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Um estudo variacionista sobre as formas verbais imperativas nas cidades de Florianópolis e Lages: uma questão de encaixamento?

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Universidade Federal de Santa Catarina

UM ESTUDO VARIACIONISTA DAS FORMAS IMPERATIVAS NAS CIDADES DE FLORIANÓPOLIS E LAGES: UMA QUESTÃO DE

ENCAIXAMENTO?

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12/2012

Universidade Federal de Santa Catarina

UM ESTUDO VARIACIONISTA DAS FORMAS VERBAIS IMPERATIVAS NAS CIDADES DE FLORIANÓPOLIS E LAGES: UMA QUESTÃO DE

ENCAIXAMENTO?

Dissertação apresentada para o curso de pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina como requisito parcial para obtenção do título de Mestre.

Orientadora: Prof. ª Drª Izete Lehmkuhl Coelho

Bruno Cardoso

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AGRADECIMENTOS

À professora Izete L. Coelho pela orientação sempre solícita e minuciosa, bem como pela sua paciência quase inesgotável com meu ritmo de trabalho.

À professora Marta Scherre, pelos conselhos no corredor da Abralin de 2011, indispensável para que a pesquisa ganhasse novos rumos, bem como pela análise criteriosa na qualificação do projeto.

À professora Edair Gorski que, junto com a professora Izete, liderou as disciplinas de Variação Estilística I, II e III, cruciais para que eu me atentasse à importância do discurso reportado.

Ao amigo Mágat Nágelo Junges pelo sempre incessante conselho: ‘’termina logo essa dissertação e pega esse título de uma vez p...’’.

À amiga Christiane Nunes pelos conselhos e estímulos no processo de escrita. Àos colegas do projeto Varsul, pela convivência harmoniosa nesses últimos anos. Ao amigo Marcos Daud Camargo, do curso de letras da UFRJ, pelas conversas sempre motivadoras ao telefone.

À minha mãe e meu pai.

A Iahweh, pelo dom da vontade de aprender cada vez mais,

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Ainda é cedo, amor Mal começaste a conhecer a vida Já anuncias a hora de partida Sem saber mesmo o rumo que irás tomar Preste atenção, querida Embora eu saiba que estás resolvida Em cada esquina cai um pouco a tua vida Em pouco tempo não serás mais o que és Ouça-me bem, amor Preste atenção, o mundo é um moinho Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos. Vai reduzir as ilusões a pó Preste atenção, querida De cada amor tu herdarás só o cinismo Quando notares estás à beira do abismo Abismo que cavaste com os teus pés (O mundo é um moinho, Cartola)

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Para tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de lançar fora; Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; Tempo de amar, e tempo de odiar. Há tempos de guerra e tempo de paz. (Salomão, Eclesiastes 3:1-8)

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RESUMO

Esta pesquisa, realizada nas cidades de Florianópolis e Lages, ambas situadas no estado de Santa Catarina, procura traçar um padrão de uso das formas verbais imperativas nessas duas cidades, considerando que o uso do imperativo do português brasileiro apresenta-se como um fenômeno suscetível de variação, no caso as formas indicativas (faz, leva) e subjuntivas (faça/diga) podendo operar em contextos da forma de tratamento ''você'', configurando-se como aquilo que Scherre e outros linguistas chamam de imperativo gramatical brasileiro. Se tomamos como ancoragem de partida a modelação histórica dessas duas cidades no que diz respeito ao seu processo de colonização, somos lançados à realidade de que ambas as cidades sofreram influências distintas: enquanto Florianópolis foi erigida por colonizadores açorianos, Lages, a cidade serrana, surgiu em meio à confluências de gaúchos e tropeiros paulistas, fato este que nos lança, por sua vez, em uma outra indagação: até que ponto tais realidades históricas distintas deixariam vestígios na padronagem de uso das formas verbais imperativas, se virmos tal variável linguística à luz do problema empírico do encaixamento linguístico? Ou seja, essas realidades históricas distintas dessas duas cidades respingariam no uso das formas pronominais e, consequentemente, no uso das formas verbais imperativas, se assumirmos que esses dois fenômenos estão intimamente associados? Essa pesquisa propõe uma resposta positiva a ambas as questões, direcionando a discussão para o problema empírico do encaixamento linguístico, uma vez que os dados extraídos do projeto Varsul apontarão para uma maior tendência de uso à forma verbal imperativa subjuntiva na cidade serrana de Lages, onde, por sua vez, pesquisas linguísticas tem apontado uma maior favorecimento de uso à forma de tratamento ''você''. Por outro lado, os dados linguísticos de Florianópolis seguem por uma direção oposta ao assinalarem um maior favorecimento ao uso da forma verbal indicativa, em consonância com um maior uso da forma de tratamento ''tu'', como pesquisas nesta cidade tem demonstrado. Apesar dessas tendências de variação opostas, ambas as cidades apresentam um padrão variável, o que nos leva a pensar se forças sociais tais como relações de poder e solidariedade, assumidas pela teoria laboviana como de coloração estilística, estariam também atreladas à variação dessas formas nessas duas cidades. Afunilando com mais precisão a pergunta, teríamos o seguinte: até que ponto relações de poder e solidariedade estariam materializadas na padronagem das formas verbais imperativas? Lages e Florianópolis tecem essa materialização em um mesmo caminho ou o fazem de forma diferenciada? Os dados da pesquisa mostrarão que, ainda que se possa timidamente insinuar um lampejo dessas relações de poder sobre o uso das variantes imperativas, o que está em jogo mesmo nessas duas cidades é a articulação desse fenômeno com o uso das formas de tratamento, sendo este o contexto favorecedor mais poderoso apontado pela aparelhagem estatística do Varbrul, o que sinaliza para um caso de encaixamento linguístico e social.

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ABSTRACT

This survey, executed in the cities of Florianópolis and Lages, both located in the state of Santa Catarina, seeks to trace a pattern of use of the imperative verb forms in these two cities, whereas the use of the imperative of Brazilian Portuguese is presented as a phenomenon likely to variation, in case of indicative forms (faz, leva) and of subjunctive (faça / diga) can operate in contexts of honorific pronoun “você'', becoming the grammatical imperative Brazilian by Scherre and other linguists. If we take as a starting anchor modeling of these two historic cities with regard to their colonization process, we are thrown to the reality that both cities have suffered distinct influences: while Florianópolis was colonized by Azorean settlers, Lages, a mountain town, arose with the confluence of gauchos and muleteers Paulista, a fact that throws us on another question: to what extent such historical realities leave distinct traces in patterning use of imperative verb forms, if we see such linguistic variable through the linguistic empirical problem of embedding? That is, these historical realities of these two distinct cities would influence the use of pronominal forms and hence, using the imperative verb forms, if we assume that these two phenomena are closely associated? This research suggests a positive answer to both questions, directing the discussion to the linguistic empirical problem of embedding, since the data extracted from the project VARSUL point to a greater tendency to use the subjunctive imperative verb form in the mountain town of Lages, where linguistic studies have shown a larger favoring the use honorific pronoun “você”. Moreover, the linguistic data of Florianópolis follow the opposite direction by a greater favor by pointing to the use of the indicative verb form, in line with increased use of the honorific pronoun “tu”, as researches have shown. Despite these opposing trends of variation, both cities have a variable pattern, which leads us to wonder if social forces such as power relations and solidarity, as assumed by the theory Labovian stylistic coloring, would also be linked to the variation of these forms in these two cities. Funneling more precisely the question we would have the following: the extent to which relations of power and solidarity would be materialized in the patterning of the imperative verb forms? Lages and Florianópolis show this materialization in the same way or do differently? The survey data show that, even though one might tentatively suggest these power relations on the use of imperative variants, what we can observe in these two cities is the articulation of this phenomenon with the use of the honorific pronouns, the most powerful favoring context, appointed by the statistical software VARBRUL, which shows a case of linguistic and social embedding.

