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O NORDESTE PARTICIPATIVO: AS ANÁLISES DESSE PROCESSO

3 A CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA NA AMÉRICA LATINA EM DEBATE

3.2 O NORDESTE PARTICIPATIVO: AS ANÁLISES DESSE PROCESSO

Os estudos sobre participação, segundo Avritzer (2007), centraram-se na designação de espaços e culturas como regiões participativas e não-participativas, enfocando, sobretudo, as realidades europeias e norte-americanas. Esse entendimento parte do pressuposto de que são fatores culturais que definem, no decorrer da história de um determinado país, seu caráter decisório como mais ou menos participativo, o qual se incluiria entre os grandes traços constitutivos do estado-nação. No Brasil, tanto o senso comum como obras clássicas das ciências sociais supõem a região Nordeste como pouco participativa. Tal suposição na literatura se ancora na localização de elementos familiares e estruturas hierárquicas como determinantes de relações socais singulares em âmbitos espaciais específicos.

Desse modo, a base para uma sociedade marcada por relações patriarcais, sem disposição para o estabelecimento de relações mais democráticas, que caracterizariam a região Nordeste, é atribuído, de um lado, ao engenho de açúcar, que originalmente formataria praticas autoritárias antiparticipativas. De outro lado, a especificidade da região é creditada ao fato dela imprimir em suas relações econômicas o modelo fechado monopolista herdado, na forma mais autêntica, das relações econômicas entre a colônia e a metrópole. Ainda que os estudos recentes sobre o orçamento participativo e outras formas democráticas de participação reforcem a dicotomização entre regiões culturalmente mais participativas do que outras, tal contraste tem recebido severas críticas teóricas para sua não correspondência à realidade brasileira. Elementos empíricos relacionados à organização da participação indicam que a realidade brasileira não sustenta tal classificação das regiões, visto que tanto a região Sul é constituída por estados com pouca tradição participativa, como é o caso de Santa Catarina e Paraná, como se encontra na região Nordeste estado com bastante tradição de participação democrática, como é o caso de Pernambuco, no qual se desenvolveu, na cidade do Recife, uma dessas primeiras experiências no Brasil (AVRITZER, 2007).

Vale mencionar, aqui, outro tipo de literatura com a qual me identifico, que parte do pressuposto da heterogeneidade tanto do ponto de vista econômico quanto do aspecto político-cultural da região. As diferenciações internas, devido a características socioeconômicas distintas – maior presença de mão de obra escrava

na monocultura, ancorada nos latifúndios da cana-de-açúcar e do cacau ou o predomínio do extrativismo, da pecuária extensiva, e pouca presença da escravidão –, condicionaram, em alguns estados, o surgimento de uma elite oligárquica ou um baronato específico dos quais se originou a formação de uma sociedade clientelista e em outros a ausência dessas oligarquias fortes e do clientelismo, da mesma forma como ocorreu naqueles. Diante da diversidade dessas situações encontramos também na região distintos processos de modernização ou de resistência a esta, conforme se trate do Nordeste da grande produção agrária açucareira, ou não (AVRITZER, 2007). A maior ou menor tradição democrática participativa se insere nesse contexto impeditivo ou incentivador das mudanças democráticas.

O Estado do Ceará se apresenta nas pesquisas como exemplo de estado no Nordeste que não consolidou oligarquias conservadoras muito fortes. Essa fragilidade da estrutura do poder local dificultou a permanência longa de um único grupo político à frente do governo estadual e permitiu a frequente alternância das forças políticas, até mesmo no período do regime militar. Curiosamente esse fenômeno só veio a ocorrer a partir de 1987, no contexto da redemocratização e sob o apelo do primeiro “Governo das Mudanças”, centrado na bandeira de maior participação popular, que levou a fomentar políticas públicas descentralizadas que poderiam favorecer o empoderamento das comunidades para disputar o espaço com os chefes do poder local (MESQUITA, 2007). Além dessa participação mais incisiva do governo estadual, no âmbito do poder local, de acordo com o mesmo autor os governos mudancistas, sustentados no discurso participativo, acataram a colaboração internacional de agências multilaterais e fundações financiadoras de Programas sociais de combate à pobreza, como o Banco Mundial. Esses Programas também incentivaram a criação de arranjos participativos nos municípios cearenses, como o exemplo dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Sustentável (CMDS). Tais arranjos levaram à mudanças nos padrões de organização da população e das formas de intermediação das demandas sociais. Ademais, em vista da fragilidade de sua estrutura de poder, os chefes do poder local não ofereceram maiores entraves à ação desses atores não-locais (governo do estado e agências multilaterais), para incentivar a criação desses mecanismos de participação organizada da sociedade civil.

