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3.3. A presença da confraria da Fundação Ruben Berta

3.3.2. O magistrado de Ruben Berta e dos Pilotos

A chave da grande confusão de poderes encontrada entre os diretores da empresa foi estabelecida na forma de gestão da Fundação142 e, conseqüentemente, refletida na gestão da empresa Varig. Para fins da tese, importa antes de tudo salientar a antiguidade da concentração de poder nas mãos de um determinado grupo e a forma como ele se perpetua. A manutenção do poder se deve ao modo como se escolhe os participantes do Colégio Deliberante. Ele é o órgão decisório de maior instância dentro da empresa. A idéia para a participação como membro do colegiado foi baseada na antiguidade do funcionário. Segundo justificativa produzida por Ruben Berta, os homens mais antigos, investiram tempo e trabalho na obra e por isso deveriam ter mais condições de influir na organização. A quantidade de votos se configurou como proporcional aos anos de permanência do funcionário.

Porém, mesmo quando o empregado candidato ao cargo de conselheiro possuía tempo de casa suficiente para fazer parte do Colégio Deliberante, ainda assim, precisava passar pelo crivo de Ruben Berta. Cabe ao presidente da empresa dar a palavra final sobre o mérito e a capacidade de participação do candidato. Tão necessários para a efetiva ocupação do cargo, segundo Ruben Berta, quanto os anos dedicados ao trabalho para o crescimento da Varig. Uma vez eleito para o colegiado, a permanência é vitalícia. O membro do colegiado só sai por morte, invalidez ou quando se desliga da empresa. Ou seja, quanto mais tempo permanece empregado mais tem o poder de influenciar as decisões. A atuação do colegiado da Fundação Ruben Berta, na maioria das vezes, passou por cima de decisões Sindicais ou de Órgãos de Classe, sem com isso, ver abalada sua representatividade e fidedignidade entre os funcionários.

No âmbito da concentração de poder, resumidamente, Gonçalves (1987) esclarece:

“Na prática, isso significa o seguinte: uns 20 ou 30 comandantes, com 30 anos de aviação, tem direito a uns 900 votos. Há, então a tendência de concentração em um grupo, que é sempre o mesmo. E, se há 20 anos ou 30 anos atrás, entrar no Colégio Deliberante era um

142 Para maiores detalhes sobre o tema consultar a dissertação de mestrado de Gonçalves, Jussara (1987),

intitulada Ruben Berta: a experiência de socialização através de uma fundação de funcionários. IFCH/PUC: Porto Alegre.

processo relativamente fácil, hoje em dia é bem mais difícil, especialmente quando se observa que esse Colégio não cresce acima de uns 500 representantes”.

(Gonçalves, 1987: 89, 90)

Outro aspecto a ser pontuado é a direta influência do Presidente na escolha dos nomes para a sua sucessão. Trata-se de um ciclo virtuoso, visto que para ser Diretor é preciso passar pelo crivo do Presidente e para ser Presidente é preciso ter sido antes Diretor. Sendo assim, a escolha pessoal será sempre a referência para o processo de participação nessaconfraria e não apenas o aspecto antiguidade. Não é de se estranhar à permanência vitalícia da maioria dos presidentes que passaram pela empresa.

A tendência em todos os níveis da organização era manter o poder estável o maior tempo possível, assim como, a Varig mantinha a estabilidade no emprego entre funcionários de menor a maior destaque na empresa. Esta forma de gestão infiltrava todos os níveis da organização. O bordão “antiguidade é posto” era sempre evocado como verdade incondicional para justificar qualquer decisão que beneficiava um funcionário mais antigo em detrimento do mérito do mais novo. A antiguidade, portanto, era um forte e praticamente exclusivo critério para sucessão de supervisores e gerentes. Com isso, as indicações pessoais associadas ao tempo de casa se mesclavam constantemente. A palavra final sobre o indicado para uma dada chefia, era dada pelo funcionário, na maioria dos casos, que logo seria aposentado por processo natural, e ocupava o cargo antes de ver chegar sua aposentadoria. Esta dinâmica era alimentada, portanto, pela manutenção em cargos de confiança de pessoas com mais tempo de casa, consideradas, na maioria das vezes, mais leais à empresa.

As conseqüências dessas decisões, por vezes, eram desastrosas. Os erros podiam ser percebidos quando pessoas sem a menor capacidade de liderar uma equipe e/ou sem suficiente capacidade técnica e cognitiva, eram escolhidas apenas porque tinham a confiança pessoal do antigo encarregado. E a depender da fragilidade emocional do supervisor ou gerente, a eleição do seu homem ou mulher de confiança nem sempre caia sobre o funcionário mais habilidoso ou o mais capaz, mas sim naquele que não ameaçava sua liderança ou mesmo em figuras conhecidas como “puxa-saco”, “baba-ovo”, entre outras designações igualmente pejorativas. Um exemplo recente pode ser dado. A empresa fez demissões em massa e apesar da exclusão de certos funcionários não ser um processo fácil, foi possível observar a permanência de profissionais de notória inferioridade para o trato com passageiros e na condução e eventual resolução de problemas em horário de trabalho. Profissionais conhecidos como aqueles que sabem fazer apenas o “café com leite” (categoria nativa), ou seja, o suficiente. Em algumas

cidades da pesquisa, profissionais identificados como trapalhões e que chegam a inspirar falta de confiança de seus parceiros, permaneceram empregados em detrimento de outros com maior competência técnica e por vezes com salários inferiores aqueles que ficaram. A lógica seguida pela empresa parece ter se mantido, ou seja, a tradição de avaliar as categorias culturais de desempenho e mérito do funcionário, relacionando-as aos valores voltados para senioridade, lealdade, dedicação e relações pessoais em detrimento do desempenho, eficiência e produtividade. Para ser mais explícito cabe uma analogia, Fulano que é amigo de fulano, amante de ciclano e que está mais perto do Rei, fica, independente de ser mais útil ou não ao serviço de atendimento propriamente dito. Esta prática social sempre foi legitimada na empresa Varig e é de certa forma incrível sua perpetuação até julho de 2006.

