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1.4. A Construção do Estado-Nação, da Globalização e Mundialização, vista como um processo

1.4.1. Para além da Nação como território

O apelo à idéia de Nação na sua relação com a cultura, portanto, ultrapassa a concretude das linhas que dividem territórios, ultrapassa as questões geopolíticas e se enraíza nas fronteiras construídas no interior das pessoas (Balibar, 1990:129).

A idéia de nação sistematiza todo um conjunto de representações que permite com que as pessoas digam, esta é a minha cultura e ao mesmo tempo, identifiquem ‘outros’ como não pertencentes a ela. Pode-se concluir que mesmo fora das fronteiras físicas do Estado, viver a nação como um território manifesta-se como uma projeção e proteção de uma personalidade coletiva interior.

A apropriação e a produção diária de significados e de processos de poder relacionados à Nação se mostram seletivos e apontam para a conhecida definição de Renan (1992) quando afirma que “a nação é uma escolha de todos os dias”, e portanto, dependente de variantes situacionais, históricas, políticas, econômicas e culturais. Viver a nação como um território é uma escolha que permite a cada um habitar o tempo e o espaço do Estado como um lugar onde sempre se esteve e sempre se estará, mesmo que concretamente distante dele. Consolidam-se ainda mais as conclusões de Thiesse (2000:231), quanto à coincidência entre os termos Estado e Nação na medida em que é possível reinterpretar em termos nacionais tudo o que é incluído nas fronteiras do Estado.

A Nação é uma das representações criadas para legitimar o Estado, nesse sentido, salienta Thiesse (2000), a idéia de nação é algo intelectualmente construída como um organismo imutável, sempre idêntico a si mesmo através das vicissitudes da História (2000:229). Assim, a idéia de nação, permitiu às sociedades ocidentais efectuar mutações

radicais sem cair na anomia (2000:20). Em contra partida, é o Estado o depositário da temporalidade e, conseqüentemente, da mudança e da mortalidade.

A noção de Estado-Nação engendra, portanto, dois fenômenos contrários e simultâneos. Desencadeia polarizações de difícil equilíbrio, estável/dinâmico, concreto/abstrato, particular/geral, local/mundial. O Estado-Nação representa uma abertura para o mundo, através das relações internacionais que se vê obrigado a estabelecer, e com isso anuncia a decadência da Nação no que diz respeito ao seu conservadorismo absoluto. Ao mesmo tempo, pela incompletude e inacabamento, preserva, num processo de juvenilização permanente, pela força da ambivalência e da ambigüidade e pelo poder da metamorfose e do retorno ao nacional sempre que possível e necessário. E assim, caminha-se em busca das origens, da tradição, de uma alma nacional, que sempre existiu e sempre existirá para o bem daqueles que procuram um espaço identitário e um sentimento de pertença comum ou para o mal quando servem de alimento para os chamados nacionalismos reacionários.

Retornando às conclusões de Thiesse (2000:222/3), a obra de construção identitária iniciada no fim do século XVIII e que permitiu o advento das nações não só não se concluiu com a generalização dos Estados-nações, como se intensifica e se sistematiza. Sendo assim surgem os direitos do cidadão que compõem o Estado-Nação, que são diferentes dos direitos universais do homem (cidadania global). As questões referentes à cidadania nestes dois casos, chegam mesmo a se contrapor e formar duas vozes distintas (Todorov, 1989:277).

A globalização e a formação dos Estados Nacionais, como se pode perceber, compartilham processos paralelos cheios de contradições e antagonismos, porém, seguem seus percursos enraizadas uma à outra. Para os propósitos da análise a ser empreendida na tese os efeitos da construção do nacionalismo e do Estado-Nação são aspectos cruciais ao próprio processo de globalização. Sahlins contribui decisivamente para as ciências sociais ao mostrar que os efeitos das forças materiais globais dependem dos diversos modos como são mediados em "esquemas culturais locais" e que, igualmente, "a presente ordem global foi decisivamente moldada pelos povos periféricos" (Sahlins, 1988:53).

