• Nenhum resultado encontrado

“Um bolo não se faz sem receita”: a importância de compartilhar experiências do fazer pedagógico

Cena 2 Olimpíadas de História em Arraial do Cabo

“Escola, lugar de História” foi o tema da 8ª edição da Olimpíada Nacional de História do Brasil, organizada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2016. Lugar de nosso cotidiano. Tema que dialoga

com as reflexões pensadas neste artigo e, por isso, narrativa sobre uma prática de ensino experimentada em equipe.

Foi a primeira vez que o IFRJ, campus Arraial do Cabo, inscreveu uma equipe, motivada por uma iniciativa pessoal. Sou a única professora de História do campus e mesmo que desejasse convidar outr@ profess@r da área de Ciências Humanas entre as regras da Olimpíada outr@s professor@s só podem participar se estiveram deslocados lecionando a disciplina de História, como acontece em algumas escolas do estado. Fui até a Direção de Ensino e a Direção Geral da escola que se mostraram interessadas na ideia, mas não consegui verba para pagar a inscrição porque as rubricas em Instituições públicas são lentas e destinadas. Optei por pagar de meu bolso o valor, que era módico para escola pública (R$45,00 reais), afinal, se eu esperasse iria perder o prazo de inscrição.

Imprimi cartazes do evento, coloquei nos murais, passei nas salas das turmas do curso técnico em informática e do curso técnico em montagem e suporte em informática, na modalidade EJA. Poucas perguntas foram feitas quando eu anunciava na sala, logo achei que a procura seria baixíssima. São afinidades eletivas e sei que alguns alun@s realmente gostam da área. Uma lista de inscrição foi colocada na secretaria da escola, por uma semana. No segundo dia já fui perguntar se alguém havia se inscrito! Frustrada recebo a notícia que somente um@ alun@ havia se candidatado. Aguardei o prazo estipulado de uma semana e para minha surpresa

167

O LUGAR DAS CIÊNCIAS HUMANAS EM UM INSTITUTO FEDERAL

17 estudantes se mostraram interessados, afinal a equipe só poderia ter três integrantes, que deveriam estar disponíveis em dois dias de contra turno sem nenhum auxílio.

Coletivamente decidimos qual seria a forma de seleção para entrar equipe: minha proposta era uma entrevista e os estudantes foram unânimes em apontar uma prova como a melhor forma de escolha. Naquele momento me questionei como a escola formata. @s alun@s tão queixos@s do excesso e rigidez de avaliações reproduzem o modelo mesmo em outros espaços. Questionei como seria o processo da Olimpíada, experiência nova para mim enquanto docente, estaria estimulando a competitividade? Depois de uma conversa optamos por duas etapas, entrevista e prova para que pudessem se expressar oralmente e por escrito, afinal haviam alun@s inscritos que ainda não haviam estudado

História em sua matriz.8

Selecionadas as três integrantes do curso técnico em informática Natasha Fernandes (INF 141), Glória Duarte (INF 151) e Paola Lana (INF 151) começamos a pensar o nome da equipe. Pedi que cada uma indicasse dois nomes e imagens que fossem significativas e que pudessem representar a equipe. Elas estavam tão comprometidas que me surpreendi! Eu esperava nomes derivados de IFRJ Arraial, mas foi um engano. Elas fizeram uma busca e elencaram nomes ligados a cultura indígena

8 Devido ao currículo integrado, e a necessidade de fazer adaptações na matriz curricular, a disciplina de História pode ser dada em períodos diferenciados nos diferentes cursos.

e afro-brasileira para, segundo elas, dar visibilidade a essa parte da história ainda tão pouco representada. Em relação a imagem uma delas faria um desenho a partir do nome que o sistema aceitasse (não poderia ter nomes de equipes repetidas no concurso). Depois de ver o comprometimento já na primeira reunião fui contagiada por elas. São práticas cotidianas como essa que realmente dão significado o meu ofício.

A Olimpíada é composta por cinco fases eliminatórias

online e uma final em que as equipes fazem as provas de

maneira presencial em Campinas. A cada etapa a prova era divulgada na segunda-feira e a equipe poderia enviar as suas respostas até a sexta-feira da mesma semana. Ao iniciar com 10 questões de múltipla escolha e uma tarefa as avaliações iam ficando um pouco mais complexas, com mais perguntas conforme as etapas avançavam. Como mencionamos a Escola era um eixo de reflexão: a ocupação das escolas, a escola de samba e seus enredos ou o uso de um boletim escolar alinhavam o tema geral com algumas perguntas. Questões contemporâneas eram apresentadas aos alunos para pensar os usos do passado, uma questão causou particular impacto na equipe, pois comparava a repercussão da morte de dois meninos em 2015, um branco e um indígena. A comoção internacional em torno da morte do menino sírio afogado após o naufrágio de uma embarcação de refugiados, apresentada através de uma foto, e a invisibilidade da morte de um bebê indígena assassinado em Santa Catarina, que sequer saiu nas fotos dos jornais, problematizava como os índios são alegoria

169

O LUGAR DAS CIÊNCIAS HUMANAS EM UM INSTITUTO FEDERAL

do passado. A discussão trouxe para equipe uma reflexão importante de como no presente os indígenas são invisíveis e incomodam por ocuparem terras ricas. São empecilhos ao “progresso”, questionados sobre sua autenticidade e só tem lugar na memória, como uma gravura de livro. Todos lamentaram a morte a do menino sírio, mas quem chorou pelo curumim? Como sugere o título: 1500 é o ano que não terminou.

