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4 A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA EM TEMPOS DE ESTADO MÍNIMO

4.1 A QUESTÃO SOCIAL PELA ÓTICA NEOLIBERAL

Sobre a “Era de ouro”, denominação dada por Hobsbawm (1995) para caracterizar o período histórico marcado por um sistema generoso de previdência e seguridade social, dentre outros aspectos, se abateu a profunda crise e instabilidade pontuados acima. A esse cenário de ruptura dos fundamentos de base keynesiana, que sustentados em novos padrões políticos e econômicos alimentaram o contexto do

quase pleno emprego, dos altos salários e do Estado de Bem-Estar Social, seguiu-se a emergência do modelo neoliberal da economia que se opunha à intervenção do Estado na área econômica, propugnando o livre mercado de forma irrestrita.

Nesse modelo não havia lugar para o Estado de Bem-Estar Social, que passou a ser severamente questionado nos países desenvolvidos tampouco poderia seguir avançando o que se conquistara de direitos sociais na América Latina. No contexto dessa crise do Estado de Bem-estar Social é que essa perspectiva antidemocrática excludente do ideário neoliberal se instala como alternativa de desenvolvimento e superação da Crise na América Latina na década de 1980 e mais tardiamente no Brasil, no inicio dos anos 1990. Levando em conta tal cenário, a discussão sobre o processo de construção democrática nessa região não pode omitir a problemática relacionada à presença de diferentes projetos políticos tanto no interior da sociedade civil quanto da sociedade política – o Estado especialmente – em cujos espaços desenvolve um intricado jogo de forças em disputa, envolvendo uma grande variedade de atores nas mais diversas arenas. Mas o grande desafio no curso da construção das novas experiências democráticas em grande parte do continente Sul Americano se apresenta, nos termos de Dagnino (2002) e Dagnino, Olvera e Panfichi (2006), no âmbito de uma “confluência perversa” no campo da disputa política polarizada entre dois projetos de desenvolvimento. As propostas democráticas participativas gestadas no período de resistência aos regimes autoritários continuam fomentando esse cenário de luta pelo aprofundamento democrático e se embatem com as propostas neoliberais, que, obedecendo a diferentes tempos e amplitudes, se instalaram na região. A perversidade da confluência entre os dois projetos fica por conta do discurso comum que ambos apresentam para apontar caminhos opostos e, mesmo, antagônicos. A homogeneidade das referências – o apelo a uma sociedade civil participativa e propositiva – sustentado num mesmo vocabulário – a construção da cidadania e a participação – esconde as diferenças e antagonismos que encerram seus significados. E é esse mecanismo que tece a rede que canaliza e assenta as concepções neoliberais nos mais imprevistos espaços sociais. Reside aí o caráter perverso dessa disputa, visto que no mínimo desvio semântico se confunde com o adversário, o que tensiona demasiadamente as práticas políticas.

Para explicitar essa disputa nesse contexto do Estado pós-ajuste neoliberal Tatagiba (2006) utiliza o termo “democracia gerencial” para distinguir as dimensões

concorrentes entre alguns tipos de experiências nominadas como gestão participativa e dois outros modelos de democracia: a democracia participativa e a elitista. Nesse cenário, no qual o tema do conflito se dilui na retórica da eficiência e eficácia das políticas, busca-se neutralizar, no discurso técnico da gerência moderna, o tom fortemente contestador da ação da sociedade organizada que se apresenta como alternativa de mobilização capaz de confrontar a redução do papel do Estado no que diz respeito ao atendimento público dos mais vulneráveis.