O refúgio nas identidades nacionais, no entanto, é algo persistentemente vivido em diversos níveis da prática coletiva: jurídica, econômica, financeira, policial, monetária etc. O direito à diferença ainda é uma presença forte no cotidiano das dimensões explicitadas acima. Neste aspecto as reflexões de Todorov (1989:277) são esclarecedoras, o autor demonstra que o Estado (ou a soberania indivisa, que impõe a obrigação política vertical entre os cidadãos) fará sempre a diferença entre o estrangeiro e o cidadão nacional, na medida em que para aqueles que habitam nas fronteiras nacionais são impostos certos deveres que são estranhos

aos que são de fora. Desta maneira os considerados nacionais ou nacionalizados exigirão sempre tratamento e direitos diferenciados. Todorov (1989:286) deixa claro que pertencer à humanidade não faz homologia com o pertencer à Nação.

Um caminho possível de análise é oferecido por Thiesse ao refletir sobre a formação da entidade supranacional da União Européia. A autora se questiona quanto aos países da Europa terem instituído a entidade tendo, no entanto, esquecido de sua construção. Segundo Thiesse (2000:22): “Falta-lhe todo o patrimônio simbólico através do qual as nações souberam propor aos indivíduos um interesse coletivo, uma fraternidade, uma proteção.”

Apesar de toda a vivencia transnacional e a imagem de identidades fluídas que podem emergir de suas práticas no trabalho, o sentimento de pertença nacional no interior da empresa se mantém no melhor de sua forma. Trata-se da permanência de formas insuspeitadas de subjetividade e de interações, de formas de resistência, que se pode chamar de étnica, de um grupo de trabalhadores que há muito estão incorporados a economias integradas, ditas atualmente como economias globais. O relato das experiências vividas pelos funcionários, assim como o abundante material coletado na e sobre a empresa sustentam normas, valores, julgamentos e justificativas, daquilo que se pode chamar de um desejo de reconhecimento por uma alteridade, que para ser eficaz precisa entrar na luta do capitalismo internacional aproximando-se de uma imagem contemporânea do Brasil e dos brasileiros, aparentemente criada e recriada desde sua fundação.

A Grande Narrativa da dominação ocidental Global não apaga, mas ao contrário, fortalece determinados discursos constitutivos de caráter moral a respeito do Estado, da nação, da soberania, da determinação pessoal e coletiva, incluindo as da identidade nacional e da identidade com a empresa, na medida em que a criação e a manutenção da Varig vem sendo construída continuamente sob pressões globais. Determinadas políticas culturais mundiais se alimentam da existência de um Estado-Nação forte e soberano, cujo sentido é necessário integrar, assimilar e legitimar repetidas vezes no seio da organização, para fazer frente ao desafio da competição econômica internacional e para manter a coesão social. Assumir essa perspectiva é perceber que nacional, internacional, local e global, são aspectos de um mesmo pacote teórico e histórico construído no jogo relacional da sociedade (Cavalcanti, 1999). Não representam pares de opostos puros e simples, nem muito menos pares invertidos, mas assinalam a constante presença do lugar do ambíguo na construção da identidade de trabalhadores cujo valor se configura sob o olhar do outro (estrangeiro). Com efeito, é da perspectiva da globalização que se busca conceber o caráter local da identidade dos atores enquanto forma de diferenciação.

A representação da brasilidade no interior da empresa está mais profundamente vinculada a um processo que tem o Estado-Nação como ponto central. As conotações ideológicas e as manipulações de obras literárias e/ou científicas sobre as imagens do brasileiro hospitaleiro, cordial, simpático, alegre, miscigenado, entre outras, constitui uma trama de retalhos cuja costura se recompõe principalmente nos discursos hegemônicos patrocinados pelo Estado-Nação. Revistas e filmes alusivos ao modo de ser brasileiro estão sempre sendo lançados e exportados dentro dos aviões da companhia e já foram motivo de diversas críticas39.

A rápida integração na sociedade industrial das coletividades brasileiras que, não tendo permanecido alheias à nascente indústria da aviação, haviam conservado seu elo de ligação histórico com o universo aeronáutico, aciona ao mesmo tempo, os mecanismos da sociedade global e os das coletividades locais para se desenvolver. Com efeito, não se trata de um simples fenômeno de assimilação, como a palavra sugere.