Enfrentamos alguns problemas estruturais, como a falta de laboratório adequado e tínhamos que pular de sala em sala no contra turno. A internet da escola que caía e a necessidade de marcar outro encontro na semana, porque a prova tinha que ser enviada até sexta. Só poderíamos fazer um login para responder a prova e, como a imagem do data show as vezes perdia a qualidade na hora de ampliar os documentos, dividir um computador para três era terrível. Mais uma vez questionamos a falta de espaço para um laboratório de humanidades que ainda não está pronto no campus.

O diferencial da Olimpíada é a possibilidade dos estudantes se sentirem verdadeir@s historiador@s. Toda a prova era pautada sobre a análise de documentos, sempre eram disponibilizados textos obrigatórios para responder e links extras para contribuir, que variavam entre músicas, imagens, documentários, artigos científicos entre outros. Uma característica interessante era o fato de haver, assim como na pesquisa historiográfica, mais de uma resposta/versão correta com pontuações diferentes. Enquanto professora, era difícil orientar sem interferir nas respostas, a equipe

discutia muito sobre as fontes e conjecturava sobre as ausências, dilemas da tarefa historiográfica. A quantidade de informação dos documentos nem sempre ajudava, muitas vezes os longos textos cansavam e geravam dúvidas.

A equipe foi fundamental para discutir as análises das questões. Aprender a ouvir, buscar consenso, ajudar em vez de competir foi um aprendizado sobre como fazer uma avaliação de uma perspectiva diferente. A tolerância de argumentar, e compreender o outro, é um exercício da inteligência, significado do nome de nossa equipe: Nambiquara.

Infelizmente fomos eliminadas e não chegamos na terceira fase, mas a experiência foi tão exitosa que este ano alguns alunos já me perguntaram se haverá uma nova equipe. Senti falta de ter outr@ profess@r para trocar, mais de uma equipe para orientar (cada professor só pode orientar uma). Pergunto-me se não poderia ter dividido de outras formas sobre esta prova que foi singular. Em tempo, compartilho esta narrativa em que a Olimpíada, lugar da competitividade, cedeu espaço a uma prática de ensino colaborativa e muito prazerosa.

Cena 3 – Pesquisa de jovens para jovens

Lembro-me até hoje do dia em que contei a minha mãe que faria vestibular para História, pois queria ser professora. Ela, professora alfabetizadora, ou ainda normalista como eram chamadas, não escondeu a tristeza e disse “tão inteligente, porque não faz outra

171

O LUGAR DAS CIÊNCIAS HUMANAS EM UM INSTITUTO FEDERAL

coisa, vai trabalhar muito e ganhar mal”. Confesso que eu esperava um sorriso ou incentivo neste momento, mas consegui compreender sua preocupação materna e como aconchego para minha escolha, apeguei- me nas lembranças de quando ela me deixava rodar seu mimeografo para preparar os exercícios de suas turmas, ou mesmo quando eu folheava seus cadernos de planejamento sempre tão coloridos e caprichados que me inspiravam nas brincadeiras de escolhinha.

Pois bem, fui fazer História para ser professora, essa era uma certeza que sempre tive, e atenta as observações de minha mãe, desde as primeiras semanas faculdade engajei-me nas lutas pela educação pública e de qualidade. Em minha atuação docente a busca pela superação das desigualdades sempre foi uma marca bastante característica e por isso, neste artigo resolvi compartilhar uma cena bastante desafiadora de meu ofício como professora da Educação de Jovens e Adultos no IFRJ.

Sou professora do IFRJ desde 2007 quando ainda era substituta, tendo sido aprovada no concurso público e efetivada em 2008, nessa época estava no mestrado em História Política na UERJ e tinha me formado há apenas 2 anos, nesse contexto assumi diversas turmas no Campus Rio de Janeiro onde sou professora até hoje. Eram alunos dos mais diferentes cursos técnicos: Farmácia, Biotecnologia, Química, Meio Ambiente, Alimentos e Manutenção e Suporte em informática, este último oferecido na modalidade EJA- Educação de Jovens e Adultos.

Como dar aulas para alun@s da mesma idade que eu, ou na maioria dos casos mais velh@s? Que Ensino de História faz sentido para esses jovens e adult@s em sua maioria trabalhador@s. Confesso que a EJA sempre foi meu maior desafio pedagógico. Enquanto as turmas do diurno quase sempre demandavam informações e conteúdos, o noturno exigia sentido, didática criativa, atenção para tratar a polêmica de forma histórica sem ficar no senso comum.

