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2.2. A aviação heróica: Entre a conquista, o prestígio e o poder

2.2.2. Valores intangíveis das infra-estruturas terrestres

A inserção de aeroportos nas cidades é outro aspecto capital na construção de significados sociais dados para esta profissão. Que governo no mundo não associa a construção ou melhoramento desses “não-lugares” à imagem de desenvolvimento e progresso de sua cidade? De tal maneira, financiamentos em parceria com governo federal, estadual e municipal, ainda são amplamente utilizados como propaganda salientando a imagem de um governo preocupado com as questões do desenvolvimento e melhor qualidade de vida para o

seu país53. Diferente das infra-estruturas imateriais das rotas aéreas, a escolha do local de construção de um aeroporto coloca em jogo o resultado de um debate que, cada vez mais, diz respeito a decisões políticas e interesses obscuros de elites políticas e econômicas, e não somente as opiniões de especialistas e técnicos. Diversos pareceres técnicos, até mesmo meteorológicos sobre o local das obras e estabelecimento de suas pistas e prédios administrativos, são aparentemente desconsiderados, suscitando críticas e controvérsias, como, particularmente no âmbito nacional, a construção dos aeroportos de Guarulhos54 (São Paulo) e de Confins55(Belo Horizonte).

Considerando-se que o poder e autoridade políticos em qualquer sociedade humana se caracteriza, entre outros fatores, pela apropriação do espaço e a sujeição de pessoas ou grupos de pessoas, e analisando particularmente a atividade aérea, verifica-se que a sua organização engloba concretamente o domínio de um espaço – o aéreo –, que de certa forma comprime e une o espaço terrestre. As compressões do mundo são concretamente realizadas por diversas travessias consideradas de teor altamente heróico. Como, por exemplo, o vôo inédito realizado pelo tenente americano Charles Lindbergh, que viria interligar as cidades de Nova Iorque e Paris, em um monomotor de construção exclusivamente americana. No ano de 1927, ele cruzou sozinho o Atlântico e sem escalas, o vôo durou 33 horas e foi, evidentemente, notícia em jornais americanos e europeus. Entrou para a história da aviação heróica e acompanhando o prestígio alcançado, no mesmo ano, Charles Lindbergh, assumiu o cargo de conselheiro técnico da Pan American, primeira empresa da aviação comercial americana. Ao mesmo tempo a sujeição de pessoas pode ser percebida a partir do conhecimento que

53Ostatus dos aeroportos é freqüentemente complexo. Segundo cada país, podem ser públicos ou privados. Em

numerosas Nações, como no Japão, por exemplo, o Estado é o proprietário dos aeroportos. Na Inglaterra, pode ser do Estado, de uma coletividade territorial ou uma sociedade privada, como no caso da British Airport

Authority, privatizada em 1986. Nos Estados Unidos, estes são estabelecimentos públicos autônomos, porém

podem conceder uma parte das instalações às companhias de aviação. Na França, os Aéroports de Paris e o aeroporto franco-suíço deBâle-Mulhouse são estabelecimentos públicos. A maior parte dos aeroportos (em torno de 60) pertence ao Estado, mas são geridos pelas câmaras do comércio e da indústria. No Brasil, é a empresa pública Infraero (Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária), portanto, personalidade jurídica de direito privado, quem cuida da administração dos aeroportos. A empresa também coexiste a partir de uma complexidade de influências que regem seu funcionamento. É diretamente ligada ao Ministério da Defesa porém, em 23 de Agosto de 2005, recebeu a notícia de que foram liberados recursos do Ministério do Planejamento, no valor de R$ 350 milhões para administração dos aeroportos. O Ministério do Turismo, também é outra entidade interessada nesses recursos e acompanha de perto a utilização dos mesmos. Todos estes mandatários constituem uma engrenagem bastante complicada em termos políticos. Cada interesse particular deve ser devidamente atendido para a orquestra dos vôos realizados em território nacional não desafinar.

54 A pista do aeroporto de Guarulhos teve parecer negativo dos analistas sobre os fenômenos metereológicos

inoportunos para a prática da aviação na região.

