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Eline Decacche-Maia João Guerreiro Jorge Caê Rodrigues

A relação entre as ciências exatas/naturais com as sociais/humanas nunca foi harmônica. Desde a constituição da ciência moderna, no século XVII, que a cisão entre as diversas áreas do conhecimento foi se estabelecendo. As ciências exatas/naturais vão se constituindo como saberes legitimados por apresentarem resultados concretos e, por conseguinte, mais diretamente influenciadores da vida da população, sendo consideradas, cada vez mais, como produtora de conhecimento e de ação (JAPIASSU, 1997) e como paradigma de cientificidade.

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O surgimento no século XIX das ciências sociais/

humanas1 dentro do modelo científico que se impunha,

passa a se configurar como área do conhecimento que, inicialmente, se espelhava no modelo das ciências exatas/naturais, a partir de uma perspectiva positivista, que logo será superada com o avanço das discussões no seu interior. Aos poucos vai se dando a compreensão da especificidade dessa área do conhecimento que reivindica uma cientificidade de outra ordem, como pode ser conferido a seguir:

As ciências humanas podem, portanto, empregar procedimentos científicos, sem que isso implique a redução do homem a essa forma de estudo. Existem, obviamente, processos e fenômenos humanos objetiváveis, mas o homem não é inteiramente objetivável. No âmbito das ciências humanas, não há como evitar inteiramente as conotações valorativas, ideológicas, subjetivas; a identidade parcial entre o sujeito e o objeto de estudo por si só já inviabiliza a efetivação do ideal positivista de

1 Segundo Chauí (2000) todas as ciências são humanas, pelo simples fato de serem elaboração do pensamento humano, no entanto as ciências humanas se constituem naquelas que têm o ser humano como objeto de interesse. Esse interesse se expressará com maior força no século XIX.

objetividade. O sociólogo não pode se colocar de fora da sociedade para estudá-la; o mesmo acontece com o historiador em relação à história, com o linguista em relação à língua, e assim por diante. (RODRIGO, 2007, p. 77)

Entretanto, a constituição do campo científico (BOURDIEU, 1994) criará hierarquias de saberes que colocará as ciências ditas exatas/naturais no topo. Por serem consideradas mais objetivas e mais aplicáveis, serão vistas como as que apresentam melhores resultados. Aos poucos, uma dicotomia ganhará formato mais definido e as ciências exatas/naturais serão consideradas pelos pesquisadores desta área do conhecimento como as “ciências duras” e as ciências sociais/humanas vistas como as “ciências moles”. Essas denominações, carregadas de significados eminentemente políticos, estabelecerão uma representação pejorativa das áreas sociais/humanas, cujo sentido pressupõe pouca precisão e, por conseguinte, serão vistas como menos ciência. Por serem pouco precisas, essas ciências foram sendo colocadas sempre como não prioritárias nas políticas públicas relacionadas aos recursos para o desenvolvimento de pesquisas. E isso durará muitas décadas para que, aos poucos essa ideia seja dissipada, ou melhor, discutida.

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É possível perceber na história da constituição do campo científico uma clara tendência etnocêntrica. As ciências exatas/naturais foram incapazes de compreender as ciências sociais/humanas dentro de

sua própria lógica2, atribuindo as mesmas um olhar

que resultou na sua ininteligibilidade e, por isso, foram classificadas como opositoras da forma de seu conhecimento – duro/mole; exata/inexata; objetiva/ subjetiva – e não, simplesmente, vistas como um modo diferente de se conhecer a realidade. Uma forma que impunha flexibilidade, sobretudo no que se refere a ideia de verdade, tão cara às ciências ditas “duras”. Só faltou as ciências denominadas “moles” serem classificadas como pré-lógicas, tal qual o fez Lévy-Bruhl (2008), na virada do século XIX para o XX, ao classificar a mentalidade dos povos primitivas.

Atualmente, podemos dizer que esta discussão ganha novos contornos. Hoje assistimos uma maior aproximação entre as diferentes áreas, em que a troca de conhecimentos e metodologias se colocam como um modo de enriquecimento na forma de ver e interpretar o mundo. Os diferentes saberes são considerados como complementares e auxiliares no entendimento da realidade, em todos os seus sentidos. Apesar disso, as disputas não foram extintas, embora mitigadas, elas ressurgem quando o que está em jogo são aportes

2 Importante frisar que as próprias ciências humanas/ sociais no seu surgimento foram incapazes de ver a sua especificidade, buscando obter status de ciência usando o modelo das ciências exatas/naturais.

financeiros e espaciais, especialmente quando os mesmos são escassos.