Esse modo gerencial de participação veio, no bojo do processo de globalização, atender às determinações do projeto político neoliberal que, de acordo com Santos (2002), na América Latina, paradoxalmente, vem dando ênfase à democracia local e variações da forma democrática no interior do Estado nacional numa oposição silenciosa, visto que suas radicais diferenças ficam encobertas sob um discurso comum. A correlação de forças do projeto democrático participativo e o grau de sua consolidação afeta as condições da implementação do neoliberalismo, definindo as feições que ele adota em cada país. A ideia da reorganização da economia sob o primado do mercado é adotada também como medida de organização da vida social e política, sob o pretexto da modernização e maior eficiência. A sociedade civil é convocada a participar, na medida em que pode oferecer informações qualificadas sobre as demandas sociais e dispor de organizações para assumir com eficiência a execução das políticas públicas destinadas a atender tais demandas. Esse é o sentido do discurso sobre a participação da sociedade civil, concebida, não em seu conjunto, mas envolvendo apenas certos setores considerados aptos para desempenhar essas funções (BORÓN, 1995; RAMOS, 2009; SOARES, 2002, 1999).

Nos termos de Tatagiba (2006), o potencial de impulsos criativos e inovadores da pluralidade dos atores sociais constitutivos da sociedade civil é exaltado como capaz de superar os padrões tradicionais de execução de políticas. A defesa das diferenças está centrada nas palavras-chave, articulação e sinergia, enquanto possibilidade de interação de atores, voltado à solução de um campo limitado de problemas. Nesses dois aspectos não haveria diferença entre o modelo gerencial e o modelo democrático de participação se não fosse pela prática de simples processo de agregação das diferenças por parte daquele, ao invés de um processo de diálogo e partilha de significados mediante o confronto de valores e representações de interesses. Ademais, pela prática da definição do problema e das formas de

intervenção sem se fazer acompanhar de um debate prévio e informado acerca das alternativas postas, com base nas quais se estabelecem os acordos ou a mobilização para a ação conjunta, ainda que a pressão dos grupos convidados à participação, principalmente, possa fazer tal prática vir a ocorrer. Nessa perspectiva gerencial de participação a ênfase está na contribuição que cada qual se dispõe a dar para solucionar um problema que depende da solidariedade coletiva, não levando em conta a definição compartilhada do que deverá ser considerado interesse público, nem a definição política do sistema, ou dos objetivos que devem ser coletivamente perseguidos. O foco é a emergência da ação para minimizar o impacto dos problemas do aqui e agora. Frente a esse sentimento de urgência não cabe o tempo para confrontar as diferentes concepções e valores com base num padrão de interação de respeito com o “outro”, na tentativa de decisão compartilhada. “Reunir esforços” para otimizar a ação individual e desse modo tornar eficiente todo o sistema é a lógica que orienta a acepção do modelo gerencial de participação.

Com a visão neoliberal implementada na América Latina, a noção de “sociedade civil” passou a ser entendida cada vez mais como sinônimo de “Terceiro Setor”, já referido acima. Identificada com as Organizações Não-Gvernamentais e com as Fundações Empresariais empenhadas em desenvolver uma nova forma de filantropia, a expressão “sociedade civil” vem, cada vez menos, designando os movimentos sociais e organizações dos/as trabalhadores/as. Estas vêm sendo evitadas pelos governos, temendo a politização da interlocução com esses segmentos, visto que o interessante é minimizar os espaços de conflito, como já referido, possibilidade que as parcerias confiáveis como as ONGs e o setor privado oferecem ao responder efetivamente suas exigências (DAGNINO, OLVERA E PANFICHI, 2006; RAICHELIS, 2005; PAOLI, 2002).

A disputa dos significados relacionados à democracia em construção é enfatizada também por Tatagiba (2006), ao afirmar que sua natureza estrutura-se mediante fundamentos distintos, mas que convivem lado a lado e nos quais se ancoram a legitimação das práticas participativas. A forma diferenciada de adesão ao paradigma generalizado da “participação da sociedade civil” demarca o campo que diferencia os vários projetos políticos em disputa. De acordo com essa autora, na constituição da democracia gerencial há uma conjunção de elementos próprios aos modelos da democracia participativa e da democracia elitista. A ampliação e efetivação necessária do diálogo entre governo e sociedade civil em espaços