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LISTA DE TABELAS Tabela 1:...51 Tabela 2: ...52 Tabela 3:...55 Tabela 4:...57 Tabela 5:...60 Tabela 6...62 Tabela 7...99 Tabela 8...100 Tabela 9...103 Tabela 10...104 Tabela 11...105 Tabela 12...107 Tabela 13...109 Tabela 14...110 Tabela 15...113 Tabela 16...116 Tabela 17...121 Tabela 18...123 Tabela 19...129

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LISTA DE GRÁFICOS

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1:...28 Quadro 2:………107

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SUMÁRIO

1 DELIMITANDO O TEMA: POR QUE É IMPERATIVO ESTUDAR O IMPERATIVO?

2 É IMPERATIVO DELIMITAR O IMPERATIVO...12

2.1 O IMPERATIVO: MUITO ALÉM DA FORMA, UMA FUNÇÃO...12

2.2 AS MARCAS DO IMPERATIVO EM FORMA VERBAL...15

2.3 O IMPERATIVO SOB A JURISDIÇÃO COERCITIVA DA GRAMÁTICA TRADICIONAL E DOS COMANDOS PARAGRAMATICAIS: A DISSONÂNCIA ENTRE NORMA E USO...18

2.3.1 Napoleão e seu estupor gramatiqueiro...22

2.3.2 Pasquale Cipro Neto e sua ‘’Inculta e Bela’’...24

2.3.3 ‘’Não erre mais’’ e o sarcasmo tenebroso de Sacconi...27

2.3.4 Sérgio Nogueira: entre a simpatia e o simulacro...29

2.3.5 Dilson Catarino e suas pegadinhas gramaticais...31

2.3.6 Dad Squarisi prova do seu próprio veneno...33

3 É IMPERATIVO INVESTIGAR A VARIAÇÃO NO IMPERATIVO...34

3.1 O IMPERATIVO NA DIMENSÃO HISTÓRICA: A ABORDAGEM DE FARACO...36

3.2 O IMPERATIVO NA DIMENSÃO HISTÓRICA: O ESTUDO DE PAREDES ...41

3.3 AS DIMENSÕES INTERNA E EXTERNA DA VARIAÇÃO: OS TRABALHOS DE SCHERRE ...43

3.4 EM BUSCA DE UMA ISOGLOSSA PARA O IMPERATIVO NO PB: OS TRABALHOS ORIENTADOS POR SCHERRE...51

3.5 A DIMENSÃO ESTILÍSTICA ESCAVADA A FUNDO: O TRABALHO DE REIS (2003)...56

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4 É IMPERATIVO SOLIDIFICAR AS BASES...57

4.1 QUANDO O CAOS ENCONTRA A ORDEM...57

4.2 A REGRA VARIÁVEL...61

4.3 A COMUNIDADE DE FALA: LIMIARES...62

4.4 OS CINCO PROBLEMAS DA TEORIA DA VARIAÇÃO E MUDANÇA...65

4.5 IMPASSES E TENSÕES EM TORNO DA NOÇÃO DE ESTILO...68

4.6 TRAMA E URDIDURA...73

4.6.1 Objetivo Geral...73

4.6.2 Objetivos específicos...74

4.6.3 HIPÓTESES...74

5 É IMPERATIVO OPERACIONALIZAR O IMPERATIVO...76

5.1 O PROJETO VARSUL...76 5.2 A AMOSTRA UTILIZADA...77 5.2 SUPORTE QUANTITATIVO...78 5.4 ENVELOPE DE VARIAÇÃO...78 5.4.1Variável dependente...79 5.3.1Variáveis independentes...80 5.3.1.2 Fatores internos...80

5.3.1.3 Variáveis independentes sociais...82

5.3.1.2Variáveis independentes estilísticas...84

6 É IMPERATIVO ANALISAR OS RESULTADOS...94

6.1DISTRIBUIÇÃO GERAL DOS RESULTADOS...97

6.2GRUPO DE FATORES INTERNOS...97

6.2.1POLARIDADE DA ESTRUTURA...97

6.2.2EXTENSÃO SILÁBICA...98

6.2.3Forma de realização do tratamento...101

6.2.4Item lexical...103

6.3 GRUPO DE FATORES EXTERNOS...105

6.3.1Cidades...105

6.3.2Idade...108

6.4GRUPOS DE FATORES ESTILÍSTICOS...110

6.4.1 Formas de tratamento e as relações sociais...113

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6.5 COMUNIDADES DE FALA: ESTABELECENDO OS LIMITES ENTRE FLORIANÓPOLIS E LAGES...124 6.6 EM SUMA...129 É IMPERATIVO CONCLUIR...130 REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICO...133 ANEXO...138

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1 INTRODUÇÃO

1.1 DELIMITANDO O TEMA: POR QUE É IMPERATIVO ESTUDAR O IMPERATIVO

A pergunta com a qual iniciamos esta pesquisa é esta: por que é imperativo estudar o imperativo?

No fluxo contínuo da língua viva, irrompem em profusão a cada instante diversas modalidades de ordem e comando sem as quais não conseguiríamos agir sobre o nosso interlocutor e, assim, levá-lo a cumprir determinado propósito. A função imperativa é um fato linguístico real e atuante no sistema linguístico, quase como que onipresente e, assim, em todas as línguas, das mais variadas famílias linguísticas, há sempre estocados no repertório de matéria verbal componentes linguísticos destinados especialmente para o cumprimento da ordem ou comando.

Essa realidade poderosa das sentenças imperativas tendeu a ficar renegada a um segundo plano nas investigações linguísticas pioneiras as quais se detiveram quase sempre sobre as sentenças afirmativas, de estrutura proposicional clássica. Esse apego às sentenças declarativas resultou de um projeto filosófico de ciência que velava os primeiros pensadores da linguagem. Esse projeto se resumia a uma busca de uma verdade universal, absoluta e não relativizada. É Givón (1993) quem coloca esse debate de forma muito interessante, visto que o linguista funcionalista articula esse projeto filosófico dos filósofos gregos de busca de uma verdade universal com a rejeição dos atos de fala não-declarativos. Platão e Aristóteles renegam tais sentenças, já que o conhecimento verdadeiro não pode apontar para verdades-dependentes-do-contexto. A verdade é sempre verdade independentemente de quem a proferiu, do momento em que foi proferida e para quem foi proferida. E, sendo que atos de fala não declarativos de comando sempre apontam para uma situação sociocomunicativa instaurada entre mais de um interlocutor, não caberia a estes atos de fala o foco da investigação filosófica.

O debate sobre a pertinência da análise de sentenças não declarativas foi colocado por Givón, já que este expande o leque dos tipos de sentença a serem analisadas, saindo do viés clássico em que as sentenças declarativas, e tão somente elas, obtinham a primazia da análise. Em seus trabalhos, sentenças não-declarativas recebem uma atenção especial, principalmente na sua proposta sobre atos de fala manipulativos. De certa forma, muito além de Givón, outros campos da Linguística têm expandido o

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seu material bruto de investigação, quer na Pragmática, Análise do Discurso ou Sociolinguística, uma percepção mais acurada dos multifacetados fenômenos da linguagem humana tem sido recorrente.

Um dos pioneiros a revalidar a importância das sentenças imperativas no campo das instituições humanas foi o filósofo da linguagem judeu-alemão Eugen Rosenstock-huessy (2002)1, que alça as sentenças imperativas a um patamar ainda mais elevado. Embora seja prudente afirmar que o filósofo judeu-alemão encara a linguagem humana e o mistério da sua origem em uma perspectiva filosófica, não há como não deixar de ser interessante a maneira como ele focaliza as sentenças de propriedade imperativa. De certa forma, trata-se de um filósofo que também se opõe a uma visão lógica e formal da língua, como um instrumento de comunicação de um pensamento verdadeiro. Para Eugen, a linguagem é movimento, age sobre o mundo e instaura processos sociais. Processos sociais, por sua vez, se tecem no campo da cooperação humana, onde os atos humanos se abrem e se fecham sob a batuta da ordem e do cumprimento das ordens. É nesse movimento de idas e vindas de ordens e cumprimentos, razão de ser de todo processo social, que Eugen atribuirá uma importância descomunal às sentenças imperativas:

A forma imperativa do verbo preserva a camada mais antiga da linguagem humana. Podemos chamá-la o vocativo do verbo, porque invoca a situação original da linguagem formal: forma-se uma taça de tempo, fundem-se temporariamente numa só vontade dois corpos humanos, inicia-fundem-se uma divisão de trabalho e espera-se que se altere uma parte do mundo externo. Duas pessoas começam a mover-se no sentido dessa alteração. E a simples palavra ‘’fogo’!’’ dá início a todos esses processos, porque define: 1. Um ser humano a quem se pede que obedeça, 2. Um ato mundano que é pedido, 3. Um espaço de tempo que é reservado para a obediência e para o ato

(ROSENSTOCK-HUESSY, 2002, p. 53).

