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O Islã em Terras Brasileiras, Oriundo de Escravidão

2. O ISLÃ EM TERRAS BRASILEIRAS

2.1 O Islã em Terras Brasileiras, Oriundo de Escravidão

Importante registrar, nesta altura do desenvolvimento deste trabalho, as minguadas referências relevantes ao nosso principal objeto de pesquisa, ou seja, a mulher muçulmana no período do islamismo de escravidão no Brasil. Porém, ainda que poucas, algumas boas referências ajudam-nos a perceber a sua importante presença neste período.

Algumas dessas poucas, mas importantes referências sobre a mulher muçulmana de escravidão, fazendo alusão principalmente à sua religiosidade e mesmo às suas indumentárias e como transitavam em um contexto adverso e hostil, são fundamentais para situar a mulher muçulmana de nosso tempo.

Mesmo sem registros históricos de ações memoráveis femininas, não quer dizer que elas não tenham realizado ações que lhes confiram destaque nesta fase do Islã de ecravidão no Brasil. Contudo, o contexto e o período fizeram-nas mulheres quase “sem nome”. Registros, como estes que relataremos abaixo, evidenciam a importância destas mulheres: supostamente, uma mulher Malê de nome Luiza Marrin (Mahim)43. Segundo a tradição oral, esta foi a genitora do então

poeta Luiz Gama.

Luiza aparece em alguns relatos orais como uma das líderes da revolta Malê de 1835, atuando com outros líderes. Sua base, supostamente, era um belo

43 Marrin é uma corruptela de Mahim. Segundo Reis, Mahim é um nome de procedência Nagô.

No campo da historiografia, autores como Sud Menucci, Etienne Ignace, Luiz Vianna Filho, José Honório Rodrigues e João José Reis, forneceram o embasamento teórico para o desenho do painel historiográfico que permitiram a idealização desta personagem à revelia da História. A “criação” de uma identidade nacional e a “invenção” de uma memória para o país foram os pilares do discurso ideológico fundador de parte significativa da produção historiográfica brasileira. Tratava- se de um modelo de escrita da história – atualmente contestado – que enaltecia e mitificava os grandes homens seus feitos. Neste sentido, a introdução no universo da historiografia de técnicas geralmente associadas ao mundo das Letras, como o uso da narrativa, influenciado pela emergência da Nova História Cultural, têm fornecido elementos para a compreensão do presente a partir do destaque ao indivíduo comum e a recomposição de trajetórias de vida. Luiza Mahin é uma personagem presente em segmentos da memória brasileira, lembrada como símbolo de luta feminina e referência na resistência ao escravismo. A análise de representações e a percepção de distintas (re)construções discursivas acerca desta personagem em narrativas literárias e/ou historiográficas é o ponto de partida para compreender os mecanismos que permitiram a sua idealização e o que tais representações revelam sobre o contexto no qual foram (re)elaboradas. Apesar de comumente relacionada a levantes escravos e rebeliões libertárias, no campo da historiografia Luiza Mahin é uma personagem que suscita polêmica, principalmente em decorrência da carência de registros documentais que assegurem a sua existência. Em tempos de exaltação da herança cultural afro- brasileira e de busca de representantes históricos que traduzam os ideais de resistência, liberdade e identidade do negro no Brasil, o nome Luiza Mahin surge como sinônimo de valores essenciais às conquistas dos descendentes de africanos que aqui foram escravizados por quase quatro séculos. (GONÇALVES, 2009, p. 1-2).

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sobrado onde hoje funciona um centro cultural negro: a Casa de Angola44. Luiza

Marrin, supostamente, viveu neste casarão, denominado de Solar do Gravatá, no Largo do Veteranos, localizado ao sopé da Ladeira da Praça. Segundo a tradição oral, deste sobrado ela teria participado ativamente da elaboração da revolta Malê. Uma de suas principais tarefas teria sido o despacho contínuo de mensagens escritas em árabe. Esta informação foi dada pelos informantes de Antonio Monteiro. Numa carta de 1880, o poeta abolicionista Luiz Gama, filho de Luiza com um rico fidalgo português, relatou a um amigo que era filho natural de uma africana livre, procedente da Costa da Mina (Nagô de nação Malê), de nome Luiza Mahim, pagã que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Ele a descreveu como “de baixa estatura, magra, bonita, altiva, geniosa, insofrida e vingativa”. Sobre a tendencia revolucionária da mãe, ele informou: “Mais de uma vez na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreição de escravos que não tiveram efeito. E, em 1837, veio para o Rio de Janeiro e nunca mais voltou”, contam os registros deixados por Gama, que foi vendido como escravo pelo próprio pai aos dez anos de idade. (REIS, 2003, p. 351-359). Buscando pistas, que indicassem uma direção de como se comportavam as mulheres muçulmanas negras, como estas desempenharam seus papéis neste período tão difícil para os negros em geral, especula-se que Luiza Mahim e por inferência, outras tantas mulheres negras foram articuladoras do movimento Malê.

