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4 PUBLICIDADE

4.2 A RELAÇÃO ENTRE PUBLICIDADE E GÊNERO

4.2.1 O movimento de empoderamento feminino

Apesar do uso dos estereótipos ser considerado uma fórmula “certa”, a prolongada objetificação da mulher na publicidade apresentou desgaste. Esses padrões de comportamento centrados em um lugar de submissão feminina passaram a ser questionados na própria sociedade. Assim, a publicidade, sendo um espelho da sociedade em que circula, viu-se obrigada a reorientar suas práticas de representação de gênero, o que culminou no surgimento de um movimento de empoderamento feminino.

No final da década de 80 foram identificados os primeiros esforços midiáticos para incorporar pautas e reivindicações feministas nos anúncios publicitários (LANA & BASILIO, 2018). A crescente presença do feminismo no contexto social não poderia mais ser ignorada por discursos dicotômicos de ideais de feminilidade e masculinidade. A publicidade, então, mudou a maneira de retratar a mulher: esta passou a ter mais autoridade e autonomia do que anteriormente e também passou a ser representada em ambientes de trabalho que não o doméstico, o que ocasionou em uma “uma publicidade mais reflexiva, que reposicionou os modos de endereçamento dos produtos às consumidoras e, também, o olhar masculino para o corpo feminino.” (ibidem, p. 116).

Apesar de ainda serem muito presentes na circulação de anúncios publicitários do Brasil, esses recursos utilizados para romper com hierarquias de gênero cristalizadas ganham cada vez mais adesão das marcas. De qualquer forma, as mais diversas formas de interação com essas mudanças (adesão, negociação ou resistência, por exemplo) mostram como a publicidade se relaciona com os valores vigentes ou em transformação da sociedade e os transferem para a nossa cultura (OLIVEIRA-CRUZ, 2017).

Ainda que se tenha uma preocupação em apresentar a mulher de maneira mais inteligente e autônoma e menos erotizada e objetificada, a forma e o padrão estéticos não avançaram na mesma proporção. Os anúncios trazem mulheres independentes, mas a valorização estética empregada nas narrativas ainda é a do passado (OLIVEIRA-CRUZ, 2017). Isso ocasionou a insatisfação do público feminino com a sua representação, passando a mostrar um sujeito feminino mais crítico e exigente em relação à publicidade, bem como mais ativo para reivindicar um espaço diferente.

A consequência dessa postura do público foi uma valorização (e identificação) da narrativa de mulher bem resolvida e tendências favoráveis à publicidade empoderada. Um agente importante nessa transformação foi o ambiente virtual, um espaço propício para discussões dinâmicas e que rejeitam a naturalização dos ideias dicotômicos de feminilidade e masculinidade. As mídias sociais aliadas ao ativismo digital ajudaram a difundir o femvertising, conceito formado pela união das palavras de origem inglesa “fem” (referente a feminismo) e “vertising” (referente à advertising – “propaganda” em inglês). Podemos entender o femvertising como “a publicidade voltada ao empoderamento feminino que emprega conceitos a favor do talento de mulheres nas mensagens e imagens com o objetivo de capacitar mulheres e meninas” (SHEKNOWS apud HECK & NUNES, 2016, p. 8).

Assim, o ambiente das mídias sociais foi essencial para a difusão do

femvertising, já que pode ser considerado um local para a prática da contestação dos

anúncios publicitários. Em um primeiro momento, essas práticas eram ações já conhecidas, restritas a uma atuação individual como, por exemplo, realizar denúncias junto ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, o Conar (WOTTRICH, 2018). A emergência de movimentos em redes sociais indicava a configuração de um modo distinto de relação dos sujeitos com a publicidade. A dinâmica mudou, pois o individual tornou-se coletivo, uma vez que o conteúdo pode ser compartilhado e adquire uma audiência própria que se apropria do conteúdo e participa de um processo de ampla disseminação.

Segundo Martín-Barbero (apud WOTTRICH, 2018), essas ações podem ser classificadas como um novo modo de produzir associado a um novo modo de comunicar. A coletivização das contestações oferece uma natureza mais “social” do que antes, pois elas se multiplicam entre os usuários e ganham repercussão, podendo chegar até a um enfrentamento direto com o anunciante ou agência responsável.

Dentre esses tensionamentos entre a esfera publicitária e o público receptor, o “politicamente correto” ganha espaço porque vai de encontro a comportamentos preconceituosos abordados nos anúncios e anteriormente mencionados. Essa movimentação social emerge junto à necessidade primária não de representação, mas sim de reconhecimento por parte dos usuários, cujas demandas solicitam diversidade na publicidade. Os indivíduos desejam que suas diferenças (e as dos outros) sejam visíveis socialmente, pois essa é a forma de compreenderem e legitimarem sua própria identidade. Afinal, “se são reconhecidos na publicidade, é porque importam. E se importam, devem ter também sua existência reconhecida pela sociedade como um todo” (WOTTRICH, 2018, p. 15).