As consequências desses três pressupostos são as de que os imperativos transformam as pessoas em participantes de um processo social, pois ‘’prover sessenta

1

Livro ‘’A origem da linguagem’’, publicado pela Editora Record em uma coleção que visa a divulgar filósofos desconhecidos do grande público. Eugen Rosenstock-Huessy é um filósofo judeu alemão nascido em 1888 e falecido em 1973 nos EUA. Uma das razões para o desconhecimento de sua obra está na recusa que o autor possuía a qualquer apresentação academicamente sistemática de suas ideias.

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milhões de empregos após a guerra é apenas uma expressão velada para designar sessenta milhões de imperativos de longo prazo a que as pessoas obedecerão em suas funções sociais.’’ A segunda consequência é que ‘’qualquer imperativo demonstra que o mundo não pode continuar como está [..] e que o imperativo ocupa posição mais elevada que o indicativo quanto à relevância social e à perfeição lógica. Ele transforma a vida conhecida em ações futuras doadoras de vida. O imperativo, a sentença mais antiga,2 transubstancia o mundo. E a terceira e mais interessante consequência é que os imperativos fazem os homens mover-se na história, tendo em vista que a vida histórica é uma sucessão de imperativos. Reproduzimos a seguir este belo trecho dotado de uma dose carregada de lirismo:

Não é o acúmulo de conhecimentos, a evolução da ciência, o avanço da tecnologia, ou o aumento da velocidade o que marca o progresso da humanidade. A infinita sequência de ordens dadas e obedecidas é que ilumina os tempos da história. Tudo isso está presente em um só imperativo. As coisas do mundo são dominadas, os tempos são decididos, as pessoas são feitas por um imperativo. Luz, plano e determinação inundam o universo mediante a decisão de dois ou mais homens de dar ordens e obedecer a elas. A luz da razão não brilha com tanta força em nenhuma afirmação de fatos como brilha na ordem certa dada e obedecida no momento certo.

(ROSENSTOCK-HUESSY, 2002, p. 54).

O fato é que todo apaixonado por sentenças imperativas pode olhar para a obra de Rosenstock e encontrar inspiração e motivação potencializadas ao máximo.

Saindo de um enfoque filosófico e universalista das sentenças imperativas e deslizando para um plano mais específico e local, podemos pensar ainda mais sobre a relevância de estudar esse tema, o que nos ajudará a lançar as bases que sedimentarão o caminho para o desenrolar desta pesquisa, bem como a razão de sua pertinência.

Esta pesquisa, enquadrada na área de Sociolinguística, que engloba a variação, mudança e ensino como linha de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Linguística na Universidade Federal de Santa Catarina, focaliza nas sentenças imperativas do português brasileiro, ou mais precisamente, na sua realização variada

entre formas verbais indicativas e subjuntivas que podem estar a serviço de um

2

Percebe-se nesta declaração um afloramento da veia judaica de Eugen, ao colocar o imperativo como a sentença mais antiga de todas. Trata-se de uma referência indireta ao fato de, no relato hebraico bíblico da criação, a primeira sentença proferida por Deus ter sido um ato de comando.

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comando. Como alguns linguistas e gramáticos têm assinalado e veremos isso mais detalhadamente adiante, o imperativo não é necessariamente uma modalidade verbal, antes pode ser tomado como uma função pragmática que qualquer vocábulo, dependendo de certas condições discursivas, pode exercer e marcar na língua. Assim, palavras como ‘’Fogo!”’, ‘’Chuva!’’, ‘’Silêncio’’ ou certas sentenças como ‘’ a janela está aberta’’ em um momento em que chove abundantemente pode também desempenhar uma função pragmática de comando.

No entanto, as formas mais cristalizadas na língua para o pleno exercício dos comandos encontram-se naqueles verbos homófonos às formas verbais indicativas e subjuntivas, e aqui nos referimos à segunda pessoa do singular, que será o objeto de investigação deste trabalho. Vejamos isso mais detalhadamente para que possamos vislumbrar com perfeição o tamanho do problema que teremos pela frente e a demanda de carga investigativa que ele cobrará de nós.

No português brasileiro3 encontramos à disposição do falante as formas indicativa e subjuntiva para a consumação da ordem:

Faz o trabalho.

(imperativo canônico, sem sujeito expresso) Ermenegildo, faça o trabalho.

(imperativo não canônico, sentença com sujeito expresso)

Filadélfio, me conta uma piada. Filadélfio, me conte uma piada.

A tradição gramatical legisla uma relação unilateral entre os verbos no imperativo e as formas de tratamento empregadas na cadeia do discurso. Se usamos um pronome de segunda pessoa, no caso o tu, o verbo tem de ir para a forma indicativa, se usamos um pronome de tratamento de terceira pessoa, no caso você, ou uma forma de tratamento que seja, por exemplo o senhor, o verbo deverá assumir ‘’obrigatoriamente’’ a forma subjuntiva.

No entanto, na boca de milhões de falantes do português a cada dia, como as pesquisas linguísticas não cansam de comprovar e sobre as quais falaremos mais

3

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adiante, percebe-se uma mistura entre formas de tratamento e verbos que não são convergentes com aquilo que é vindicado pela tradição gramatiqueira do português.Estariamos assistindo a consolidação daquilo que se tem chamado de imperativo gramatical brasileiro: a forma indicativa do imperativo ocorrendo em

contextos de forma de tratamento você.

É indubitável que na língua que se materializa no calor das massas essa relação entre formas de tratamento e formas verbais é antes de tudo não inequívoca. A hipótese que começa a ser delineada aqui é que a regra que estabelece a combinação entre pronome de segunda pessoa e forma indicativa e pronome ou forma de tratamento de terceira pessoa e verbo subjuntivo tem se enfraquecido na tessitura viva da língua, o que nos aponta para um veemente processo de mudança linguística que já começou a entrar em curso na língua e, consequentemente, nos aponta para um universo em que duas formas linguísticas parecem estar disputando a supremacia pelo uso no português falado.

Somos lançados, então, diante de duas formas que cumprem milimetricamente à risca os dizeres labovianos acerca da regra variável: as formas indicativas e subjuntivas usadas no imperativo são duas variantes de uma variável. Elas constituem, desse modo, a regra variável que protagonizará este empreendimento de pesquisa. Tal empreendimento se firmará na Teoria da Variação e Mudança Linguística com usufruto de sua metodologia estatística a fim de nos oferecer os subsídios necessários para a compreensão desse fenômeno linguístico em variação.

Desse modo, cientes de que, no atual momento do PB, há duas formas verbais acionadas para cumprir a função diretiva da ordem e que tais formas encontram-se em variação, compete-nos, por ora, tomá-las como a variável dependente a encontram-ser esmiuçada nesta pesquisa. Inserindo-a no quadro teórico da sociolinguística quantitativa preconizado por Labov, procuraremos atribuir a esta variável dependente suas frequências de uso relacionadas aos fatores internos e externos que podem agir sobre ela, tudo sob a égide da metodologia clássica da sociolinguística que prevê um tratamento estatístico para as variáveis dependentes, ajudando a formar um painel expansivo, lúcido e descritivo do comportamento da regra varíavel a ser estudada.

A hipótese central a ser destrinchada no presente trabalho vincula a variação das formas imperativas do PB à variação das formas de tratamento de segunda e terceira pessoas também no PB. Olharemos para a nossa variável dependente como um fenômeno encaixado na matriz linguística das formas de tratamento e, por conta disso,

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espera-se haver na comunidade heterogênea de engloba as cidades de Florianópolis e Lages usos variados dessas formas de tratamento que podem desencadear uma carga de variação bastante regulada demais, somando a isso, olharemos para as formas imperativas encaixadas na matriz social, procurando entrever uma gama de relações sociais e ideológicas que poderão reger o uso das formas imperativas. Para isso nos valeremos da teoria das relações de poder e solidariedade tramada por Brown e Gilman (1960 [2003]), porque acreditamos que, sendo o imperativo uma função pragmática em que um jogo de poder e obediência é sempre vindicado e atualizado, deverá haver nas instâncias comunicativas de produção dessas formas verbais em variação certos elementos que nos conduzam a vislumbrar relações ideológicas entremeadas ou configuradas nelas.