A tese proposta traz a concepção de que a economia global guarda estreita conexão com as políticas de Estados Nacionais – neste caso nacional e global são aspectos do mesmo conjunto histórico e social. É justamente este postulado que mantém viva a adesão coletiva dos indivíduos a se conformarem às transformações dos modos de produção, à expansão dos mercados, a intensificação das trocas comerciais. Contrapõe-se, portanto, às idéias sobre o processo de globalização que têm como uma de suas referências o declínio da imagem do Estado-Nação.

Nesse sentido, uma consideração crucial pode-se destacar do trabalho de Souza Santos (2000a:275), qual seja: "há uma centralidade do poder do Estado, do direito e da ciência moderna que não pode ser negligenciada nem subestimada, os três estão espalhados em todas as constelações de poder, de direito e de conhecimento que emergem nos campos sociais concretos, mas funcionam sempre em articulação com outras formas de poder e de direito não estatais e com várias formas de conhecimento científico". Deve ainda ser relembrado aqui que o nacionalismo enquanto ideologia nunca deixou de ser ressaltado nas práticas que buscam defender a participação do capital e da tecnologia nacionais nas atividades aéreas. Nas correções, negociações, formas de pressões que devem ser estabelecidas contra os constrangimentos, por exemplo, da OMC ao desenvolvimento do país,

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A escritora e jornalista, Marilene Felinto, critica os filmes exibidos nos vôos mais longos da VARIG sobre as cidades brasileiras, dizendo: "No filme sobre São Paulo, por exemplo, só tem gente rica e branca, como uma

espécie de Suécia, uma representação falsa e artificial da realidade. É quase revoltante, sobretudo porque está explícita a discriminação contra negros e mulatos – ausentes do vídeo". Caros Amigos, n. 76, Ano VII.

e sobretudo, nos discursos políticos quando afirmam que as empresas de setores estratégicos para o Estado devem permanecer sob o controle do País.

Enfim, os dados etnográficos colhidos em campo servem para sustentar a tese de que o paradigma do Estado-Nação opera com a mesma lógica da Globalização, servem como grandes centros de produção de imagens, que pressupõem a concorrência de Estados e não sua abolição. Necessitam da existência de aparatos administrativos e legais para a reprodução do capitalismo tardio. A flexibilidade espacial do fluxo de pessoas, de capitais, informações e investimentos que concretamente caracterizam a globalização, mesmo quando em ações mais especulativas do que produtivas, carecem da existência de aparatos administrativos e legais dos Estados-Nação. Em função disso, Castells (2000:356/7), baseado nas conclusões do economista e educador Martin Carnoy, reforça as idéias do autor ao afirmar:

“A competitividade de uma nação ainda é determinada em função das políticas nacionais, e a atratividade das economias para as multinacionais estrangeiras existe em função das condições econômicas locais; as multinacionais ainda dependem em grande medida de seus Estados de origem para obtenção de proteção direta ou indireta; e as políticas nacionais de desenvolvimento de recursos humanos constituem um componente fundamental para a produtividade de unidades econômicas situadas em um determinado território nacional. Corroborando tal argumentação, Hirst e Thompson demonstram que, se além da relação entre empresas multinacionais e o Estado incluíssemos ampla gama de políticas pelas quais os Estados-Nação efetivamente exercessem poderes de regulamentação capazes de facilitar ou obstruir fluxos de capital, trabalho, informação e produtos, fica claro que, nesse ponto da história, o desaparecimento do Estado-Nacão é uma falácia” (2000:356/7).

Em resumo, a análise empreendida na tese considera que a identidade nacional está na base da formação de empresas transnacionais pelo fato delas despontarem no mundo todo como atores importantes em termos de representação de uma identidade local com algum tipo de comprometimento com outras identidades e desta forma, estarem mais bem posicionadas para se ajustarem às incessantes variações dos fluxos globais. Assim sendo, as demandas étnicas por representatividade política ou mercadológica identificadas na empresa Varig, emprestam às suas reinventadas e celebradas “tradições” uma coordenada fixa no tempo e no espaço. De maneira que se vê a construção de uma identidade social nacional a partir de uma identificação com a empresa em detrimento de uma identidade idealizada como transnacional.