55 Construído sob o regime da ditadura militar, o aeroporto fica em Lagoa Santa, uma região de grande

importância arqueológica. Foi inaugurado em 1984, permaneceu subutilizado, praticamente um deserto por mais de duas décadas. A grande distância da cidade de Belo Horizonte não beneficia sua operacionalização até os dias de hoje. Muitos equipamentos técnicos, inclusive de custo mais elevado, como os “fingers” quebram e exigem manutenção constante por falta de uso (sic).

manipula, desde uma perspectiva micro, individual, (como se constata em diversos fragmentos de relatos colhidos nas entrevistas), até macro, coletiva, ou seja, incidindo sobre uma região ou país como, por exemplo, em tempos de guerra.

A presença de status e privilégios, muitas vezes, reclamados pelos profissionais do setor relaciona-se tanto com o reconhecimento do público exterior, quanto com o núcleo de habilidades técnicas e cognitivas alcançadas. Assim, a experiência, com o trabalho e o próprio “interesse” pelo trabalho guarda estreita relação com ganhos simbólicos relacionados ao estatuto profissional. Nas palavras de uma funcionária do aeroporto sobre o desconhecimento da ciência aeronáutica entre os usuários de empresas aéreas, afirma:

“O pessoal não sabe, só quem mexe com a aviação sabe o porquê que o troço voa, se você parar para pensar um avião de cem toneladas – (sorri) – sair voando que nem passarinho, então para o passageiro, né, para a cabeça dele, ‘Ah! Pôxa, esse troço cai!’ Ou então, o pessoal pensa, não gente, lugar de ferro é no chão. Tem alguma coisa errada, né?”

(Carl, despachante de trafego, 47 anos, 25 anos de empresa).

A organização da atividade de voar, apesar de todas as transformações técnicas que vem sofrendo o métier, ainda se apresenta como uma incompreensível conquista da humanidade. Mesmo se considerarmos a distância entre o alto prestígio alcançado por figuras mitificadas neste universo como, Santos Dumont (1906) e seu 14bis, Louis Bériot (1909) e a travessia do canal da Mancha, Roland Garros (1913) e a travessia do Mediterrâneo, Charles Lindbergh (1927) e a travessia do Atlântico, incluindo a fase heróica do transporte de malas postais56; a profissão de aeronautas e aeroviários ainda provoca naqueles que não fazem parte desse universo, curiosidade e por vezes admiração pelo conhecimento que monopolizam. Um considerável prestígio associado ao estatuto profissional gira em torno de homens e mulheres que controlam o espaço aeronáutico.

“Porque eu acho que o que impressiona as pessoas quando você se depara com o aviador é a falta de conhecimento. A pessoa não entende como é que voa, como é que consegue voar, né? Então a ignorância no assunto que faz com que a pessoa se impressione, né? Acha que você é uma pessoa anormal, né? Ou então superior, né. Alguma coisa assim. É o desconhecido que faz isso. (...) E você acaba dominando esse desconhecido. (...) Particularmente no trabalho o que me realiza é me sentir capaz de fazer”.

(Jaílton, comandante, 35 anos, 5 anos de empresa).

Há uma forte consciência compartilhada entre esses profissionais de que a aviação comercial deve ser considerada como uma atividade essencial, útil à vida. Além de concretamente agilizar a locomoção de pessoas e mercadorias com eficácia, ao mesmo tempo, contribui para o crescimento de todos os outros setores do país, até mesmo por ainda ser incluído, oficialmente, como segmento estratégico para o Estado. Em tese, a execução dos transportes aéreos é um serviço público de responsabilidade da União, a qual transfere a outros, através de concessão pública, o direito de executarem em seu lugar. Para o Governo cabe o compromisso de fiscalizar, fixar tarifas e fornecer infra-estrutura aeroportuária ao setor.

Certos autores, voltados para os estudos sobre a história das técnicas, convidam-nos a pensar a maneira como certos objetos técnicos possuem, intrinsecamente associada ao seu uso, uma política, assim como a política de um Estado também deve ser considerada em função de seus objetos técnicos57. Os artigos de Latour (1987), Carlson (2001) e Winner (2002) se inserem no seio da discussão no qual os objetos técnicos influenciam a política58 e, ao mesmo tempo, não cessam de reorganizar os grupos sociais, mais largamente a sociedade. Mostram que as chamadas técnicas do poder podem, principalmente, ser consideradas como uma forma de política para as classes privilegiadas59.