Tudo agora é obscuro, opaco e de certa forma misterioso, porém, tomando o banco de dados do projeto Varsul (Variação Linguística do Sul do Brasil) como acervo de dados para a nossa pesquisa, mais especificamente as entrevistas que compreendem as cidades de Florianópolis e Lages, traçar-se-á um panorama descritivo da regra variável do imperativo nessas cidades barriga-verde, lançando algum rasgo de luz sobre as hipóteses aqui redutoramente delineadas.

Diante dessa circunstância típica do gênero da entrevista sociolinguística em que o relato sobre o mundo é o aspecto a ser priorizado, e não uma situação de interlocução entre um ou mais enunciatários, necessário se faz traçarmos estratégias metodológicas a fim de capturarmos no cenário interno da entrevista a manifestação dessas formas imperativas. A solução buscada, então, foi centrarmos o foco de nossa análise nos contextos de discurso reportado, onde o falante invoca um universo de vozes outras, um universo de cenários discursivos outros, a fim de cumprir em seus relatos de experiências determinados propósitos comunicacionais. É no discurso reportado, pois, que centralizaremos o foco de nossa análise e toda a riqueza e valia desse fenômeno (bem como sua pertinência para a nossa coleta de dados) amalgamado nas entranhas das centenas de entrevistas disponibilizadas no banco Varsul será discutida mais acuradamente no decorrer dessa pesquisa.

Assim, acreditando que este trabalho se reveste de importância no atual cenário das pesquisas sociolinguísticas acerca da variação no uso do imperativo tendo em vista haver certa carência de pesquisas com refinamento metodológico sob o prisma da sociolinguística quantitativa em território sulista, nos rendemos à empreitada

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científica que se vislumbra diante de nós, qual seja, a de tentar encontrar a ordem onde tudo a priori aparenta ser caótico no sistema de usos do imperativo no PB.

Cumpridas as preleções rotineiras a todo trabalho acadêmico, apresentamos a configuração de nosso trabalho: na introdução, delimitamos a relevância do objeto a ser estudado, justificando-o no universo totalizante de pesquisas até aqui consumadas na academia. No segundo capítulo, contextualizamos o nosso objeto de estudo, em que trazemos todo um arsenal de informações e pesquisas realizadas no campo da linguística geral da variação no imperativo e da sua função pragmática, bem como algumas abordagens das gramáticas tradicionais e comandos paragramaticais que apontam para uma dissonância entre norma e uso lingüístico. No terceiro capítulo, apresentamos e resenhamos alguns trabalhos científicos sob a ótica variacionista que nos oferecem um ponto a partir do qual podemos ensaiar estratégias a serem arroladas para esta dissertação. No quarto capítulo, solidificamos as bases teóricas deste presente trabalho, delimitamos os conceitos que serão cruciais para o desenvolvimento de nossa pesquisa, bem como faremos uma discussão mais requintada a respeito de noções que nos serão bastante caras no cumprimento deste trabalho. No quinto capítulo, discutimos a metodologia traçada para a captura do objeto em estudo, o modus operandi, as comunidades em estudo, os procedimentos de recolta de dados, a constituição de nossa massa de dados, a disposição de nossas variáveis independentes bem como as hipóteses a serem investigadas. No sexto capítulo, analisamos e discutimos os resultados e, por fim, estabelecemos as considerações finais.

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2 É IMPERATIVO DELIMITAR O IMPERATIVO

Neste capítulo, delimitaremos e contextualizaremos o nosso objeto de estudo, através de um levantamento bibliográfico de algumas fontes e abordagens até então levadas a cabo em teorias linguísticas, manuais de gramática e, principalmente, comandos paragramaticais. Dois movimentos serão buscados nesta seção: (i) entender o grau de complexidade da função imperativa, que extravasa os limites da forma linguística, e (ii) estabelecer a nossa variável dependente e sua provável condição dissonante em relação à norma gramatical, bem como, a partir disso, entender o seu comportamento na conjuntura atual da tensão existente entre norma padrão e norma culta falada.

2.1 O IMPERATIVO: MUITO ALÉM DA FORMA, UMA FUNÇÃO

Conforme foi ensaiado superficialmente na introdução deste projeto, o imperativo é um fenômeno pulsante no sistema linguístico e sua constituição é bastante rica e variada, uma vez que se trata de um fenômeno de funções pragmáticas articuladas com as informações de base linguística. Ou seja, qualquer sentença ou vocábulo pode vir a assumir, por pressões discursivas ou de cunho pragmático, uma função imperativa. Essa ideia pode ser depreendida de alguns linguistas que olharam para esse tipo de sentença e teceram comentários ou desenvolveram teorias a respeito dela, bem como de gramáticos tradicionais mais competentes e sagazes que sobre ela discorreram estendendo os horizontes para além da mera jurisdição coercitiva da norma tradicional. Todos eles, embora apresentem algumas divergências de nomenclatura e de projeto de ciência, apresentam convergência na intuição quanto ao seu funcionamento.

Essa intuição pulsa, por exemplo, na teoria clássica dos Atos de Fala elaborada por Austin (1965) e Searle (1969). Nessa teoria, toma-se a linguagem como um jogo ou ação entre os interlocutores, sendo tal ação independente de uma forma linguística. Tais ações seriam esquematizadas por Austin como: (i) ato locucionário; (ii) ato ilocucionário e (iii) ato perlocucionário. O primeiro corresponde ao sentido ou referência, o segundo diz respeito ao grau de força que o falante atribui a esse conteúdo proposicional, qual seja, a realização de ordem, súplica, promessa, oferecimento num dado contexto, e o terceiro se relaciona aos efeitos produzidos pelo falante sobre o

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ouvinte em um dado enunciado. Desse modo, a distinção entre sentido e força é notável na teoria dos atos de fala e talvez por isso as sentenças imperativas sejam tão caras para essa teoria, já que a ordem está envolvida num dos atos de fala.

Searle (1969), por sua vez, lança mão desses pressupostos pragmáticos a respeito dos atos de fala e direciona a discussão para aquilo que ele denomina de atos de fala diretos e indiretos. Tal dicotomia estaria pautada na seguinte diferença: no ato de fala diretivo, teríamos formas linguísticas especificadas como certos tempos ou modos verbais, expressões estereotipadas e formas de entoação, por exemplo, expressões como ‘’por favor, ‘’por gentileza’’, para a execução de pedidos, solicitações e ordens. Já no ato de fala indireto, o falante realiza um ato que pode concomitantemente significar literalmente o conteúdo expresso na proposição e indicar muito mais do que aquilo que realmente dizem, ou seja, indicando um conteúdo proposicional diferente, ligado a outra força ilocutória. De qualquer forma, os atos de fala caracterizam-se por conter um propósito e uma força expressiva, que pode ser suavizada ou não em decorrência do objetivo do falante e do efeito que ele quer produzir sobre o outro

Cunha e Cintra (1985) deixam-se levar por essa intuição ao assinalar que as formas variantes do imperativo gramatical são um dos recursos existentes no idioma a fim de demarcar ordem, sugestão, pedido ou conselho. Outros recursos são colocados pelo sistema linguístico à disposição da competência comunicativa do falante, esses recursos seriam frases nominais (Silêncio), ou com gerúndio ou infinitivo (Andando!), (Não matarás!) ou ainda frases interrogativas (Tu podes me servir um café?). De acordo com Cunha e Cintra (1985), outros recursos linguísticos estariam em jogo no momento do ato diretivo reforçando o pedido ou ordem, isso por meio de repetições, advérbios, (Saia, saia daqui), (Fale rápido), ou atenuando o pedido ou, isso por meio de fórmulas de polidez (A senhora me desculpe por favor).

Said Ali (1971, p. 323) também adere à intuição pragmática do modo imperativo e atribui a ele a função precípua de ordem, convite, conselho, pedido, súplica, quer dizer, manifestações de vontade ou desejo acompanhadas da esperança de seu cumprimento da parte do indivíduo a quem se dirige. Entretanto, segundo o autor, outras formas podem ocasionalmente preencher o mesmo fim, porém sempre com função secundária.