É preciso, no entanto, relativizar o espanto de muitos dos funcionários demitidos e que naturalmente se sentiram discriminados pela escolha feita. Barbosa (1996b), ao longo do texto sobre meritocracia no Brasil, mostra que apuração do merecimento, na teoria e na prática, é um grande criador de conflitos no interior das empresas e, portanto, não é uma tarefa fácil. Sendo assim sugere que a postura não meritocrática das empresas no Brasil não deve ser visto como mais um fracasso da sociedade brasileira, “mas como uma leitura específica de um determinado conjunto de valores que engendra uma dinâmica social que coloca em confronto uma prática não meritocrática e uma representação social da realidade que privilegia princípios de uma sociedade moderna e igualitária.” (1996b:05).

Retornando um pouco mais no tempo, na década de 1980 e 1990 este tipo de eleição foi agravando as relações internas na empresa na medida em que crescia o número de universitários em busca de trabalho com carga horária de 6 horas (aeroportos). Eles tornavam- se subordinados de pessoas com capacidade nitidamente inferior a deles, sobretudo, nos quesitos: novas aprendizagens (computação, renovação no atendimento no setor aéreo, nos equipamentos, entre outros) e resolução de problemas. A desmotivação era grande ao pressentirem que não iriam ultrapassar por mérito a dinâmica da antiguidade e da indicação pessoal, porém o bom salário, na maioria das vezes, maior do que o que se conseguiria mesmo após a formatura e a relativa estabilidade no emprego, mantinha o grupo de insatisfeitos no batente.

Pode-se afirmar que a organização repetia em todos os níveis de poder a tradição de não aceitar idéias contrárias às da direção da empresa. Outro aspecto mantido desde o período da administração de influência alemã: o rígido respeito à hierarquia. Mesmo o funcionário lesado, por julgamento errôneo ou por perseguição, em algum processo particular de conflito

ocorrido em seu setor, dificilmente conseguia enviar para um superior acima do seu encarregado, seu descontentamento com a decisão considerada por ele injusta. A diretoria da empresa apoiava incondicionalmente as medidas tomadas por seus gerentes e supervisores e, dificilmente, recebia um subordinado sem a anuência de seu supervisor direto.

A Varig se define por desenvolver uma ideologia racionalista, humanista, progressista, cientista e, por vezes, socialista. Esse é o caráter que a empresa mantém por muito tempo, provavelmente inspirado na forma de ser de Ruben Berta, muitas vezes acusado de ter ambição pelo poder, ambição pelo monopólio, com temperamento autoritário e até ditatorial. Ruben Berta em sua trajetória de quase 40 anos na empresa buscou concentrar sobre si a imagem da filantropia, da fraternidade e do ingênuo progressismo humanitário.

Ao tentar responder sobre qual o fogo que deverá guiar os discípulos de Ruben Berta após sua morte, o jornalista Assis Chateaubriand143, em reportagem intitulada“A Herança do Lidador”, no dia seguinte ao velório, não tem dúvida em afirmar: “ele havia plantado (na Varig) uma semente de autoridade e disciplina que era difícil fazer secar” (De homens e ideais, 1996:12). Sobre os funcionários da empresa o jornalista complementa: “Tomem a eleição da gente que constitui o colégio eleitoral da Varig. Parece que foi um pleito na Suíça ou então na Nova Inglaterra. Tal a tempera dos discípulos que trabalharam trinta anos debaixo do seu comando” (De homens e ideais, 1996:12). Em entrevista para a Revista Visão, Ruben Berta, confirma a permanente autoridade e disciplina exigida aos seus subordinados: “nós discutimos e até podemos discordar. Mas, quando se toma uma decisão, todos têm que cumpri-la rigorosamente” (Revista Visão, 26 de julho de 1957, p.19). E não deixa de impressionar a disciplina até hoje citada por todos nas entrevistas, sempre acompanhada da justificativa em torno da segurança do vôo. O relato mais contundente desse investimento foi revelado por uma antiga comissária e, posteriormente, responsável pelo treinamento de gerações e gerações de comissárias, transcrito a seguir:

“Eu não era rigorosa: era uma fera, prussiana mesmo (...). Afinal, fui trabalhar em uma empresa que lida com a segurança dos passageiros, onde tem que haver disciplina (...) Eu precisava mostrar aos jovens como proceder e não podia fazer isso passando a mão na cabeça deles. Na aviação, ordem dada é ordem cumprida.”

(Alice Klauss, Informativo Aerus, n.39, p.4-5, jan./mar. 1991)

143 Em reportagem após a morte de Ruben Berta, veiculada na edição comemorativa dos cinqüenta anos da

A empresa Varig, portanto, apesar das ambigüidades vividas pelos parceiros, aliados e políticas que influenciavam cada rumo tomado, estabeleceu, através da Fundação um eixo organizador de lealdade e disciplina, diferenciado das demais empresas nacionais e ainda presente até sua venda em julho de 2006. Assim, o elevado ideal, a honestidade e a rija disciplina da VARIG, pequena empresa, ainda restrita a rotas do sul do país, formou ao longo da sua história um grupo de funcionários invejados pela sua disciplina e eficiência.

3.4 – PATRIMÔNIO E NOVOS OBJETOS: A VARIG COMO ESTANDARTE