imperativo (a homófona à forma indicativa) sobrevivendo na língua com fortes restrições pragmáticas, em contextos discursivos marcados de mais força ilocucionária. Tal marcação ocorreu como consequência de outro processo de especialização pragmática que já estava em curso na língua e que atingia a forma negativa imperativa:

Não cantes => não canta

Segundo Faraco, na forma negativa do imperativo também deve ter ocorrido um processo de especialização pragmática semelhante, em que a forma negativa não

canta irrompeu em estilos informais, paralela à forma básica não cante, porém

marcada com alguma restrição de uso, a mais provável seria forçar uma implicatura conversacional não esperada.9 Esse processo de especialização pragmática nas formas

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O mais interessante nessa cadeia complexa de mutações é que esse processo atinge alguns dialetos portugueses que ainda fazem uso do pronome vós. De acordo com Faraco, no imperativo negativo destinado a mais de um interlocutor, a forma ‘’não cantai’’ tem sido utilizada em detrimento da forma

negativas teria atingido, então, as formas afirmativas em meio à nevralgia da reestruturação do sistema linguístico do PB impulsionado pela entrada do você:

The pragmatic features of the form não canta in the case of Portuguese have, then, been extended to the positive form in Brazilian Portuguese, an extension that was made possible by the fact that the positive form had lost, in the case of this variant, its status as a basic, unmarked form of the singular imperative as a consequence of the large predominance of você over tu in Brazil (FARACO, 1982).

Esse dispositivo de força ilocucionária encravado na forma linguística imperativa homófona à indicativa reforçaria uma relação de poder existente entre os interlocutores, reforçando uma ordem, deixando-a mais autoritária ou energética, ou ao mesmo tempo, podendo reforçar uma relação de solidariedade, em que o falante se vale desse dispositivo para quebrar uma situação de formalidade instaurada. Isso é um detalhe importante no texto de Faraco, que tende a passar despercebido muitas vezes pelos seus leitores: esse dispositivo de força pode marcar e reforçar tanto uma relação de poder quanto de solidariedade.

De qualquer forma, em seu trabalho pioneiro, Faraco nos legou importantes pistas se quisermos escavar mais acuradamente a variação estilística envolvida no uso das formas verbais imperativas, por isso tais pistas elencadas por Faraco serão tomadas em nossa pesquisa como um norte inicial para o desenvolvimento de questões e hipóteses a serem, por nós, investigadas.