Não é à toa que Macambira (1990) considera o imperativo assintático, pois a função de interpretação, ordem, comando, pode ser expressa, segundo ele, por palavras de outras classes gramaticais que não o verbo. Além do mais, o autor compara o

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imperativo com o vocativo e assevera que ambos são semelhantes sob o aspecto tonal e interpelativo, ambos sendo assintáticos e jamais subordinados. Para ele, o imperativo é tonal e, por isso, é a entoação que o distingue do modo indicativo e subjuntivo em Português.

Givón (1993), operando nesse nível pragmático, traz a noção de manipulação. Para Givón, um ato de fala não declarativo, o que equivale à sentença imperativa, é constituído de um certo grau de força manipulativa. O imperativo, no geral, está à espera de uma resposta não-verbal do ouvinte, enquanto um outro ato de fala não declarativo, como, por exemplo o interrogativo, e também um ato declarativo de fala necessariamente não estão. Assim, esses atos de fala resguardam certas propriedades manipulativas, pois são os únicos a conduzirem o ouvinte à realização de uma ação. (1993, p. 264). Para Givón, uma combinação equilibrada de status, poder, obrigação, (ou autorização) entre os dois participantes de um ato de fala não declarativo, de natureza imperativa, determina a exata construção manipulativa a ser empregada. Esse combo de fatores articula-se numa relação de interdependência nas interações verbais. Tais interações se dão em associações condicionais de maior ou menor status/poder do manipulador em relação ao manipulado:

a. Status/ poder mais alto do falante

I. Maior obrigação de o ouvinte obedecer II. Menor necessidade de o falante deferir

b. Status/poder mais alto do ouvinte

I. Menor obrigação do ouvinte em obedecer II. Maior necessidade de o falante deferir

De certa forma, esse esquema de associações proposto por Givón para os domínios manipulativos de uma relação social em potencial não deixa de nos impressionar pela simplicidade, lógica e eficácia aparentes e poderão nos ser úteis no delineamento de variáveis estilísticas mais a frente quando discutirmos a teoria das relações de poder e solidariedade. É importante trazer ainda para esse capítulo a noção

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givoniana de dispositivos enfraquecedores ou fortalecedores de força manipulativa dos atos não declarativos de comando.

Esses graus maiores ou menores de manipulação dependeriam sumariamente de dois fatores, quais sejam, a forma como são constituídos linguisticamente e a relação com fatores de natureza extralinguística, no caso o papel social dos interlocutores, relação de intimidade/afetividade, situação de enunciação, entre outros. Givón (1993, p. 265), no entanto, vale-se apenas de critérios linguísticos para atribuir uma escala de maior manipulação entre um enunciado imperativo canônico (Levante-se) e um outro enunciado de pedido a ser deferido (Você se incomodaria se eu lhe pedisse para se levantar?). As metamorfoses linguísticas a que tais construções dispostas abaixo são expostas dotam-se de força manipulativa em escala:

Força manipulativa mais alta

a) Levante-se!

b) Levante-se, acho que você poderia. c) Você poderia se levantar, por favor? d) Você se incomodaria em se levantar? e) Você acha que daria para se levantar?

f) Você se incomodaria se eu se lhe pedisse para se levantar?

Força manipulativa mais baixa

Givón, baseado nessa disposição de sentenças que vão perdendo o grau de força manipulativa em sentido escalar, elenca alguns dispositivos linguísticos que contribuem, por sua vez, com essa retenção de força:

Dispositivos que enfraquecem a força manipulativa a) Aumento da extensão do enunciado de comando. b) Uso de elementos interrogativos.

c) Menção explícita do pronome ‘’você’’ designando o manipulado. d) Uso da modalidade irrealis sobre o verbo.

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f) Disposição de uma oração manipulativa sob o escopo de uma modalidade.

Reis (2003) acrescenta a esses dispositivos elencados as convenções de polidez que, segundo ela, pautariam esses dispositivos enfraquecedores de força. Sozinho ou em combinação com outros dispositivos, esse enfraquecimento, segundo ela, tornaria os enunciados mais polidos, indiretos e deferentes.

Não há como negar que, em termos pragmáticos, Givon consegue um grau de sofisticação para além da teoria dos atos de fala, conseguindo atribuir graus de força a esse emaranhado de formas linguísticas das mais variadas constituições que podem num contexto pragmático/discursivo assumir a função de comando. Mas nossa pesquisa não lidará com esse emaranhado de formas que são pragmaticamente imperativas. Por uma questão metodológica e principalmente de adequação à regra variável laboviana, é necessário delimitar o nosso objeto de pesquisa e, portanto, o circunscreveremos apenas àquilo que Givón chama de imperativo canônico ou que os linguistas estruturais e a gramática normativa chamam de verbos imperativos.

Feita essa delimitação, sigamos para agora tratarmos apenas do modo imperativo verbal.

2.2 AS MARCAS DO IMPERATIVO EM FORMA VERBAL

Monteiro (2002) aplica o método estruturalista para a descrição do sistema mórfico do PB. Neste livro, o autor reserva uma seção para descrever em termos estruturais o modo imperativo do PB, lançando algumas informações pertinentes que passamos a relatar a seguir. Para Monteiro, o modo imperativo distingue-se do presente do indicativo nas desinências número-pessoais: ø ~ [s] e [i] ~ [is]. O autor concorda com a noção recorrente nas gramáticas de que o imperativo é formado do presente do indicativo, sem o /s/ final:

Louvas  louva Louvais  louvai

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As desinências ø e [i] ocorrem, segundo ele, apenas no imperativo, sendo alomorfes de [s] e de [is]. Outra constatação de Monteiro a respeito das sentenças imperativas é a sua posição até certo ponto divergente de outros autores. Para ele, existe sim um modo imperativo, no entanto este modo compreenderia apenas as formas de segunda pessoa, singular e plural, uma vez que as ordens ou instrução são em geral dadas diretamente a um ouvinte. Neste caso, o autor prefere suprimir do modo imperativo as formas subjuntivas, além de preferir recusar a falar, em termos morfológicos, de um imperativo negativo, visto que se trata, na sua opinião, ‘’de um presente do subjuntivo aplicado estilisticamente para expressar uma ordem, o que configura um caso de supleção, ou seja, as formas do subjuntivo são usadas para suprir a falta das do imperativo’’ (2002, p. 119) O autor termina suas breves reflexões defendendo que o modo imperativo é marcado pela entonação (indicada na escrita pela pontuação), e pela ausência do pronome sujeito. Com isso, estão de acordo Cunha e Cintra (1985, p. 465) ao afirmarem que o imperativo afirmativo possui formas próprias só para as segundas pessoas, sendo que as demais pessoas e o imperativo negativo se utilizam do presente do subjuntivo.

Câmara Jr. (1979), por sua vez, vê o imperativo como um subjuntivo sem o elo da subordinação sintática. Por isso ‘’confunde-se formalmente com ele no verbo negativo e mesmo no afirmativo, fora da segunda pessoa gramatical do singular e a segunda pessoa do plural’’ (1979, p. 102). O pioneiro lingüista brasileiro chega a ensaiar um traçado histórico para o assunto, ao constatar que o imperativo latino tinha uma forma para o presente, empregada para ordens que deveriam ser cumpridas imediatamente, e uma para o futuro, que caracterizava as ordens que deveriam ser cumpridas mais tarde; com o desenrolar do tempo, a forma para o futuro desapareceu, passando a existir apenas a do presente. O autor diz também que, já no latim, o subjuntivo era usado para suprir as pessoas gramaticais que não eram contempladas pelo imperativo morfológico. Ou seja, esse uso funcional do verbo subjuntivo com função imperativa parece encontrar eco na história. Said Ali (1971, p. 323) não vai por caminhos diferentes ao destacar que, quanto à formação, o imperativo português apresenta somente para o sujeito tu forma própria e ‘’devido à deficiência nas frases negativas para o dito sujeito, nas afirmativas ou negativas para os sujeitos você, o Sr., etc. e para a 1ª pessoa do plural, recorre-se a formas do presente do conjuntivo.’’ (1971, p. 323)

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Do ponto de vista descritivo estruturalista, parece haver uma tensão em relação a serem as formas imperativas próprias ou derivadas. Essa tensão se dissipa em uma belíssima análise histórica das sentenças imperativas empreendida por Faraco (1982), mas nos focalizaremos nela, mais adiante, dada a sua originalidade e pioneirismo. Sendo assim, na sequência introduzimos a abordagem do verbo imperativo dentro do terreno da jurisdição coercitiva da gramática tradicional4 e dos comandos paragramaticais.