O contexto favoreceu o trânsito das mulheres, uma vez que trabalhavam nas ruas, vendendo e por serem menos vigiadas que os homens escravos, as mulheres podiam, facilmente, formar uma rede de solidariedade e comunicação, que tanto serviu para espalhar mensagens das revoltas, quanto para formar irmandades cuja missão era juntar recursos em dinheiro para a compra de alforrias. Embora as mulheres tivessem uma maneira muito delas, peculiar de organização, elas são colocadas em pé de igualdade com os homens na articulação da liberdade. Suas armas mais fatais, supostamente, eram muitas vezes a sedução e a proximidade com a casa-grande, porque gozavam de maior confiança dos patrões e, assim articular seus planos. (REIS, 2003, p. 270).

44 Casa de Angola: Supostamente, antiga morada de Luiza Mahim, denominada de Solar do Gravatá.

Hoje, um museu e centro de promoção e divulgação da história, cultura e atividades negras. Localiza- se na Praça dos Veteranos nº5, Salvador – Bahia – Brasil.

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Outro importante registro fala de uma muçulmana escrava de nome Carmen Teixeira da Conceição, nascida em 1877. Saindo da Bahia, foi para o Rio de Janeiro em 1893. No Rio de Janeiro ela continuou a praticar a religião islâmica, porém, na idade adulta, por questões de perseguição religiosa, teve que abrir mão das práticas corânicas e mudar-se para o cristianismo católico romano. A solidão e a religiosidade islâmica sempre mantida em segredo, podem ter exaurido as forças desta mulher muçulmana. Tornou-se uma católica romana fervorosa, contudo, momentos antes de morrer, numa conversa de fim de vida, os seus olhos marejaram-se de lágrimas, ao recordar a sua crença de menina moça e os velhos muçulmanos do Rio de Janeiro. Segundo Rodrigues, os muçulmanos nunca foram tão numerosos no Rio de Janeiro quanto em Salvador, na Bahia, onde, um em cada três dos velhos africanos, antes da inssurreição de 1835 (revolta dos Malês), era praticante do Islã. (RODRIGUES, 1932, p. 96).

Tanto no Rio de Janeiro quanto na Bahia e noutros lugares do Brasil,os muçulmanos, na época, denominados de muçulmis, desprezavam as práticas religiosas dos orixás e de seus seguidores. Por outro lado, os orixás desprezavam a prática religiosa daqueles a quem denominavam moslins. Os muçulmanos eram respeitados e temidos, porque uma áurea de mistério os envolvia. O que na verdade era a necessidade de manter em segredo sua religiosidade islâmica, por isso eram austeros e discretíssimos. Contudo, não se isolavam socialmente. Participavam, mulheres e homens de rodas de samba, iam aos bailes, embora nunca tomassem bebidas alcoólicas e nem comiam feijoadas por causa da presença da carne de porco. Um dado interessante, os muçulmanos escolhiam mulheres e maridos dentre estas outras denominações religiosas.

Muitos costumes muçulmanos passaram a fazer parte do culto afro-brasileiro. O uso do turbante por homens e mulheres é um dos mais visíveis. Foi introduzido pelos muçulmanos na África, que desconheciam essa indumentária. Esse costume acabou sendo trazido para o Brasil. O uso da roupa branca e a sexta-feira sagrada (consagrada a Oxalá) foram outros costumes muçulmanos trazidos ao Brasil. Para os muçulmanos, a sexta-feira é um dia para se rezar em congregação, assim como o sábado para os judeus e o domingo para os cristãos. (DO RIO, 1976, p. 23).

Roger Bastide faz uma alusão aos muçulmis (mssurumis, mussurumins, muslins) travestidos de muçulmanos, contudo, não muçulmanos legítimos, pois praticavam, sobretudo as mulheres, rituais pagãos que haviam trazido da África.

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Contudo, Bastide deixa claro que o sincretismo religioso era aceito e, mesmo assimilado por ramos do islamismo, como por exemplo, a feitura de grigris, as pequeninas bolsas de couro contendo versículos do Corão, a oração pela chuva, a crença nos jinns (gênios) e as tabuinhas de escrever, contendo escritos versículos do Corão grafados com giz (ou efum) que lavavam, sendo a água em seguida, bebida pelos fiéis. Essa mesma prática era realizada pelos Babalaôs ao rabiscarem algum caractere em árabe, quando faziam consultas a alguém que precisava. (BASTIDE, 1971, p. 2005).