E é sobre esse meu inquietante desafio que quero falar aqui. No segundo semestre de 2016 assumi duas turmas da EJA, uma com 4 alun@s e outra com apenas uma aluna. Nas páginas deste artigo não poderei esmiuçar as múltiplas causas deste esvaziamento fruto de uma baixa procura oriunda de fatores complexos e uma evasão, a meu ver, pouco analisada e combatida institucionalmente.

Resistindo bravamente, a EJA no Campus Rio de Janeiro do IFRJ seguiu o semestre e nela eu estava lecionando História para duas turmas. Marcadas pelos atrasos e cansaços característicos de alun@s- trabalhador@s tais turmas tiveram seu semestre interrompido por uma greve de quase 2 meses. A luta contra a Projeto de Emenda Constitucional que previa o congelamento de recursos para Saúde e Educação (PEC 241 e posterior PEC 55) fazia urgente e necessária a mobilização de toda a comunidade escolar.

Enquanto professora e defensora da educação pública de qualidade somei meus esforços a essa luta, ainda que tivesse avaliações distintas sobre o momento

173

O LUGAR DAS CIÊNCIAS HUMANAS EM UM INSTITUTO FEDERAL

ou ainda o recurso do instrumento de greve. Não havia outra escolha senão lutar conta a PEC, mas e os alunos da EJA?

Apesar de um intenso calendário de mobilizações que garantiram atividades noturnas para o público da Educação de Jovens e Adultos do IFRJ Campus Rio de Janeiro, o que percebi em minhas turmas foi mais desânimo e esvaziamento. Ao retornar da greve, infelizmente a notícia era a PEC aprovada, o congelamento de 20 anos para setores como saúde e educação e a reposição do calendário com aulas em janeiro, durante o escaldante verão carioca.

Somado a tudo isto, a evasão de mais um aluno. A turma de 4 alunos agora tinham apenas 3. Novamente me vi procurando sentidos, para eles e para mim, algo que desse razão aos nossos encontros. E foi então que num lampejo propus uma ida ao teatro.

Pelos acasos do destino, descobri que a peça “Pão e

Pedra9” que aborda a temática na greve operária no ABC

paulista em 1979 teria uma apresentação especial em uma segunda-feira de fevereiro. O dia de minhas aulas de História nas turmas da EJA, assim seria mais fácil conseguir a participação de tod@s.

Prontamente mandei um email ao Centro Cultural Banco do Brasil pedindo a doação de ingressos por se tratar de alun@s de uma escola pública. Não sabia se conseguiria, mas tinha que tentar, pois para estes

9 Informações sobre a peça: http://www.companhiadolatao. com.br/site/o-pao-e-a-pedra/

alun@s a questão financeira é crucial. Horas depois a resposta chegava em meu email, consegui os ingressos, os passos seguintes foram combinar com a turma, convidar duas outras professoras, pedir liberação de outr@s professor@s que lecionavam no mesmo dia nessas turmas e assim seguimos para nossa ida ao teatro.

Com as reposições e feriados o semestre estava curto, eu ainda tinha que aplicar avaliações e a bem da verdade a temática histórica da peça já tinha sido tralhada na turma de uma aluna e não constava na ementa na turma com 3 alunos. O que fazer? Seguir a ementa e ignorar a ausência de desejo e empatia d@s alun@s? Que avaliações eram possíveis nesse contexto? Lembrei-me da máxima de que “a História estuda as ações dos Homens ao longo do Tempo” e assim, assumi a ida ao teatro como avaliação final e a partir de uma produção textual sobre a experiência de ter assistido a peça Pão e Pedra conheci ainda mais meus alun@s. Nenhum@ del@s tinha entrado antes no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) apesar de já ter passado em frente, ir ao teatro é algo bem raro em seus cotidianos, quase tod@s relataram só ter ido na infância.

A peça, ao falar da luta de uma operária que se passa por homem para tentar ter um salário melhor e assim conseguir tirar seu filho de um orfanato é o fio condutor para compreender a importância das lutas de combate as desigualdades, mas ao mesmo tempo compreender as urgências e limites de cada um.

175

O LUGAR DAS CIÊNCIAS HUMANAS EM UM INSTITUTO FEDERAL

Entremeando textos bíblicos, cenas engraçadas e outras tocantes o espetáculo prendeu a atenção dess@s alun@s trabalhador@s por quase 3 horas, muito além do que eu jamais conseguiria. Eram os seus, os nossos cotidianos postos ali, no palco, para que pudéssemos observá-los com um distanciamento que nos permitisse compreender e sentir.

As avaliações dos alun@s narravam o prazer em assistir a peça e afirmam que isso deve ser repetido, eu como docente, também cansada dos desmandos e descasos dos governos tomo esta experiência como energizante, como um momento de encontro de forças e de lutas pois assistir essa peça lado a lado com @s alun@s foi assistir nossa luta história de forma conjunta.