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2.3. Aviação Romântica: Caminhos míticos em busca da unidade

2.3.2. O tempo do glamour e da luxúria

Os anos entre 1950 e 1970, foram marcados para a aviação como sinônimo de glamour, as empresas eram mais enxutas, os aviões menores, as viagens longas78

, o serviço de bordo vip e só quem tinha muito dinheiro fazia parte do clube dos requintados passageiros. Talvez a desejada modernidade, soberania e desenvolvimento, neste momento, estivessem intimamente relacionados a objetos de elegância e distinção consagrados mundialmente, como: taças de cristal, talheres de prata, porcelana alemã, cardápios redigidos no idioma francês e guardanapos de linho. Ou mesmo encarnados nos trajes usados para realizar a viagem. Para os homens, o terno bem cortado, gravata e chapéu. Para as mulheres o tailleur, as luvas, o salto alto e as meias de seda.

Num depoimento de uma aeroviária com mais de trinta anos de profissão, verifica-se que, até a vestimenta dos passageiros da Varig (a empresa já era modelo a ser seguido na época de sua entrada na aviação), era vista como diferenciada pelos funcionários das outras

78Apenas como informação ilustrativa, uma viagem entre o Rio de Janeiro e Lisboa, num avião Constelation,

empresas. Este depoimento é de uma funcionária aposentada e foi resgatado de entrevista realizada no período do mestrado no ano de 1999. Ela nunca trabalhou na Varig, porém o tom eloqüente da sua fala resume bem o sentimento da maioria daqueles que trabalharam e ainda trabalham na aviação civil no Brasil79. Mesmo sendo de outra companhia aérea os profissionais de fora se identificavam com algo da empresa que sendo, moderno ou tradicional, internacional ou não, universal ou não, era considerado o “padrão” Varig da aviação brasileira. Desde o início da sua carreira (1975), o que se via na aviação, nas palavras dela, era:

“O perfeccionismo, né, porque naquela época, tinha que ser perfeccionista, você tinha que atender muito bem, você tinha, porque era muito selecionada a aviação naquela época. Muito! Muito! Muito! Entendeu? Às vezes eu ficava olhando o embarque de passageiros da Varig que era a coisa mais linda, era um desfile tanto de mulher, como de homem, era lindíssimo o pessoal se vestia muito bem, era maravilhoso. Então, a gente vendo isso, a gente aprende a maneira de se vestir, o porte, entendeu? As mulheres chiquetés, não, muito chique! A Varig sempre teve um nível de passageiro mais elevado, sempre até hoje ela tem. Não me pergunte o porquê, mas é! Porque, não. Porque eu sei, porque ela, ela tem um padrão. A Varig tem um padrão mundial, né, entendeu? O que é no Rio, é em Recife, é em Londres, é onde for que ela pousar, existe um padrão Varig, então é isso. Quem tem dinheiro, quem pode vai pela Varig. E é assim, não desmerecendo as demais, mas é verdade!”

O período de desenvolvimento da aviação no Brasil e, conseqüentemente, o crescimento da Varig proporcionaram à sociedade a sua volta a imagem de um padrão de desenvolvimento invejável e de alcance universal. O fortalecimento dessa consciência - nas elites, principalmente - se objetivou pela redundância da temática do desenvolvimento e num progressivo movimento de conquista de um espaço aéreo para o Brasil.

A identidade brasileira referendada na prática da empresa logo se assemelha a algo ainda mais elevado. Na medida em que deixa de ser apenas do Brasil para ser do mundo, a identidade brasileira acrescenta um novo valor ao seu processo de independência, sendo inclusive um de seus alimentos. Exemplo disso são os cardápios produzidos pela empresa disputados pelos passageiros, nos anos 1950 e 1960. As capas, na sua maioria, eram compostas por vários desenhistas de renome internacional, apresentavam alusões sobre as diferentes regiões brasileiras, a impressão era realizada nos Estados Unidos, além dos pratos serem preparados sob a supervisão de chefes franceses. Que maior significado pode se dar a

79Os funcionários da TAM devem ser tratados em separado principalmente pela política adotada pela empresa

na relação com os funcionários da Varig. Essa idéia será melhor desenvolvida no quinto capítulo, quando será abordado os períodos mais recentes da empresa.

uma empresa brasileira quando efetivamente, como uma espécie de grife, existe como suporte para traduzir o universal? Nada mais coerente para um país que apesar de ser único, nasce a partir do cruzamento de diversas etnias. A Varig, não obstante ser resultante de uma pesada soma de interesses estrangeiros, é uma daquelas grifes com as quais os brasileiros estabeleceram uma forte relação sentimental.

A remuneração também era outro item invejado por aqueles que não participavam da atividade. O salário oferecido pela empresa Varig nos últimos 60 anos de sua existência sempre foi mais elevado se comparado com outras empresas aéreas nacionais.

Muitas referências sobre o alcance salarial foram feitas por entrevistados. Os cargos mais bem remunerados eram aqueles ocupados pelo presidente, diretores, conselheiros. O valor destes salários nunca foi uma informação claramente exposta para os empregados, permitindo que as idéias sobre os totais alcançarem tetos extremamente elevados, sempre existiram. As manobras políticas para alcançar tais cargos (expostas no próximo capítulo) também fazem parte do repertório de um grupo de elite, bem distanciado do trabalhador comum das lojas e aeroportos.