As indumentárias femininas e masculinas, principalmente, hoje, das mulheres baianas, remetem-nos à herança cultural e também religiosa que vieram das regiões africanas dominadas pelo Islã. Estes povos dominados sofreram um processo de aculturação e assimilação por parte dos muçulmanos dominantes. Estes costumes assimilados, possivelmente, mesclaram-se com aqueles que já faziam parte do capital cultural anterior, sofrendo uma espécie de acomodação. Uma das mais citadas, e ainda válidas, definição de assimilação como sendo um conceito sociológico é aquela de Milton Gordon (1964).

Nos Estados Unidos no início da década de 1960, Gordon distinguiu, dentre outros processos, a assimilação cultural (comportamental) da assimilação estrutural. A assimilação comportamental inclui a aquisição de padrões linguisticos, sociais, rituais e culturais da sociedade hospedeira enquanto permite a manutenção de certo sentido de alteridade. Assimilação estrutural, a grande porta de entrada nos clubes e instituições da sociedade receptora, incluindo, eventualmente, inter casamentos, leva ao desaparecimento final do particularismo (GORDON, 1964, p. 60-83).45

Para Oliveira, a assimilação passa a ser possível quando um grupo deixa seu habitat e vão residir em outra localidade cujos residentes são de outra etnia. Nestes novos habitats se adequam a uma estrutura nova e novos costumes são incorporados. (OLIVEIRA, 1976, p. 111).

A influência islâmica de escravidão que ainda sobrevive, sincreticamente, no figurino das mulheres negras da Bahia e de algumas regiões do Rio de Janeiro é resultado direto desta espécie de assimilação.

As “baianas” atuais, descendentes de africanos, mais precisamente das tribos Ioruba, Nagô, Fula e Haussá, são as que mais se esmeram e capricham nas suas

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indumentárias. Há uma diferença notável entre as mulheres baianas e suas vestimentas. O grupo pertencente ao Candomblé é de estatura baixa e gorda. Estas mulheres se destacam por usar vestimentas de cores vivas e berrantes. As saias são amplas e estampadas. Por outro lado, o grupo que pertence ao das mulheres muçulmanas, cujos ascendentes foram os africanos sudaneses, são de estatura alta e esguia, usam o traje branco imaculado. Pode ser visto, às vezes, no ombro desta mulher descendente de negros muçulmanos sudaneses, um “pano da Costa” de cor preta, originário da Costa da África.

As demais peças que completam seu traje típico e aludem à herança islâmica são: a saia rodada, com muitas anáguas rendadas, engomadas. A bata (blusa de rendas) solta. Pano da Costa46, com um xale sobre o ombro, o turbante, essencialmente, uma peça típica muçulmana. Chinelas ou sapatos de salto baixo e os adereços extras, tais como: pulseiras, brincos de ouro, prata, coral. Algumas, nos dias de festa, usam uma penca de balangandãs47 na cintura: (ANEXO 1 – Figura1).

Segundo Bastide, a vestimenta era outro distintivo islâmico na Bahia, juntamente com amuletos. A ideia islâmica de pureza ritual, (tahara) está intimamente ligada com a cor branca imaculada da indumentária da mulher muçulmana sudanesa, sem a qual não se pode orar ou mesmo tocar o Qur’na (Alcorão). Tanto as mulheres quanto os homens muçulmanos malês usavam vestimentas brancas para os rituais religiosos, denominadas de abada do ioruba agbda, que se trata de um camisolão comprido, habitualmente feito de pano da Costa. Diferentemente de seu uso na África, na Bahia, devido à perseguição das autoridades, os abadás ficaram restritos a ritos religiosos. Eram usados pelos Malês em suas casas para as orações diárias e outros rituais da fé islâmica. Esses ritos religiosos seguiam as normas trazidas do Islã na África. O dia começava por orações pronunciadas sobre uma pele de carneiro. Era a Salat, que na linguagem popular se tornou fazer sala. Cada oração

46 O pano da costa é assim chamado por ter sido um tipo de tecido vindo da costa dos escravos,

Costa Mina, Costa do Ouro.O tecido original foi substituído por outros tipos de tecidos, o que não diminui em nada as funções do pano-da-costa.

O pano-da-costa identifica a mulher feita, mesmo que ela não esteja de roupa de santo completa.A situação do pano-da-costa é de maior importância, se colocarmos a presença da mulher como símbolo do poder sócio religioso e arquétipo dos valores mágicos da fertilidade, isso motivado pelas formas anatômicas características da mulher.

47 Balangandã: diversas peças em um tipo de argola decorada. Cada peça é um amuleto. Seu nome

é uma onomatopéia ao som que os objetos pendurados emitem quando em movimento.