Para o presente estudo, é importante ressaltar o protagonismo que as mulheres ocupam nestes embates. As reivindicações que tomaram os ambientes virtuais são oriundas das distintas concepções, formas sociais e sentidos atribuídos ao feminino os quais têm sido contestados pelo público feminino.

A mulher tem tido crescente participação na vida brasileira e tem tido atuação de ponta nos problemas de consumo; é a mulher que tem sido mascarada pela propaganda, personificando o consumo supérfluo e dependente, ou se constituído no próprio apelo sexual. Considerando sua crescente participação social, a mulher poderá representar o agente de maior resistência ao setor publicitário (GIACOMINI FILHO apud WOTTRICH, 2018, p. 18).

As contestações em redes sociais concentram-se no tratamento desigual para homens e mulheres, o estímulo a comportamentos abusivos, o desrespeito em mostrar a mulher como fútil e destituída de inteligência, entre diversas outras questões. Dessa forma, é possível afirmar que o movimento feminista apropriou-se do contexto social, cultural e tecnológico no qual se inserem as práticas de contestação para fazer circular suas respectivas manifestações de maneira difusa (ibidem, p. 18- 19).

Assim sendo, o já citado slogan “o pessoal é político”, que marcou o desenvolvimento do movimento feminista, vem sido reescrito, pois as práticas de contestação virtuais da publicidade constroem sentidos e são amplamente difundidas através de múltiplas interações. A cobrança para uma publicidade comprometida com a diversidade pode ser comprovada graças aos resultados obtidos em pesquisa realizada pela SheKnows Media (2014):

91% das mulheres acreditam que a maneira como são retratadas na publicidade impacta diretamente à sua autoestima; 51% das mulheres gostam de anúncios “pró-mulheres”, pois acreditam que eles quebram barreiras de igualdade de gênero; 81% das entrevistadas afirmaram que os anúncios que retratam mulheres desta maneira são importantes para as novas gerações; 71% destas acreditam que as marcas devem ser responsáveis por usar publicidade para promover mensagens positivas para mulheres e meninas; 62% acham que qualquer marca pode entrar no espaço publicitário pró-feminino; 94% acreditam que retratar as mulheres como símbolos sexuais em anúncios é prejudicial; mais da metade disseram ter comprado um produto porque gostaram de como a marca e sua publicidade retratam mulheres; e 46% têm seguido uma marca nas mídias sociais, porque eles gostam o que a empresa representa. (SHEKNOWS MEDIA, 2014, p. 2).

Ou seja, o público feminino foi às redes sociais e gerou movimentos virtuais e de engajamento graças à tamanha insatisfação com sua representação. Isso atingiu também as marcas anunciantes, o que culminou em uma crescente procura para voltar seus investimentos a novas abordagens que valorizem as mulheres e gere identificação com a mensagem é reflexo de um esgotamento desse público com a sua objetificação oriundo de processos históricos e sociais (HECK & NUNES, 2016). Os dados acima ilustrados, ao que tudo indica, trouxeram resultados positivos. Assim sendo, a emergência do conceito de femvertising, principalmente no que concerne as reivindicações virtuais relacionadas a ele, foi importante para rebater as ações das práticas machistas e sexistas utilizadas nos anúncios publicitários.

Neste sentido, é interessante notar a natureza dual da publicidade, pois esta pode atuar como “objetificadora” e também como “empoderadora”, o que varia é a maneira como ela aplica os recursos de cada mecanismo na criação das peças que serão veiculadas (ibidem, p. 4), o que tem impacto direto nas relações de gênero e poder circulantes na sociedade.

Publicitários passaram a perceber que o costume de aplicar discursos hegemônicos relacionados à ideologia dominante não dá mais conta da sociedade atual, dotada de reivindicações que vão de encontro a essa hegemonia. Além do empoderamento da mulher nos anúncios, alguns (umas) criativos (as) passaram também a inserir nas campanhas pessoas gordas, trans, deficientes e idosas, o que causou uma transformação na maneira de ofertar os serviços e produtos, ao mesmo tempo em que proporciona uma reflexão sobre representatividade (HECK & NUNES, 2016).

Logo, nos embates entre o novo, é possível observar “discursos onde os sentidos se rearticulam, se contradizem, produzindo deslocamentos e deslizamentos nas representações dos papéis e estereótipos de gênero” (CORRÊA, 2012, p. 95).

É importante ressaltar que as marcas que lucram com a prática deste conceito, além de promover o empoderamento e quebra de estereótipos, possuem a responsabilidade de apostar em práticas e políticas que promovam a igualdade através de estratégias de comunicação as quais legitimam a imagem feminidade (HECK & NUNES, 2016). Assim, a publicidade que faz uso feminismo, ao evidenciar problemas de gênero no seu discurso, contribui tanto para inspirar as consumidoras a promoverem mudanças sociais e refletirem sobre sua individualidade como para ganhar visibilidade de uma marca forte, de personalidade e bem vista no mercado.