2.3 O IMPERATIVO SOB A JURISDIÇÃO COERCITIVA DA GRAMÁTICA TRADICIONAL E DOS COMANDOS PARAGRAMATICAIS: A DISSONÂNCIA ENTRE NORMA E USO

Antes de trazermos nossa seleção de gramatiqueiros mordazes que já discorreram sobre a nossa variável dependente e a respeito dela opinaram, cremos ser necessária uma breve introdução quanto ao tema da norma padrão brasileira, tendo em vista que o fenômeno em estudo está revestido de particularidades sociais que outras variáveis linguísticas não apresentam.

Por exemplo, Scherre (2004), ao tratar da norma do imperativo, é enfática ao asseverar, com base intuitiva e nas pesquisas até então desenvolvidas, que não existe sentimento de erro no uso do imperativo no discurso do próprio falante e nem julgamento de erro no discurso do outro, seja qual a forma for usada. É uma hipótese bastante plausível, ainda mais se direcionarmos nossa variável dependente para o cerne dessa discussão entre norma padrão e padrão de fala real.

Faraco (2004) almejando desenlaçar alguns nós constitutivos da norma padrão brasileira nos delega reflexões bastante apuradas a respeito deste assunto. Para ele a formação da norma é um terreno complexo, repleto de arestas ideológicas, em cujo núcleo estaria uma relação de poder entre as classes dominantes e dominadas, uma vez que a cultura escrita sempre encontrou a sua legitimação nas esferas mais elevadas de poder social. Segundo Faraco (2004, p. 41), em se tratando de norma padrão,

4

O termo “jurisdição coercitiva da gramática tradicional” foi elegantemente cunhado por Maria Eugênia Duarte em seu posfácio à tradução brasileira de ‘’Fundamentos empíricos para uma teoria da variação e mudança’’.

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‘‘encontramos um complexo entrecruzamento de elementos léxico-gramaticais e outros tantos de natureza ideológica que, em seu conjunto, definem o fenômeno que designamos tecnicamente de norma padrão.’’

A norma padrão estaria, assim, intimamente vinculada à cultura escrita que, associada ao poder social, desencadeou também, ao longo da história, um processo fortemente unificador que alcançou basicamente atividades verbais escritas. Para o linguista curitibano, esse processo fortemente unificador visou a uma estabilização linguística idealizada, buscando, assim, neutralizar a variação e controlar a mudança. Ao resultado desse processo, a essa norma estabilizada, costuma-se atribuir o rótulo de norma padrão ou língua-padrão.

Chama a atenção nesse texto de Faraco a sua proposta de estabelecer uma sutil distinção entre norma culta e norma padrão. Embora ambas acabem tendo sua zona de convergência no espaço mais abastado socialmente de uso linguístico, a segunda difere da primeira por relacionar-se apenas a uma certa dimensão da cultura, no caso à cultura escrita, enquanto a norma culta diz respeito, nas palavras de Faraco

à norma linguística praticada em determinadas situações, aquelas que envolvem certo grau de formalidade, por aqueles grupos sociais mais diretamente relacionados com a cultura escrita, em especial por aquela legitimada historicamente pelos grupos que controlam o poder social (FARACO, 2004, p. 42).

A despeito de a norma padrão não se imiscuir com a norma culta, está mais próxima dela do que as demais normas, tendo em vista que seus codificadores, sectários e guardiões pertencem aos extratos sociais usuários de norma culta. No entanto, essa possível convergência vem acompanhada de outras tantas nuances de tensão

porque o inexorável movimento histórico da norma culta tende a criar um fosso entre ela e o padrão, ficando este padrão cada vez mais artificial e anacrônico, se não houver mecanismos socioculturais para realizar os necessários ajustes (2004, p. 42).

Essa metáfora do fosso, em brilhante inspiração de Faraco, é altamente apropriada, tendo em vista que qualquer estabilidade da norma padrão projeta um

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descompasso inevitável entre ela e a fala culta, na medida em que os processos de mudança desta última são mais céleres:

Gera-se, então, uma tensão contínua entre norma culta e norma-padrão, considerando que ambas convivem na experiência dos mesmos falantes, tensão que, inevitavelmente, redunda em movimento, isto é, em mudança [...] como a distância entre a norma culta e o padrão artificialmente forjado era muito grande desde o início, enraizou-se, na nossa cultura, uma atitude purista e normativista que vê erros em toda parte e condena qualquer uso – mesmo aqueles amplamente correntes na norma culta em textos de nossos autores mais importantes – de qualquer fenômeno que fuja dos estipulados pelos compêndios gramaticais mais conservadores (FARACO, 2004, p. 52).

Faraco finaliza defendendo que essa situação de descompasso tem nos causado inúmeros males, seja no ensino, seja no uso de um desejável padrão. Este, que deveria ser um elemento sociocultural positivo, se tornou, no caso brasileiro, um pesado fator de discriminação e exclusão sociocultural.

Voltando agora para a nossa variável dependente: se, com base em Scherre (2004) podemos afirmar que o uso do imperativo em variação não dispara sentimentos de erro ou estigma social, este parece não ser o comportamento predominante nas arenas monolíticas da norma padrão. O nosso fenômeno em estudo, o modo imperativo e suas formas de segunda pessoa, tem sido alvo de uma constante legislação coercitiva que busca justamente acorrentar o fluxo incessante da história e seu natural processo de mudança. Ou seja, a variante imperativa é o exemplo perfeito para ilustrar essa tensão entre norma culta e norma padrão.

A título de ilustração, podemos observar em algumas seletas gramáticas normativas, como Cunha e Cintra (1985), um ideal de uso proposto para as formas verbais do modo indicativo e que geralmente se mostra nas gramáticas em forma de quadros representativos da associação dos verbos imperativos com os pronomes ou formas de tratamento, uma maneira de sistematizar visualmente uma regulagem de uso que, na prática, não se sustenta:

Modo indicativo Modo imperativo afirmativo Modo subjuntivo Modo imperativo negativo

Tu falas (-s) fala (tu) Fales Não fales

Você fala Fale (você) Fale Não fale

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Então, com base nesse quadro artificial, teríamos o seguinte padrão de uso: a) fala, abre, faz, vem, diz, para o imperativo afirmativo singular no contexto do pronome tu;

b) fale, abra, faça, venha, diga, para o imperativo afirmativo singular no contexto do pronome você;

c)não fales, não abras, não faças, não venhas, não digas, para o

imperativo negativo no contexto do pronome tu;

d)não fale, não abra, não faça, não venha, não diga, para o imperativo negativo no contexto do pronome você.

Embora alguns gramáticos assumam, ainda que em doses moderadas e tão somente levemente insinuantes, uma diferença de uso na língua real em comparação com o que é legislado, esse quadro artificial associativo das formas verbais imperativas com os pronomes pessoais, sempre onipresente em cada gramática normativa, lá é posto como um monumento da sacralidade de uma língua que talvez seja falada apenas em um plano etéreo...

Esse monumento à sacralidade da língua padrão ganha contornos ainda mais densos naquilo que Bagno (1999) chamou de comandos paragramaticais o que, segundo ele, se trama a partir de todo o contingente de materiais midiáticos colocados à disposição de consumo do grande público. Geralmente são programas de TV, colunas de jornal, blogs na internet, manuais do falar e escrever corretamente que, não apenas se contentando em reproduzir uma norma anacrônica e artificial, o fazem com um rigor normativo ainda mais acentuado, em textos sempre carregados de sarcasmo, ironias e, o mais grave, de preconceito social e linguístico. Em conformidade com nosso objeto de

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estudo, vamos elencar alguns representantes desses comandos, a fim de tornar mais evidente o abismo entre norma culta e norma padrão.