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era precedida de uma ablução em que, tanto as mulheres e homens negros, deixavam suas vestimentas comuns e vestiam o abadá. (BASTIDE, 1985, p. 212).

Lídice Meyer Pinto Ribeiro,48 em seu minuncioso trabalho de pesquisa,

“Islamismo: nem conversão, nem adesão. Reversão!” Trata com informações precisas da questão da presença islâmica no Brasil. Segundo Ribeiro, o Islã foi trazido ao Brasil, com registro oficiais e dados históricos verficáveis, no final do século XVIII pelos escravos originários das regiões africanas já islamizadas. Como abordamos anteriormente, em subtítulo do capítulo um desta pesquisa, o período do califado e a expansão do Islã executada pelos califas, chegou até a África. Não havendo resistência que pudesse deter o avanço maometano, as populações africanas foram aderindo ao novo credo religioso, ou seja, assimilando e sofrendo um processo de aculturação conforme os pressupostos de Oliveira (1976), quando trata do fenômeno observado nos Terenas e outras tribos indígenas brasileiras.

Contudo, o islamismo africano é uma massa amalgamada por uma mistura de cultura árabe trazida pelos governantes do califado e práticas animistas e fetichistas provenientes de culturas tribais indígenas ancestrais. (RIBEIRO, 2013, p. 148-149).

O islamismo de escravidão tem, portanto, seu início com a chegada ao Brasil, principalmente na Bahia, de milhares de prisioneiros advindos de guerras político- religiosas na região do Sudão Central, que hoje equivaleria ao norte da Nigéria. Estes prisioneiros tinham em comum além da pele negra, a crença islamica, apesar de algumas diferenças nas práticas e dogmas. (RIBEIRO, 2013, p. 149).

Originariamente, os muçulmanos no Brasil foram denominados em sua totalidade, ou seja, em seu conjunto, como Muçulmi Malê49 em terras baianas e, Alufá em terras cariocas. Estes, os primeiros a praticar o Islã no Brasil.

Trazidos à força, eram Haussás, os primeiros muçulmanos a chegarem no Brasil. Tendo suas fileiras seguidas por cativos dos reinos Gurma, Borgu, Borno, Nupe e outras etnias de reinos vizinhos dos Haussás, situados no Sudão Central (REIS, 2003, p. 159-163). Segundo Bastide o grupo Haussá50 destacou-se na

48 Doutora em Antropologia Social Pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Pós

Graduação em Ciências da Religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Escola Superior de Teologia desta Universidade

49 Ramos apresenta a origem dos temo Muçulmi Malê com os seguintes significados: Muçulmi como

uma corrupção lingüística de Muçulmano e Malê com o significado de má lei, em outras palavras, aqueles que não pertencem e não seguem a boa lei de Deus. (RAMOS, 1971, p. 129). Minha ênfase. 5150“Haussá – o termo serve, segundo Seligman, para designar a) a língua Haussá; b) o país onde se acha o grupo principal de povos de fala haussá c) todos os povos sudaneses centrais e ocidentais

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introdução e prática do Islã no Brasil, pois seus adeptos constituíram o elemento mais importante do negros islamizados. O islã não chegou ao Brasil em sua forma pura. Sofreu um processo de aculturação-assimilação inicialmente por: negros puros e negros mestiçados com Hamitas51. Antigos animistas islamizados e não

originariamente muçulmanos, portanto, um Islã fetichista. (BASTIDE, 1971, p. 204). Os Haussás foram introduzidos em grande número, principalmente na Bahia. Chegando em número elevado provenientes da região norte da Nigéria. Verificou-se neste grupo o fenômeno “Contra-aculturativo”, manifesto pelas issurreições levadas a cabo por eles, são as denominadas rebeliões Nagôs, historicamente, registradas no início do século XIX, e marcadas por uma seqüência de revoltas denunciando o clima de tensão crescente e o inconformismo com a situação de escravidão. As principais ocorreram nos seguintes meses e anos: maio de 1807; 4 de janeiro de 1809; fevereiro de 1810; fevereiro de 1814; janeiro e fevereiro de 1816; junho e julho de 1822; agosto e dezembro de 1826, abril de 1827; março de 1828; abril de 1830. Culminou com a grande revolução de 1835, fatos que exerceram uma grande influência sobre os outros grupos negros.

As inssurreições não eram somente contra os “brancos”, mas, também contra os negros que se recusassem aderir às suas causas. Neste caso, negros eram tidos como inimigos. O caráter religioso destas inssurreições sobrepujavam o caráter étnico. (RAMOS, 1971, p.139).

que falam o haussá como língua mãe e, conhecidos também sob a designação Haussáuá” (RAMOS, 1971, p. 137). Minha ênfase.

51 Hamitas – Animistas com forte característica islâmica, porém, não puros muçulmanos. Minha

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