O caso do Estado do Ceará retrata o quão decisivo são as ações promovidas pelas instituições governamentais e lideranças políticas para a construção de uma

relação de sinergia entre estado e sociedade civil, mediante a criação de arranjos participativos. Desse modo, “[...] a classe política, sobretudo nos ambientes de baixa propensão associativa, tem o importante papel de serem catalisadores no avanço do associativismo e da gestão participativa no Brasil” (MESQUITA, 2007, p. 82 (conforme texto citado). Essa interpretação foi endossada por Coêlho (2007), partindo da visão de Evans quanto ao papel do Estado na condição de indutor de capital social mediante a possibilidade deste tomar a iniciativa de ações que resultem em mais eficiência das políticas públicas. Tal empreendimento se faz possível com novas reformas institucionais que visem à articulação entre as instituições de governo e os movimentos sociais. Resulta desse processo um maior capital social para a sociedade, garantia de sua efetiva participação nas decisões de seu interesse, estabelecendo, assim, uma sinergia entre o Estado e a sociedade civil, para a qual um contexto sólido de instituições formais se impõe.

Um forte associativismo ativo é a tendência que marca a trajetória política do Estado de Pernambuco, desde o início dos anos 1980. Esse Estado foi o único da região Nordeste que seguiu a mesma dinâmica associativa voltada para uma lógica participativa semelhante à da região Sudeste do país, sendo o berço de movimentos sociais urbanos entre o final dos anos 1970 e inicio dos anos 1980, trazendo de volta a tendência política progressista que traçou sua história nos anos 1950. Do mesmo modo, tem sido pioneiro em formas institucionais de participação a partir de meados dos anos 1980. A organização de associações de bairros nas principais Cooperativas de Habitação (COHABs), ocupações de áreas urbanas ociosas e legalização dessas áreas ocupadas dão o tom dos movimentos sociais urbanos e suas reivindicações na cidade do Recife. Essa dinâmica política reivindicativa fortalecida no contexto da redemocratização do país, marcada no Estado de Pernambuco com a volta de Miguel Arrais, que assumiu o controle do PMDB local, levou Jarbas Vasconcelos ao governo da cidade com o apoio decisivo dos movimentos sociais. Assim que assumiu o governo, Vasconcelos lança a experiência pioneira de uma forma de orçamento participativo, introduzindo em Recife, já em 1980, antecipando a experiência de Porto Alegre, os fundamentos das políticas de orçamento participativo que foram desenvolvidas em outras regiões do país. Vale ressaltar que essa tendência política progressista concentrada na grande Recife, faz jus à tradição da presença do Partido Comunista e de políticos de esquerda nessa capital durante os anos de 1950. Recife aparece como a cidade do

Nordeste com o maior número de associações comunitárias e o associativismo mais forte ligado à geração de políticas públicas. Ademais, as ligas camponesas têm em Vitória de Santo Antão um de seus marcos primevos (AVRITZER, 2007). Esse traço participativo característico do associativismo que se desenvolveu em Recife se interiorizou no estado, de modo que a apropriação da participação de forma ampla é uma característica do sistema político dos municípios pernambucanos estudados por Coelho (2007), entre 1988 a 2000.

Nas análises sobre a efetividade deliberativa do associativismo na região Nordeste, tomando como referência os conselhos de saúde e os de direito da criança e do adolescente pesquisados por Claudia Feres Faria (2007), três quesitos são avaliados como capazes de indicar a qualidade do processo deliberativo. A presença de câmaras técnicas para temáticas específicas no interior dos conselhos, a escolha do presidente do conselho se eleito em plenária por todos os membros do conselho ou se é indicado pelo governo e por fim, se o estado abre mão do controle do poder de agenda dos conselhos em favor da sociedade civil, deixando para os representantes desta a prerrogativa da presidência dos mesmos, retratam maior autonomia e poder de decisão destes. O funcionamento das câmaras técnicas específicas permite que os conselheiros passem da condição de meros homologadores de propostas do governo para a de elaboradores de políticas específicas, pela elaboração de projetos nesse sentido. Indica, por conseguinte, maior poder deliberativo, assim como a prestação de contas referentes a essas políticas especificas indica maior controle da sociedade civil sobre seus recursos. Ao passo que limitar as atividades dos conselhos a simples encaminhamento de documentos significa muito baixo poder decisório. Nesse sentido, Pernambuco se destaca como o estado nordestino cujas instituições participativas são mais deliberativas que a de outros estados da mesma região. As câmaras técnicas estão presentes em todos os conselhos de saúde pesquisados pelo estudo acima nas cidades do Estado de Pernambuco.

