• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3. A EDUCAÇÃO NA UNIVERSIDADE DO RECIFE: ENTRE A CIÊNCIA E A

3.2 Conciliando para inventar um sistema

3.2.1 Tentando institucionalizar uma prática

3.2.1.1 UM “SISTEMA” CONCILIADOR

3.2.1.1.2 O MESMO LOCAL, A MESMA REGIÃO

Em 1926, no Manifesto Regionalista, apresentado ao Congresso que pioneiramente o Movimento Regionalista levou a efeito no Recife – Movimento de que de suas sugestões vêm sendo realizadas e de que alguns movimentos atuais325, em não pouco de seus fundamentais aspectos são alongamentos daquele, dizia Mestre Gilberto Freyre: “Nosso movimento não pretende senão inspirar uma nova organização do Brasil. Uma nova organização em que as vestes em que anda metida a República – roupas feitas, roupagens exóticas, veludos para frios, peles para gelos que não existem aqui –

324 Silva (2012, p. 101) afirma que Cordeiro de Farias anuncia que sua “política de abrir escolas só foi possível graças à ajuda do INEP”. A autora (2012, p. 101) afirma ainda que “quanto à construção de grupos escolares havia convênios entre Pernambuco e a União através do INEP para a construção de novos grupos escolares, em que verbas seriam repassadas de acordo com o andamentos das construções que eram fiscalizadas pelo INEP”. Ver mais em: SILVA, Talita Maria. Espaço Escolar, arquitetura e pedagogia no Recife: notas para uma modernização sem mudança. Dissertação (Programa de Pós-graduação em Educação). Recife: UFPE, 2012.

325 Provavelmente Paulo Freire está falando aqui como “alongamento” do “Movimento Regionalista”, o Movimento de Cultura Popular (MCP) de Pernambuco, assunto a ser tratado no próximo capítulo.

sejam substituídas não por outras roupas feitas por modista estrangeira mas por vestido ou simplesmente túnica costurada pachorrentamente em casa: aos poucos e toda sob medida” (FREIRE, 1961, p. 7, nota de rodapé) .

Foi citando Gilberto Freyre “mestre”, que Paulo Freire falou no ‘folheto’ A propósito de uma Administração relatório sobre a Gestão do Reitor João Alfredo publicado em 1961. Paulo Freire mesmo não evidenciando nas suas atividades que participou do CRR (INEP), sob a direção de Gilberto Freyre (com a inscrição de projetos, palestrante e debatedor de conferências, relator de planos) não era sua intenção, ou melhor, não era sua prática se desligar das práticas freyreanas que evidenciam uma certa região: o Nordeste326. Mesmo sem explicitar as práticas anisianas, foram elas, já instituídas, que possibilitaram ver a escola como um espaço que contemple o meio em que está inserida, tanto que outrora, na sua “tese” de concurso Freire (2003) vai chamar a fala do “mestre” Anísio Teixeira e seu livro Educação não é privilégio para demonstrar que a escola não pode ser “imposta pelo centro, mas o produto das condições locais e regionais”(TEIXEIRA APUD FREIRE, 2003).

Foi este significado, o de uma educação, de uma escola, de um ensino voltado para o local que foi cunhado no “método” utilizado por Paulo Freire. As práticas freireanas que tentam se instituir como “sistema” esboçam um local, um povo que precisa ser educado.

Freire evidenciou uma educação voltada para a “realidade”, para o “contexto”, como forma de o homem adquirir “consciência” e passar para ser “sujeito” no mundo

326

Mesmo de forma suscinta Paulo Freire traz nas suas práticas citações de Freyre, ele não vai deixar de usar as práticas freyrenas em algumas de suas estratégias para tecer uma região para educação. Na conferência de 1960 Escola Primária para o Brasil lida no Simpósio Educação para o Brasil e publicado da RBEP/INEP (FREIRE, RBEP, 2005, p. 103); O texto Conscientização e Alfabetização...da Estudos Universitários (FREIRE, ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº 4). São exemplos. Mas, não só Freire, como alguns de seus pares também trazem estas práticas. Pierre Furter (ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº 4, p. 103) por exemplo, mesmo tão invasivo à Freyre não vai deixar de tecer a ideia de uma região miserável, diante do “centro-sul”: “Certamente seria igualmente legítimo e interessante, em vez de tomarmos essa região, considerada como uma das mais miseráveis do mundo, analisarmos o esforço educativo concentrado no centro-sul do país, onde se localizam três quartos das escolas primárias, a metade dos professores, as melhores universidades, e onde cada criança tem a possibilidade de cumprir sua escolaridade obrigatória de quatro anos. Enquanto que na metrópole do Nordeste, Recife, a terceira cidade do Brasil, capital do Estado de Pernambuco, o déficit escolar é de 80 mil crianças (a população escolar do cantão de Zurich), que estão pois, a priori, condenadas a ficarem analfabetas”.

em que vive. O seu método mostrou como “captar essa realidade” e fazer com que os alunos sejam alfabetizados e ainda de forma “consciente”327

.