O preâmbulo até aqui apresentado pretendeu fornecer um pano de fundo da realidade do que foi encontrado por profissionais que fizeram parte do projeto de implementação do curso de Produção Cultural, em uma instituição cuja tradição remetia a uma área pertencente às ciências exatas/naturais, o CEFET de Química de Nilópolis (CEFETEQ). Diferente do embate entre as ciências exatas/naturais e humanas/sociais, a Produção Cultural encontra-se em situação ainda mais delicada porque nem status de ciência possui.

O acolhimento do curso de Produção Cultural não foi feito sem alguns impasses, mas a sua existência resultou em acréscimo à riqueza de uma realidade que tendia a ser “padronizada”. O curso trouxe para a realidade do Campus disciplinas como Sociologia, Antropologia, História da Arte, Divulgação Científica, Ciência e Arte, dentre tantas outras, que acabaram se constituindo em opções também estendidas a todos os cursos existentes no Campus Nilópolis do hoje Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ, antigo CEFETEQ). Apesar de ser ainda pouca a adesão, muito porque os cursos de licenciatura de Física, Química e Matemática são ofertados a noite e o de Produção Cultural durante o dia, temos assistido alunos dos cursos dessas licenciaturas se inscrevendo em disciplinas como Divulgação Científica e Ciência e Arte etc. Essa possibilidade só vem a se constituir em uma excelente oportunidade de diálogo entre diversos saberes. No entanto, para que fosse possível obtermos

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o cenário atual, um processo de 14 anos foi vivido buscando dirimir as dificuldades enfrentadas.

Apesar de não se tratar de uma ciência no molde tradicional aqui apresentado, se constituindo em um curso voltado para a prática profissional na área da cultura, a Produção Cultural desenvolve a construção de saberes se apoiando em metodologias inspiradas nas ciências humanas. Por esse motivo, essas ciências são fundamentais para a formação de um profissional mais preparado para perceber tendências e caminhos a seguir.

São atributos do Produtor Cultural:

► formatar projetos para leis de incentivo, editais públicos e programas privados; ► implementar projetos de produção de espetáculos artísticos e culturais (teatro, dança, ópera, exposições e outros), audiovisuais (cinema, vídeo, televisão, rádio e produção musical) e multimídia; ► organizar e operacionalizar eventos e projetos de entretenimento; ► trabalhar em atividades culturais, recreativas, desportivas, em empresas públicas ou privadas, como empregados ou prestadores de serviços; ► organizar atividades de cultura como recurso em programas, projetos e ações de

responsabilidade socioambiental, educação, saúde, esporte, promoção da cidadania, direitos humanos e bem estar; organizar, programar, administrar e gerir equipamentos culturais/pontos de cultura; ► realizar atividades intermediárias nas diferentes fases da cadeia produtiva da cultura (produção, distribuição, comercialização e consumo de bens e serviços culturais); ► projetar, captar recursos, executar e fazer pós-produção de projetos e eventos; ► organizar e fazer gestão de carreiras artísticas (também conhecidas como carreiras criativas), indústrias criativas e pesquisas nos campos da economia da cultura e de políticas públicas de cultura, entre outras funções. (GUERREIRO, NUNES e MACIEL, 2014, p. 6)

Em meio à aprendizagem do “como fazer” das práticas acima mencionadas, a criatividade/intuição passam a ser elementos importantes, da mesma maneira que o são para a pesquisa científica.

A tão propalada interdicisplinaridade, colocada como ponte para diálogos entre as diferentes áreas do conhecimento e, quem sabe, para a destruição das

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rígidas fronteiras disciplinares, só vem a ganhar com a inclusão do curso de Produção Cultural em um ambiente que até então só contava com as ciências exatas/ naturais. A vida do Campus Nilópolis ficou mais rica com a cultura adentrando os seus espaços, seja como área de conhecimento, seja como expressão que surge nas diversas produções culturais que os estudantes do curso realizam à guisa de construir sua formação. O Campus com certeza pulsa mais forte, mas nem sempre foi assim.