Analisando os vínculos entre participação, efetividade deliberativa e distributiva nos arranjos institucionais no Brasil, pós-1988 e focando empiricamente tais questões em experiências de participação no Estado de Pernambuco, Coelho (2007), assegura que a participação nos municípios desse Estado tem sua definição sob a influência das características locais, em que a provisão de bens e serviços públicos obedece às tendências programáticas, se participativas ou não, dos

partidos políticos e lideranças locais que assumem seus governos. As experiências participativas no Brasil, segundo o autor, ainda padecem de um baixo grau de institucionalidade, marcado por níveis muito diferenciados de engajamento das instituições governamentais, não-governamentais e atores sociais. Os fatores condicionantes dessa variação são tanto de ordem histórico cultural, social e político-institucional, de cada localidade, quanto relacionado ao próprio desenho institucional das políticas públicas. Nesse caso, de alguma forma as características regionais são fatores relevantes, porém os mais determinantes são as especificidades locais. Desenho institucional e tradição cívica local são variáveis tomadas pelos pesquisadores da teoria democrática como fatores fundamentais para explicar os diferentes níveis de participação e a eficácia desta. A definição do desenho institucional pertence ao campo da forte influência dos partidos e lideranças políticas, especialmente no âmbito de sua implementação, na medida em que a coordenação desse processo se faz mediante o aparato das instituições de governo. A cultura associativa materializada na participação popular que caracteriza a tradição cívica local se encarrega do controle social desse processo.

Desse modo, a decisão de assumir uma política participativa ou não, com a qual se deparam os partidos políticos que assumem a gestão pública nos municípios, de acordo com a hipótese defendida pelo mesmo autor, está na dependência de um conjunto de fatores, sendo alguns mais determinantes que outros, tais como: se alta, média ou baixa o grau de competitividade política local, se é progressista ou não a tendência programática do partido governista, se o gestor público possui ou não uma trajetória de participação em movimentos sociais ou de implementação de políticas participativas e se a rede associativa local é muito atuante, pouco atuante ou moderadamente atuante. A depender da especificidade do jogo político local um determinado fator adquire maior relevância em relação aos outros. Ademais, os dados desse mesmo estudo indicam que a rede associativa local, por si só, não garante a tomada de decisão dos governantes a favor da participação, bem como não há uma correlação direta entre o aumento do número de instituições participativas e a tendência progressista do conteúdo programático do partido que assume o governo.

Ainda nos estudos sobre a região Nordeste, a Bahia é apresentada como o Estado que mais se aproxima do considerado padrão nordestino de sociabilidade, no qual a modernização é rejeitada, as estruturas oligárquicas são fortalecidas e as

relações são sustentadas em obediência a um padrão hierárquico entre os indivíduos (AVRITZER, 2007; MOTA, 2007) O papel das oligarquias regionais e o baixo peso político da cidade do Salvador na organização política do Estado imprime singularidade à Bahia em relação a outros estados da mesma região. A prevalência de uma ordem oligárquica mais unitária constituída nos anos 1920 até a década de 1970, a partir da qual se instalou um processo de modernização conservadora capitaneado pelo que se convencionou denominar de “carlismo” diferencia significativamente a Bahia dos outros estados do Nordeste. É com esse propósito que Áurea Mota assegura que

[...] as forças tradicionais fortemente presentes na política baiana criaram constrangimentos para a disseminação de um associativismo reivindicativo, questionador do status quo. O fato de Antônio Carlos Magalhães ter conseguido sua projeção nacional e sustentação local durante a ditadura militar deve ter criado condições propicias para que ele, através de sua forma de exercício político, aprendesse bem como controlar as associações habilitadas e impedir a disseminação dos tipos não bem quistos (MOTA, 2007, p. 55-56).

