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O Pai fundador da aviação brasileira (ou o pai tutelar da Aviação Mundial II)

2.3. Aviação Romântica: Caminhos míticos em busca da unidade

2.3.1. O Pai fundador da aviação brasileira (ou o pai tutelar da Aviação Mundial II)

“Se ainda hoje se discute se o primeiro vôo humano numa aeronave mais pesada do que o ar foi realizado por êle ou pelos irmãos Wright, essa questão verdadeiramente só indica que Santos Dumont ocupa, sem dúvida, o primeiro lugar ou, na pior das hipóteses, o segundo lugar nesse feito mais eminente e mais heróico do mundo moderno, e isso basta para gravar seu nome para sempre nas páginas da História. Sua vida já por si é uma sublime epopéia de ousadia empreendedora e de abnegação, e inolvidáveis como o seu feito técnico serão os atos de seu humanitarismo, aquelas duas cartas que desesperado dirigiu à Liga das Nações, pedindo que esta proibisse de uma vez para sempre o emprego do avião para o lançamento de bombas e para outras crueldades bélicas. Só com essas duas cartas, que perante o mundo inteiro proclamam e afirmam o espírito humanitário de sua pátria, a figura de Santos Dumont se pôs para sempre ao abrigo de todo esquecimento injusto”.

(Zweig, Stefan.Brasil o país do futuro, 1941: 180, 181).

Um bom exemplo genuinamente brasileiro, sobejamente conhecido no Brasil, respeitado e admirado neste universo é Santos Dumont75. Se transportarmos para o inventor brasileiro a análise sobre qual o tipo de modelo de pai tutelar encarna a figura de Santos

75 Santos Dumont, não fugia a regra do brasileiro miscigenado, porém rico. Seu pai era o magnata Henrique

Dumont, filho de imigrantes franceses, e Dona Francisca, neta de portugueses e filha do Comendador Francisco de Paula Santos, dono de lavra de ouro na região de Mariana. A ligação com o transporte, no entanto, tem raízes familiares. Seu pai foi um dos pioneiros a introduzir no Brasil, as locomotivas para transporte da produção dos grãos de café por sua fazenda. Em 1872 o engenheiro Henrique Dumont assumiu a empreitada da construção do trecho da Estrada de Ferro Central do Brasil na subida da Serra da Mantiqueira, tendo instalado seu canteiro de obras na localidade de Cabangu (SP).

Dumont para a atividade, o caso muda radicalmente do sentido anteriormente dado aos irmãos Wright.

Como pensar em Santos Dumont, senão como um ‘bon vivant’, homem frágil, de baixa estatura (1,60 m) e corpo franzino, filho de pai fazendeiro de café76. Distando das origens dos irmãos americanos, o brasileiro pertencia à elite cafeeira do Brasil, possuía rica herança que lhe foi entregue ainda muito jovem, mesmo antes da morte de seu pai.

As biografias, os artigos de jornais, revistas e livros, impressos sobre o inventor, nacionais e internacionais, não se cansam de referendar Santos Dumont como um dândi, de gostos requintados, sempre impecavelmente vestido, um jovem, inserido na “Belle Époque” parisiense, um brasileiro para além de seu tempo, um homem que criou e disseminou estilos. Popular entre artistas, estudantes e figuras ilustres, sobretudo por suas proezas aéreas. Era o único que dentro de seu balão particular, excentricamente, deslocava-se sobre Paris em passeios aéreos. Jovem, rico, elegante e galante a flanar sobre Paris. Visitava os amigos, ia a almoços ou mesmo atravessava a avenidaChamps Elysées, e pousava suavemente, amarrando seu balão a um poste ou árvore porque, simplesmente, precisava “estacionar” para tomar um café.

Por suas boas ações, logo se torna um mito carismático, demasiado humano, afeito à caridade, e aberto à disposição gozosa pelas coisas da vida. Os prêmios que ganhou com a realização de avanços mecânicos, heróicos ou acrobáticos, eram divididos com técnicos, auxiliares e ainda reservava parte do dinheiro para doá-los entre pobres, operários desempregados e colaboradores próximos. Ao contrário dos irmãos Wright, ele nunca patenteou suas invenções pois considerava seus inventos um patrimônio da humanidade. Entregava todos os seus estudos e desenhos para quem solicitasse. Deixava as pessoas livres para fabricar e reproduzi-los. Seu modelo de avião chamado Demoiselle, por exemplo, foi desenvolvido por diversos países, além da França, também foi construído pelos Estados Unidos, Alemanha e Holanda. No jornal Le Matin, do dia 15 de setembro de 1909, Santos Dumont77declara:

76 O pai de Santos Dumont possuía uma fazenda (Arindeuva/SP) que se tornou na época, a mais moderna da

América do Sul, com 5 milhões de pés de café, 96 quilômetros de ferrovias, sete locomotivas. Seu pai era reconhecido como oRei do Café.