No Brasil, a análise das diversas formas de interação humana que criaram e transformaram a profissão aeroviária no curso de sua utilização como empreendimento prático, demonstram que na aviação encontra-se uma homologia entre o discurso técnico- progressista e a estratégia de dominação de elites políticas econômicas do país tendo como complementação o processo de aburguesamento da sociedade patriarcal brasileira. Particularmente, no caso do objeto de estudo proposto, a VARIG surge como exemplo da “variedade mais moderna” (Alexander 1962)60

de paternalismo praticado no Brasil. Por meio

57 Hugues, Thomas, Networks of power. Electrification in Western Society, 1830-1930. Baltimore, Johns

Hopkins University Press, 1983. Hugues, Thomas, Bijker, Wiebe & Pinch, Trevor (orgs.). “The Evolution of Large Technological Systems”, in:The Social Construction of Technological Systems. Cambridge (Mass.), MIT Press, 1987. Alder, Ken.Engineering the Revolution: Arms and Enlightenment in France, 1763-1815, Princeton University Press, 1997. Chipley Hughes, Michel Thad Allen e Gabrielle Hecht (orgs.) Technologies of power:

essays in honor of Thomas Parke Hughes and Agatha, Cambridge, Mass, MIT Press, 2001.

58A proposta de estudar as relações e interações da sociedade com os seus artefatos científicos e tecnológicos,

sobretudo quando eles estão sendo construídos, pode ser mais sistematicamente observada nos trabalhos de Latour (1987) e no consagrado artigo de Winner (1999):Os artefatos têm política?

59 Winner, Langdon. La Baleine et le réacteur. A la recherche des limites au temps de la haute technologie,

Paris, Descartes & Cie, 2002, sobretudo o capítulo, « Les artefacts font-ils de la politique ? ». Carlson, Bernard. “The Telephone as Political Instrument : Gardiner Hubbard and the Formation of the Middle Class in America, 1875-1880”. In:Technologies of power: essays in honor of Thomas Parke Hughes and Agatha Chipley Hughes,

Michel Thad Allen e Gabrielle Hecht, orgs., Cambridge, Mass, MIT Press, 2001.

60ALEXANDER, Robert J. Labor relations in Argentina, Brazil and Chile. New York: Mc-Graw Hill, 1962. p.

da prática do paternalismo, Alexander demonstra como a Varig, com extrema competência, mantém seus empregados sob seu próprio controle e supervisão, demonstrando preocupação com o bem estar social e buscando resolver seus problemas. Este aspecto será analisado em detalhes no terceiro capítulo. Os esforços paternalísticos dos empregadores tinham, na visão do autor, pelo menos, dois objetivos: bloquear qualquer protesto de trabalhadores e tornar o empregado mais dócil, mais manipulável no processo de adaptação ao trabalho (Alexander, 1962:104).

Diretamente relacionada com o controle do risco e do perigo no transporte de vidas, a nova profissão, também no Brasil, logo se instaura como detentora da imagem do desenvolvimento progressivo do conhecimento técnico, apresentando-se como um dos ingredientes da ideologia conservadora, burguesa e hierárquica da sociedade brasileira.

Desde seu início, o transporte aéreo é caracterizado por sua velocidade e, portanto, direcionado para cosmopolitas das finanças e dos negócios, assim como para uma fração majoritária da classe política. Sempre existiu o tráfego de turistas, no entanto, serviam apenas as classes com poder aquisitivo alto, as velhas oligarquias regionais, ilustrada, semi-ilustrada, e dispostas a impor moda e tendências.

Cabe perguntar: até que ponto a política que foi capaz de preservar a empresa Varig, seu patrimônio, sua memória, até os dias atuais são testemunhos de uma elite brasileira que permanece no poder ou testemunho do poder refratário e inerente aos ativos intangíveis61 que a empresa acumulou ao longo de sua trajetória – por meio, inclusive, de um elenco de benefícios considerados acima da média na opinião de seus funcionários e dependentes? Ou talvez, esses fatores conjugados, formem a dinâmica de base para a manutenção da organização.