Tal tradição de comandos paragramaticais em língua portuguesa teve sua origem, segundo Faraco (2004), com Cândido de Figueiredo que, no fim do século XIX, e início do século XX, dispunha de um espaço em jornais de Lisboa e do Rio de Janeiro, para tratar de questões linguísticas. Em sua coluna, dedicava-se ele, ‘’no melhor espírito inquisitorial, a caçar erros de língua em toda parte, e a condenar furiosamente os falantes por sua suposta ignorância linguística e seu descuido e descaso das questões vernáculas’’ (FARACO, 2004, p. 52)

Napoleão Mendes de Almeida, já em meados do século XX no Brasil, também pululou nas páginas dos grandes jornais brasileiros com sua coluna de questões vernáculas, muitas das quais se transformariam mais adiante em um ‘’dicionário de questões vernáculas’’. É sobre Napoleão, o grande mentor do paragramaticalismo em

terras tupiniquins na metade do século XX, expoente máximo do preconceito linguístico, que trataremos a seguir.

2.3.1 Napoleão e seu estupor gramatiqueiro

Como já insinuado anteriormente, ‘’Dicionário de questões Vernáculas é

resultado de uma compilação de escritos que Napoleão Mendes de Almeida levou a cabo a partir de sua coluna ‘’Curso de Português por correspondência’’ publicada desde 1938 no jornal ‘’O Estado de São Paulo’’. Napoleão, renomado filólogo e latinista, e de

sólida concepção purista acerca do idioma, não economiza nos adjetivos eruditos para espezinhar aqueles que, em sua visão, aviltam o idioma. Logo na introdução de seu dicionário, ele é categórico e emblemático ao afirmar que

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Umas tantas outras considerações sobre essa escolha [o nome do dicionário] e a seção aqui perdura com a benigna aceitação e colaboração dos leitores, já antevendo o fim de uma jornada toda caminhada com muita persistência num terreno de questões tanto mais numerosas e inesgotáveis quanto mais ao sabor da ignorância e do desleixo, quanto mais à deriva dos invencioneiros de modismos e dos derrotistas do belo literário, dos acomodáticos da incúria oficial e do desmazelo didático, dos propagandistas de desordem linguística e dos que não enfrentam a incapacidade de educação.( MENDES DE ALMEIDA, 2003, INTRODUÇÃO)

Napoleão vai derramar ainda mais o seu dissabor contra a língua viva do português brasileiro em alguns dos itens de seu dicionário, tais como no verbete ‘’Língua sem gramática’’, no qual ele potencializa ao máximo a sua aversão à

heterogeneidade da língua portuguesa:

Para justificar seu descaso à língua, ou acobertar a sua ignorância, que muitas vezes é apenas pouca vontade de esforçar-se por sabê-la, os que são pouco diligentes no escrever procuram acobertar-se com o falso argumento de atribuir à língua vivacidade, não lembrados de que vivacidade de um idioma não se manifesta com enxertidas bastardas, com estropiamentos de sua sintaxe, com mutilação de seus verbos, com demonstração de seu patriotismo doentio de dialetos, com emprego das armas de comunicação para transformar o idioma em algaravia de bárbaros, em terreno destruído pela ignorância de cultivo .(MENDES DE ALMEIRA, 2003, p. 314)

Napoleão é quase um mestre na exacerbação de adjetivos cujo fim é denegrir as variantes não-padrão da língua bem como os defensores e usuários desta

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variedade popular, quais sejam, todos os milhões de brasileiros que todos os dias fazem uso das construções condenadas pelos normativistas. Chega quase a ser uma ‘’queima de estoque’’ completa de adjetivos depreciadores, que a cada citação materializam a sua

concepção homogênea e radical de língua, língua esta que estaria, na visão do gramático, sendo mutilada e estropiada por uma algaravia de bárbaros. Não é por mera casualidade que Napoleão chegará ao ápice de seu estupor gramatiqueiro no verbete ‘‘Linguística’’ quando afirma que ‘’para fixar inúteis, pretensiosas e ridículas

bizantices, perde o estudante o tempo que deveria dedicar ao conhecimento efetivo da língua’’. E termina de forma mortífera o verbete asseverando que ‘‘ é a linguística um

dos estorvos do aprendizado da língua portuguesa em escolas brasileiras’’. (2003, p. 316)

Assim, a linguística é um estorvo, os linguistas são propagandistas da desordem linguística e os falantes do português são todos ignorantes e desleixados. Já o Senhor Napoleão paira num plano abstrato, esotérico, quase platônico, onde só ele e somente ele parece estar abraçado ao seu ideal de língua. É com esse ideal de língua que Napoleão analisa as variantes do modo imperativo do português e o faz nas suas duas principais obras: o ‘’Dicionário de Questões Vernáculas’’ e a ‘’Gramática Metódica da Língua Portuguesa’’.

No verbete ‘‘Imperativo’’, Napoleão analisa uma sentença de um folheto de missa dominical que dizia ‘’Vai e não peques mais’’. Essa sentença Napoleão considera

grave erro de redação, tendo em vista que segundo ele ‘’as formas imperativas, quer positivas, quer negativas, devem concordar com o tratamento dado a quem nos dirigimos’’ (2003, p. 257) Para o purista, se era intenção do redator do folheto tratar o

interlocutor por você ele deveria ter usado a construção ‘’vá e não peque mais’’, já que o folheto da missa dominical estava redigido até então com a forma de tratamento você.

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Napoleão ainda se equivoca ao atribuir à conjugação das formas imperativas negativas, derivadas do subjuntivo, um status de facilidade em relação às formas do imperativo afirmativo. Ou seja, além de perpetuar com um rigor acético o mito de uma língua homogênea, perpetua também o mito de uma língua difícil, dotada de estruturas mais fáceis e outras mais difíceis, como se o falante real não tivesse competência para acionar de forma natural tais estruturas linguísticas.

2.3.2 Pasquale Cipro Neto e sua ‘’Inculta e Bela’’

É quase um clichê falar de comandos paragramaticais e falar de Pasquale Cipro Neto, dado o êxito de sua carreira frente às mais variadas mídias em que ele se inseriu. Seja no site UOL, na Folha de São Paulo, na TV Cultura, na Rádio Globo, com seus boletins informativos diários de regras gramaticais, Pasquale se transformou numa espécie de referência para as grandes mídias em se tratando de norma padrão e de última palavra em se tratando de autoridade nas questões envolvendo o português culto, tornando-se, por conta de seu renome construído, revisor de texto principal da redação da Rede Globo.

No entanto, embora o paragramatiqueiro muitas vezes se volte para falar de adequação de língua a contextos e tentar buscar explicações que extravasam o limite da ortodoxia purista tão somente, Pasquale não deixa de resvalar em explicações vazias, insustentáveis, descabidas, mas que cintilam como brilhantes para amadores que quase nada sabem de metalinguagem. E foi numa das suas análises sobre o funcionamento de sentenças imperativas no PB que Pasquale haveria de incorrer numa das suas inúmeras incoerências de praxe.

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Em 1999, escrevendo para sua coluna diária na Folha de São Paulo, Pasquale apontou o seu gatilho purista para a publicidade, na época de grande êxito popular, da empresa de telefonia Embratel e seu antológico slogan ‘’Faz um 21’’ protagonizado por Ana Paula Arósio. Para Pasquale Cipro Neto, a propaganda apresenta uma inadequação gramatical, já que a atriz durante toda a duração do anúncio se valeu do pronome de terceira pessoa você e encerra o comercial usando uma forma imperativa de segunda pessoa, no caso ela deveria usar ‘’Faça um 21’’ para não incorrer na transgressão da ‘’mistura de pessoas’’ e assim estabelecer a concordância sintática com

o pronome você. O paragramatiqueiro, de forma professoral, assume que

Em situações formais, persegue-se e deseja-se a chamada ‘uniformidade de tratamento’. Não parece ser esse o caso da linguagem publicitária, muitas vezes próxima da coloquial. O único problema é que, como vimos, a forma escolhida não é unanimidade na língua oral dos brasileiros (ao se referir ao que tinha dito anteriormente, que, para os baianos, em contextos informais de fala, a forma mais utilizada é faça). É isso. (CIPRO NETO, Texto da semana, 22/07/99).

Cipro Neto, ainda não satisfeito com as incoerências até então aventadas, faz referência à relativização do uso da língua em contextos enunciativos diferentes. Para ele, ninguém escreveria numa sala pública algo como ‘Não fuma’. No entanto, acrescenta, em muitas regiões do país, como em São Paulo, por exemplo, a forma indicativa é a que costuma ser empregada no dia-a-dia, em situações informais. Assim, o uso de ‘Não fuma’ como forma de um aviso público (mesmo em São Paulo) não seria

possível, porque, para esse paragramatiqueiro, não é nenhuma novidade o fato de termos sempre que entender que o que se fala nem sempre se escreve. E finaliza sua

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coluna afirmando que o bom professor seria aquele que consegue mostrar que o imperativo abonado pela norma culta se impõe naturalmente em certas situações.