77 Conforme informação veiculada pelo Ministério da Defesa e do Ministério da Ciência e da Tecnologia, na

página oficial da Comissão Interministerial para as comemorações do centenário do vôo do 14 Bis, após Santos Dumont ter vencido o Prêmio Deutsch De La Meurthe, em 19 de outubro de 1901, em Paris, “o aeronauta

doou integralmente seu prêmio; metade (25.000 francos) aos pobres de Paris, quitando suas dívidas em casas de penhores, e devolvendo-lhes suas ferramentas de trabalho e instrumentos musicais, e a outra metade entre seus mecânicos e colaboradores” (http://www.santosdumont.14bis.mil.br/index.php).

“Se quer prestar-me um grande obséquio, declare, pelo seu jornal, que desejoso de propagar a locomoção aérea, eu ponho à disposição do público as patentes de invenção do meu aeroplano. Toda a gente tem o direito de construí-lo e, para isso, pode vir pedir-me os planos. O aparelho não custa caro. Mesmo o motor, não chega a 5.000 francos.”

(Santos Dumont e a Invenção do vôo, Barros, 2003:94).

Embora inserido num momento em que nasciam as primeiras indústrias aeronáuticas, Santos Dumont estava mais para um aventureiro milionário ou um idealista do que para um negociador que buscava o controle dos seus inventos com fins lucrativos. No meio aeronáutico Santos Dumont é, freqüentemente, lembrado como uma pessoa que mostra ter uma única opção de vida, aquela de quem não tinha nada a não ser um sonho.

De certa forma, a aviação brasileira, com os inúmeros investimentos a fundos perdidos, e a empresa Varig, referendada por seu caráter pioneiro, identificavam-se como herdeiras de Santos Dumont, invocando para si as mesmas características. Como disse seu dirigente-fundador, “a empresa nasce para servir”. Servir ao país, servir a coletividade brasileira. Apesar da enorme soma de dinheiro que o investimento necessita e faz circular, o lucro enquanto valor, aparentemente, não pode vir acima do bem comum. Um espírito coletivo co-existindo como elemento característico do empreendimento.

O nacionalismo que precisou ser criado em torno da idéia da possibilidade do governo brasileiro apoiar a formação de uma empresa aérea buscou sustentação apelando à memória dos brasileiros criadores, do balão e do avião, respectivamente, colocando-se em evidência, algo que, de certa maneira, já fazia parte de um repertório nacional. Melhor dizendo, diz respeito a uma dimensão nativa específica no imaginário brasileiro, que é ter um brasileiro como inventor do avião. Com isso a inovação, mais uma vez, promove um diálogo com a tradição e o novo. Os pioneiros brasileiros, então, foram lembrados para legitimar a formação de uma companhia aéreagenuinamente brasileira, antes mesmo da efetivação do primeiro vôo realizado pela Varig. Em 01 de fevereiro de 1927, o jornal "O PAIZ", do Rio de Janeiro, registrava:

"É preciso que a pátria de Augusto Severo e Santos Dumont possa orgulhar-se de possuir a maior rêde aérea do continente a que lhe dá direito à extensão do seu território e o título incontestável de berço da conquista do ar."

(Exemplar encontrado no Museu Varig, em exposição permanente)

No caso aqui retratado, a sedução pelo romantismo não desapareceu da imaginação dos agentes, ao contrário são constantemente lembrados na vida profissional, dando força para

enfrentar situações inéditas, repelindo ameaças, domando o temor, enfim na busca de economizar a angústia das severas crises da aviação e dos respectivos momentos de insegurança no emprego. Nesse sentido, a avalanche de imagens que acompanha e importuna, a revolução técnica aeronáutica não se caracteriza apenas pela manipulação de símbolos da conquista mas também pela apropriação de significados que na tradição ocidental está intimamente associada a uma espécie de romantismo. A aviação romântica não ficou reduzida à vulgarização ou à imaginação dos saudosistas, ao amadorismo e ao aerodesporto, como muitos historiadores, psicólogos, entre outros pesquisadores da aviação vêm defendendo, ao contrário introduz na razão de ser do trabalho um espaço de delícias, a meio caminho do céu e dos infernos, onde, até mesmo a morte em vôo é vista como algo menos monótono do que a morte natural. A morte em vôo é reconhecida como uma morte em glória, mais ou menos, como no antigo provérbio, ainda freqüente na maioria das conversas com os pilotos, “A aviação vive da audácia dos vivos e da glória dos mortos”. Provavelmente, porque no dia a dia dos vôos, a vida profissional aproxima-se da narrativa do mito de Adônis, impregnado por um eterno retorno, no qual Afrodite saboreia em paz seu Adônis para sempre livre da morte. Análogo ao mito grego, pouco importa para a libido desses profissionais e suas diversas configurações do sentido quando a razão lhes chama de antiquada.