institucionalizados, enquanto imposição das condições objetivas dos fatos sociais modernos é uma convergência de interpretação feita tanto pelo modelo democrático participativo quanto pela democracia gerencial. Do mesmo modo, ambos os modelos convergem na defesa da participação, não apenas como desejável, mas como imprescindível ao sucesso das políticas. Por outro lado, a estruturação da democracia gerencial se informa no modelo democrático elitista quando centra na negação da dimensão política do esforço dialógico no que tange à conformação de uma estrutura de comunicação e interação entre a sociedade e as instituições. Do ponto de vista dos teóricos liberais, o escopo da ação política se afasta da discussão pública para se restringir ao âmbito exclusivo das questões de Estado. A participação no modelo gerencial reinterpreta essa exclusão e negação da política. Assim, a despolitização do debate público se faz mediante a abertura de canais institucionalizados de participação, na medida em que esse modelo insere em uma “nova” interpretação os princípios da noção de espaço publico, nos quais se assentam suas expectativas quanto às mudanças “democráticas” (TATAGIBA, 2006).

A concepção de participação no projeto neoliberal de acordo também com Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) está ligada às necessidades de redução do Estado, fundamento basilar do ajuste estrutural desse modelo, mediante a transferência de suas responsabilidades sociais para a sociedade civil e o setor privado. Essa transferência das responsabilidades, no entanto, não significa transferência do poder de decisão para essas organizações sociais como as ONGs, por exemplo, visto que a participação delas se restringe à execução eficiente das políticas sociais, cuja definição está sob o controle exclusivo do Estado. A participação, portanto, está centrada na gestão e implementação dessas políticas, não envolvendo seus critérios decisórios. Outra ideia de que o projeto neoliberal se apropria e redefine é a de solidariedade, que passa aqui a ser invocada para responsabilizar a sociedade quanto ao combate à pobreza e às carências como compensação da retração do Estado e não no sentido político e coletivo, como é usado em outros projetos. A expressão “participação solidária” aparece como eixo central nesse formato de participação, compondo com o “trabalho voluntário” e a “responsabilidade social” o apelo aos indivíduos, às empresas e ao mercado para, numa perspectiva individualista e privatista, assumirem as funções sociais das quais o Estado se ausentou (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006; PAOLI, 2002; RAICHELIS, 2005).

A noção de cidadania também é ressignificada conforme os princípios orientadores da perspectiva neoliberal, retirando-lhe, justamente, a força de sua concepção – a ideia de universalização de direitos. Sobre a questão da ameaça dos direitos conquistados durante vários séculos de lutas sociais, Bourdieu (1998, p. 81) assegura que se observa no conjunto da Europa e em vários outros lugares, movimentos contra uma política que assume feições diferentes segundo cada país e cada domínio, mas que sempre se inspira na mesma intenção de “[...] destruir as conquistas sociais, que estão, digam o que disserem, entre as mais altas conquistas da civilização; conquistas que se deveria universalizar, estender a todo o universo, mundializar” sem questionamentos. São vários os mecanismos utilizados na implementação das políticas neoliberais que atestam o esvaziamento desse conceito de universalização dos direitos sociais. De um lado, estão sendo eliminados esses direitos que a duras lutas se consolidaram no incipiente Estado de Bem-Estar da América Latina, sob a justificativa de que impedem o livre avanço do mercado rumo à modernização. De outro, a estandardização de programas para viabilizar políticas emergenciais focalizadas em setores mais vulnerabilizados, em permanente situação de risco, toma o lugar da concepção dos direitos universais como fundamento para se alcançar a igualdade. Essa ideia de focalizar a oferta dos serviços públicos mínimos e reduzidos na população de baixa renda, em substituição à universalização dos direitos, como pretexto para melhorar a distribuição dos gastos sociais, surge como alternativa, do ponto de vista neoliberal, para solucionar os graves problemas de imensos contingentes excluídos em decorrência da investida do neoliberalismo contra os direitos sociais (BOITO, 1999; DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006; IVO, 2008; PAOLI, 2002, dentre outros). No Brasil, nos termos de Ivo (2008, p. 150), opera-se, nesse contexto, “[...] uma reconversão do tratamento da ‘questão social’: de uma política universalista, de caráter redistributivo mais amplo, com vistas à produção da justiça social para privilegiarem-se ações estratégicas e focalizadas sobre seus ‘efeitos’ [...]”. Fomenta, ainda, a noção de cidadania vinculada à ideia de caridade, ou solidariedade para com os pobres. Um valor moral que orienta as ações filantrópicas e voluntárias das organizações da sociedade civil, na ausência do Estado, identificando seus beneficiários, não como cidadãos dotados de direito a ter direitos, mas indivíduos “carentes” a expensas da caridade pública ou privada, visto que a ideia do tornar-se cidadão passou a ser entendido como a capacidade de se inserir no mercado como