Para “captar” a “realidade”, a orientação foi “pensar igualmente na redução das palavras geradoras, fundamentais ao aprendizado de uma língua silábica como a nossa”. (FREIRE, ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº 4, p. 13). Para Freire, tal “realidade” tem um sentido de “cultura”, já que o homem quando se reconhece como consciente e ativo, reconhece-se como fazedor de sua própria cultura. Ele “faz cultura”. (FREIRE, ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº 4, p. 15) Dessa forma, foi esta ‘ênfase’ cultural, num mundo feito pelos homens que Freire procurou retratar no seu método, no qual o homem:

Descobriria que tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor ou músico. Que cultura é a poesia dos poetas letrados do seu país, como também a poesia de seu cancioneiro popular. Que cultura são as formas de comportar-se. Que cultura é toda criação humana (FREIRE, ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº 4, p.15).

E mais adiante, citando Gilberto Freyre328 afirmou: “Concluindo o debate desta primeira situação, o homem toma consciência de ser já culto” (FREIRE, ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº 4, p. 15). E continua sobre esta ‘descoberta’ do homem como ser já culto:

Muitos deles durante os debates das situações de onde retiramos o conceito de cultura, afirmam que não se lhes está dizendo “nada de novo, e sim refrescando minha memória”.

“Faço sapatos e descubro que tenho o mesmo valor do doutô que faz livros”

Reconhecidos logo na primeira ficha os dois mundos – o da natureza e o da cultura – e o papel do homem nesses dois mundos, se vão sucedendo outras situações em que ora se fixam os conceitos de cultura e natureza, ora se ampliam as áreas de compreensão do domínio cultural.

A conclusão dos debates gira em torno da dimensão da cultura como sendo aquisição sistemática da experiência humana (FREIRE, ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº4, p. 15).

327 Tal qual Jarbas Maciel afirmou sobre o “método Paulo Freire” como ferramenta para o ISEB (MACIEL, 2003, p. 129, 130).

328

A cultura que Freire aborda tem um sentido da cultura retratada por Gilberto Freyre. A cultura como elemento de “raiz”, na qual é possível harmonizar “bom teatro, boa música, boa declamação, além de bons livros e bons autores” advindos de ‘outras culturas’ com elementos que despertem na população o gosto pelos seus “próprios valores”, sua ‘própria’ cultura: seus sons, suas danças, suas comidas, suas bebidas, suas produções no barro e na madeira (FREYRE, RBPE, 1957a, p. 66-67).

As três primeiras “fases do método” exprimem as orientações para a “realidade”, para o “local”, no sentido de ‘identificar’ esta “cultura”:

I – Levantamento do universo vocabular do grupo.

Este levantamento é feito através de encontros informais entre os educadores e os analfabetos em que se fixam os vocábulos mais carregados de certa emoção. Vocábulos ligados à experiência existencial do grupo, de que a profissional é parte.

Esta fase é de resultados muito ricos para equipe de educadores, pela exuberância não muito rara da linguagem do povo.

“Janeiro em Angicos”, disse um homem deste sertão do Rio Grande do Norte, “é duro de se viver, porque janeiro é cabra danado prá judiar de nós”. Afirmação ao gosto de Guimarães Rosa [...]

II – Seleção, neste universo dos vocábulos geradores, sob um duplo critério:

a – o da riqueza fonêmica;

b – o da pluralidade de engajamento na realidade local, regional e nacional.

III – Criação de situações existenciais, típicas do grupo que se vai alfabetizar.

Estas situações irão funcionar como elementos desafiadores do grupo. O debate em torno delas irá, como o que se faz com as culturas, levando o grupo a se conscientizar para que depois e concomitantemente à conscientização, se alfabetize. Estas situações locais abrem perspectivas, porém, para análises de problemas regionais e nacionais. Nelas vão se colocando então os vocábulos geradores escolhidos, na gradação das dificuldades fonêmicas329.

Esta orientação de Freire para “engajamento da realidade local, regional e nacional” para os “problemas regionais e nacionais” trabalhou em conjunto com a “visão prática do Sistema Paulo Freire” de Aurenice Cardoso. Cardoso (ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº 4, p. 72) afirmou que “o sistema proporciona ao homem

329

As fases continuam até o ponto V. O ponto IV trata-se da criação de fichas-roteiro. O ponto V refere-se a fichas com decomposição das famílias fonêmicas. Material confeccionado em “slides ou cartazes”.(FREIRE, ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº 4, p. 17)

muito mais que o simples alfabetizar; pois através da discussão de problemas locais, regionais e nacionais torna-o mais crítico e o leva posteriormente a se conscientizar e a se politizar.” Cardoso falou de palavras “regionais” e “locais” escolhidas em “localidades diversas de Pernambuco”: “tijolo, voto, siri, palha, biscaite, cinza, doença, chafariz, máquina, emprego, engenho, mangue, terra, enxada, classe”. “Fichas” com “o homem trabalhando o barro e o homem lendo”. E na conclusão deste processo: “Discutimos padrões de comportamento projetando o gaúcho e o vaqueiro nordestino. Observa o grupo os usos, costumes e hábitos dos dois e a diversidade regional dentro da unidade nacional”. (ESTUDOS UNIVERSITÁRIOS, 1963, nº4, p. 75,76)

Foi prática ansiana, como já foi dito, a orientação para uma educação local, regional.