Entre apegos a noções gramaticais que cheiram à naftalina, como a tão preconizada ‘’mistura de pessoas’’ e intuições equivocadas a respeito da noção de

formalidade/informalidade, parece que o professor não se cansa de destilar temeridades. Equívocos como ‘’mistura de pessoas’’ têm sido aniquilados pelos estudos lingüísticos,

nos quais tem se comprovado que você e tu na verdade são formas intercambiáveis de segunda pessoa e não constituem, de fato, pessoas gramaticais diferentes. Neste sentido, o conceito de uniformidade de tratamento também não se sustenta dado este intercâmbio entre as duas formas, bem como não se sustenta a ideia de se perseguir e desejar a tal uniformidade de tratamento em ambientes formais, ainda mais quando se tem uma variação destituída de estigma social, onde então um fator como formalidade, caso possa agir sobre a escolha de uma forma imperativa, tenderá sempre a ser um fator com força relativa e não absolutamente categórico (sobre isso, falaremos mais adiante quando compusermos melhor as nossas hipóteses).

Por fim, ao dizer que uma forma imperativa negativa, tal como ‘’Não fuma’’ não poderia ser empregada em um aviso de repartição pública por ser este um ambiente formal, e tal ambiente instigaria o uso da forma ‘’Não Fume’’, Pasquale

demonstra mais uma vez o seu contingente limitado de conhecimento linguístico, pois, como Scherre tem investigado em seus trabalhos variacionistas (1999), o texto escrito é um forte ambiente de retenção das formas subjuntivas quando não se tem uma âncora discursiva a fim de dar suporte para uma interpretação imperativa das sentenças. Sem tal âncora, a leitura imperativa acaba por ser prejudicada e, no caso da frase proposta por Pasquale, a ausência de âncora seria o fator inibidor crucial para o irromper da forma

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subjuntiva e nada tem que ver com situação de formalidade ou informalidade, como tenta apregoar descabidamente.

2.3.3 ‘’Não erre mais’’ e o sarcasmo tenebroso de Sacconi

Se o radicalismo de Napoleão provoca em qualquer leitor mais atento às questões linguísticas um certo grau de aversão, Sacconi também não deixa de nos provocar uma certa repulsa, tamanha é a sua carga de preconceito e violência simbólica5 empreendidas em seu manual de redação. Além do mais, desde o início o autor faz questão de demonstrar o tom de galhofa que percorrerá todo o seu texto:

''as brincadeiras, ironias e às vezes até alguns sarcasmos encontrados neste ou naquele caso ficam por conta de uma índole espirituosa, quando não de uma caturrice sem conta. Nada tem que ver com desprezo ou menosprezo aos ignorantes. Afinal, todos têm o direito de ser felizes à sua própria moda'' (SACCONI, 2005, introdução).

Assim, deixando implícito que não saber norma padrão é coisa de ignorante,

Sacconi não deixa também de disparar a sua auto-intitulada caturrice na análise das sentenças imperativas, sempre de forma categórica, incisiva, sem margens à relativizações:

5

Violência simbólica é empregado aqui no sentido proposto pelo sociólogo Pierre Bordieu no seu livro ‘’O poder simbólico’’ publicado pela Editora Bertrand Brasil.

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Não brinque, que isto é coisa séria: as formas do imperativo negativo são idênticas às do presente do subjuntivo. Como brinca é forma do presente do indicativo, não cabe aí; a forma a ser usada é a do presente do subjuntivo: brinque. Portanto, sem brincadeira de mau-gosto ( SACCONI, 2003, p. 163).

Embora ele avente tal descuido à norma ser uma brincadeira de mau-gosto, verdadeira brincadeira de mau-gosto é o que ele faz em sequência ao comentar o comercial da Caixa Econômica Federal e seu conhecido slogan ‘’vem pra caixa você também’’:

Vem pra caixa você também: Se algum dia o caro leitor receber um convite dessa forma, recuse! Recuse, porque a incompetência é que o convida. Vejamos por quê: vem é forma de segunda pessoa do imperativo afirmativo, você é o pronome de terceira pessoa, ou seja, exige o verbo também nessa pessoa. Assim, aquela frase não está perfeita, não está conforme aos princípios do idioma. Se, porém, o convidarem de outra forma, pode aceitar o convite, que nada lhe acontecerá de ruim. Assim, por exemplo:

Vem pra caixa tu também. Venha pra caixa você também.

Não transija com os incompetentes, caro leitor! Isso pega! (SACCONI, 2003, p. 163)

Resta saber se o paragramatiqueiro alguma vez deixou de abrir conta bancária na Caixa Econômica Federal por conta da suposta incompetência deste anúncio. No mais, consideramos que qualquer outro comentário que se possa tecer a respeito das colocações preconceituosas de Sacconiseja, isso sim, transigência com os incompetentes...

(39)

2.3.4 Sérgio Nogueira: entre a simpatia e o simulacro

Sérgi Nogueira, formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com mestrado pela PUC do Rio de Janeiro, é professor titular da Unicarioca e autor da coluna Aula Extra no jornal Extra. É atualmente consultor do quadro Soletrando do Caldeirão do Huck onde ganhou projeção nacional, a exemplo do professor Pasquale Cipro Neto.

O autor, embora não tanto radical quanto os outros paragramatiqueiros, em seu manual ‘Português do dia-a-dia: como falar e escrever melhor’ logo na introdução

ensaia um flerte com uma suposta neutralidade, não se pretendendo tomar partido a favor de nenhuma concepção de gramática, pretendendo apenas querer elaborar um manual que auxilie na boa comunicação. No entanto, na folha de seu livro, está escrito que

a língua portuguesa falada no Brasil é, no universo da lusofonia, aquela que se transforma com maior velocidade e profundidade, distanciando-se nesta dinâmica de uma forma tão sensível da matriz original que já seria lícito se falar hoje em idioma brasileiro. Isso porque a incorporação de neologismos de origem estrangeira ou regional se faz em forma acelerada, ao passo que a cultura de massa, sobretudo a televisão e a indústria musical- subverte o falar culto, distorcendo-o e contaminando-o de modo incessante (NOGUEIRA, 2004).

Assim, com seu jeito bonachão típico de ser, Nogueira se distancia da sua formação de linguista para se assumir, na prática, como um paragramatiqueiro legítimo,

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ao defender uma suposta contaminação incessante do falar culto. Além disso, o autor trabalha ao longo de todo o seu manual com a noção de certo e errado, como se estas essas ão proviessem de algum reino mítico em que as normas cultas tenham sido forjadas. Imbuído deste espírito, o professor Nogueira é contundente ao comentar o

slogan da Caixa Econômica Federal, o mesmo em pauta no livro de Sacconi: ‘’vem pra

caixa você também.’’:

Vem ou venha pra Caixa você também?

O certo é venha. Embora frequente na linguagem falada brasileira, devemos evitar a mistura de tratamentos. Ou usamos a terceira, ou usamos a segunda (NOGUEIRA, 2004).

Sem delongas, o paragramatiqueiro de forma simplória tacha as construções com um rótulo de certo ou errado, em uma explicação vazia, sem substância e pautada no anacrônico conceito de mistura de tratamentos. Parece que tanto Nogueira, quanto Sacconi, esqueceram-se de que no comercial da Caixa Econômica Federal o fator estilístico imposto pela métrica ao jingle foi determinante para as variantes escolhidas, e não questões relacionadas à incompetência, ignorância, ou seja lá o que for. E Nogueira com sua pretensa neutralidade e ar bonachão não passa de um simulacro por trás do qual se esconde um paragramatiqueiro autêntico.

2.3.5 Dilson Catarino e suas pegadinhas gramaticais

Todo vestibulando que vai em busca de sites que ofereçam dicas de vestibular acabam aterrissando na página do site UOL destinada a este fim. Lá o internauta mais atento poderá deparar com a coluna ‘’Pegadinhas gramaticais’’ do

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