Enquanto o Estado de Pernambuco, como visto acima, se destaca pela força do associativismo relacionado à geração de políticas públicas, a Bahia aparece muito bem localizada quanto ao número de instituições associativas, no entanto, principalmente em Salvador, o associativismo étnico é mais marcante do que o associativismo que se vincula à reivindicação de políticas públicas com tendências universalistas, como o relacionado às questões de gênero, às questões ambientais, de moradia, etc. O associativismo de Salvador que numericamente se destaca, leva à conclusão de que essa quantidade não se reverte em qualidade da participação para melhorar a intervenção da sociedade civil no que se refere às políticas públicas. Merece, no entanto, diferenciar Salvador de cidades como Alagoinhas e Vitória da Conquista. Estas duas últimas ligadas à presença de administrações do Partido dos Trabalhadores (PT), que vêm empreendendo esforços para a organização das instituições de participação e buscando melhorar a performance das políticas participativas, apresentam aumentos recentes importantes no número dessas instituições que parecem traduzir-se também no incremento de estoques de bens públicos (AVRITZER, 2007; MOTA, 2007).

No que se refere às atividades de decisão dos conselhos pesquisados por Faria (2007) quanto ao grau do poder deliberativo dos mesmos, como visto acima, o

encaminhamento de documentos se destaca como a principal atividade nos conselhos das cidades da Bahia, nas quais o gestor não parece apoiar a presença de instituições participativas, como é o caso do conselho de saúde de Salvador. Nos municípios de Vitória da Conquista e Alagoinhas, nos quais vem ocorrendo recentemente um incremento das instituições participativas incentivadas por seus governos, a prestação de contas aparece como a principal decisão dos conselhos nesses municípios. Esses dados denotam que a tradição participativa anterior, como o caso do Estado de Pernambuco, joga papel importante para que suas instituições participativas se tornem mais deliberativas, independente do partido do gestor, acentuando a lógica de participação e democratização do poder local. Na Bahia, a ausência dessa tradição, principalmente sob a influência da política do “carlismo” que tem se colocado fortemente contra a participação social, implica em atividades internas pouco deliberativas em suas instituições participativas que parecem produzir decisões que não promovem impacto nas áreas de suas políticas públicas. As evidências de práticas deliberativas mais democratizantes em várias cidades pesquisadas no Nordeste, com maior número de instituições participativas, traduzem o impacto dessas instituições na administração pública. A grande exceção, nesse caso, é a cidade do Salvador já que aqui não se encontrou práticas deliberativas significativas. O que os dados analisados por Avritzer (2007) parecem indicar é que essas instituições participativas ainda não conseguiram dar o salto em favor do maior acesso a bens públicos, ainda que seu funcionamento crie tal possibilidade.

É nesse cenário de tradição não participativa que os/as idosos/as em Salvador se movimentam para legitimar o lugar do qual possam se fazer ouvir ao lado de outros tantos demandantes de direitos específicos de cidadania. O movimento dos aposentados/as e idosos/as na capital baiana vem, ao lado de outros movimentos da sociedade civil organizada, enfrentado as dificuldades de uma ruptura com a tradição oligárquica não participativa no Estado. Tal movimento se empenha na criação de uma nova cultura pautada nos princípios da participação democrática, como estratégia para garantir a expressão das diferenças de idade/geração. A criação do Fórum permanente em Defesa do Idoso, em Salvador, está embasada nessa perspectiva. Assim, na Bahia, o Fórum atua diretamente no processo político, com participação ativa nas instâncias responsáveis pela implementação de políticas públicas, para que se efetivem as definições do Estatuto do Idoso, como mostrarei adiante com ilustração etnográfica.

A correlação de forças entre projetos diferentes ainda é desfavorável à participação democrática. A superação dessa situação contraditória requer o enfrentamento dos grandes desafios que se apresentam a essa perspectiva para viabilizar as transformações demandadas desde as mobilizações pela redemocratização da América Latina a partir da década de 1970. Esses desafios se impuseram justamente no momento em que se abria nos países dessa região a perspectiva para as políticas de afirmação de um modelo político de maior transferência de renda, mediante a distribuição estatal. Tratarei no próximo capítulo sobre a tensão entre projetos divergentes veiculada no bojo da crise do Estado de Bem-Estar Social.

4 A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA EM TEMPOS DE ESTADO