Na empresa Varig, durante as décadas iniciais, apenas com alguns anos, somados a uma formação intensa voltada para o conhecimento técnico sobre o setor, eram necessários para galgar postos mais altos na carreira aeroportuária. Postos exercidos por comandantes, co- pilotos, mecânicos de vôo, comissários, despachantes operacionais de vôo (DOV), Supervisores de Atendimento Especiais (SAE) e gerência de aeroportos, eram considerados equivalentes e até superiores aos salários de nível acadêmico universitário80. Assim que recebiam o primeiro pagamento revelaram: Éramos capazes de comprar um carro com

80 O posto e, conseqüentemente, a remuneração mais baixa no aeroporto era o de “balanceiro”, personagem

responsável por transportar as malas para pesá-las e encaminhá-las com segurança até a aeronave. Até o final da década de 1980 era solicitado apenas à formação primária para ocupar este cargo. Nos anos de 1990 este cargo foi gradativamente sendo extinto. Hoje ele não existe mais nas empresas aéreas. Seus antigos ocupantes viram a terceirização desse serviço diminuir o poder aquisitivo do emprego, assim como aumentar o nível de exigência para seu ingresso em diversos níveis, inclusive o da escolaridade. Existem ainda o grupo de funcionários que trabalha na loja, conhecido genericamente como recepcionistas ou despachantes de tráfego. Local onde são emitidos bilhetes, entre outros serviços prestados. Um balcão de vendas, reservas e informações (BVRI). Este setor teoricamente funcionaria em harmonia com o grupo docheck-in, pessoal voltado para checagem e aceite efetivo dos passageiros nos vôos. Nem sempre a sintonia entre as informações encontradas nos balcões coincide com aquelas recebidas no check-in, ocasionando, por vezes, a perda ou atrasos nos vôos proveniente do desencontro de procedimentos e informações. Internamente são os despachantes de pista que atendem as necessidades ligadas à aeronave e à pista, assim como os atendentes dos tripulantes técnicos (comandantes e comissários). Os cargos de chefia estão igualmente divididos entre supervisores de turno em diversos setores, além do gerente de aeroporto, responsável por todas as atividades realizadas nas dependências do mesmo. Os setores de carga, achados e perdidos e de manutenção possuem seus despachantes e mecânicos, respectivamente. Toda base possui um gerente geral, localizado, normalmente, em um escritório no centro da cidade ou em bairro comercialmente ativo.

apenas um salário! Um ex-funcionário remanescente dos anos 1970, ainda com mais precisão comenta:

“Significa dizer que se pudéssemos fazer uma relação entre passado e presente, seria o mesmo que ganhar agora em torno de R$ 11 mil. Hoje isso, só mesmo em sonho e na cabeça das pessoas de fora da aviação que não conseguem imaginar que um comissário em início de carreira receba um salário bruto – incluindo benefícios e o acumulado em muitas horas de vôo – menos de R$ 1 mil reais. Eu disse menos”.

(comissário aposentado de vôo, 35 anos de aviação)

Esta realidade, no entanto, não apaga o fascínio da aviação, basta apenas verificar os inúmeros cursos preparatórios que se abrem no país, universidades81. Os cursos continuam com uma grande procura em detrimento dos baixos salários.

No caso dos cursos para pilotos, inúmeros relatos colhidos em campo, mostram o elevado custo para alcançar a formação, sem, no entanto, que isso represente, necessariamente, uma mudança da classe social e econômica do entrevistado. Uma pesquisa realizada apenas entre os pilotos da Varig reforça essa idéia:

“O custo desta formação, no âmbito privado, não é acessível para a maioria da população, o que de certa forma elitiza o acesso à carreira, mas que não necessariamente constitui-se como uma possibilidade de ascensão social ou econômica, uma vez que o retorno em termos financeiros coloca a maioria dos profissionais na faixa de poder de consumo semelhante a sua origem, pela quantidade e qualidade dos bens duráveis e de consumo dos pilotos da amostra, comparativamente à capacidade de investimento dos pais na carreira dos filhos”.

(Arretche & Villas-Bôas, 2002:182/183)

Quem ao entrar em um avião ou mesmo apenas vê-lo solto no ar, livre e, aparentemente sem destino único, não sonha, mesmo que de maneira velada, em viver de forma emocionante e viajar pelo mundo? Além disso, é preciso considerar, como já foi ressaltado, a experiência simbólica de espaços de liberdade na atuação profissional. Ela serve igualmente como exemplo, para um tipo de estratégia humana que surge como autodefesa contra a ameaça permanente do mecanicismo unidimensional82da ideologia do trabalho.

Segundo informações colhidas em entrevista com dirigente do Sindicato Nacional dos Aeronautas, no Rio de Janeiro (2004), as empresas gastavam com remuneração e encargos

81Em 1994, foi criado um convênio entre a Varig e a PUC/RS para a criação do curso de Ciências Aeronáuticas.

No ano de 2000 já havia 18 faculdades no Brasil oferecendo o curso. Maiores detalhes serão retomados no próximo capítulo.

82 Conforme referendado por Marcuse (1973) em: A Ideologia da Sociedade Industrial - O Homem

trabalhistas, na década de 1980, 37% das planilhas de custo. Nos quatro primeiros anos do século XXI, os encargos representavam apenas 13%. Além disso, no mesmo período, cerca de 80 mil pessoas trabalhavam nas companhias aéreas no Brasil. No início do ano 2002 eram 35 mil. Outra constante realidade do setor diz respeito aos atrasos de salário e como se não bastasse a baixa remuneração e os freqüentes atrasos, a atividade ainda teve que enfrentar a falência e o fechamento de empresas como a Vasp e a Transbrasil. Todos estes acontecimentos servem para selar o momento recente de crise vivido e da conseqüente diminuição no investimento na imagem deglamour e luxo das empresas aéreas.