consumidor e como produtor (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006; IVO, 2008; PAOLI, 2002). Aqueles/as que estão fora desse circuito e dependem da assistência social estrita perdem o status de cidadão.

No contexto da implementação das políticas neoliberais na América Latina e de acordo com sua lógica uma parcela do empresariado brasileiro, confrontada com o aumento das desigualdades sociais e da pobreza no país, lança-se ativamente num movimento de redefinição do sentido e da forma de operar da velha filantropia, pretendendo reduzir as carências mais básicas de certos setores mais pobres da população. Maria Célia Paoli (2002), discutindo os enredamentos da cidadania no Brasil no cenário da emergência desse ativismo empresarial, destaca que o modelo econômico neoliberal impeliu os governos, nos anos 90, a deixarem de investir nas obrigações públicas de proteção e garantia de direitos sociais, transferindo essa responsabilidade às organizações da sociedade civil. De fato, surge então o apelo ao ativismo social voluntário da população que pelas organizações não- governamentais profissionalizadas e das Fundações Empresariais sustentou a ideia e a prática de um ativismo civil, no qual o altruísmo de um indivíduo, uma organização ou uma empresa passou a ser reivindicado como expressão de solidariedade e sinônimo de cidadania. Assim, o termo “solidariedade” perde seu sentido político coletivo e o ativismo civil voltado para a solidariedade social desvia o sentido do ativismo político dedicado à defesa da cidadania e justiça social, visto que não apresenta nenhuma contradição insuperável em relação aos arranjos neoliberais. Ao contrário, opera uma relação de complementaridade a esses arranjos, mostrando a face mais conservadora da filantropia empresarial, na medida em que mediante a solidariedade privada retira da arena política e pública os conflitos distributivos inerentes à busca da garantia da cidadania e redução das desigualdades. Desse modo, concordo com Paoli (2002) quando considera que o ativismo empresarial não pode ser tomado como exemplo de uma ação democrática participativa, um movimento contra-hegemônico às políticas e práticas neoliberais.

Diante da crescente deterioração da vida coletiva, ainda de acordo com Paoli (2002) as questões da infância, da família e da educação passaram a ser adotadas como prioridades da responsabilidade social das empresas, tendo em vista a importância de prevenir o futuro e atender as demandas de reinserção social, sem, contudo questionar, pelo contrário, ocultando as políticas que efetivamente aprofundam a exclusão social e desorganizam politicamente a sociedade brasileira.

Nesse sentido, o ativismo empresarial legitima o discurso governamental de desresponsabilização com as políticas sociais pela criação de um espaço “público não-estatal” que passa a assumir a proteção dos excluídos, contingente cada vez mais crescente na paisagem brasileira, vítimas do desemprego, da baixa renda e da falta de acesso às oportunidades. O alcance político da noção de bens públicos, nessa acepção da ação filantrópica, está diretamente ligado à eficiência dos procedimentos privados de gestão que seleciona as ações, conforme os interesses privados de financiamento, desvinculado da relação pública ampliada entre necessidades e direitos. Ademais, nessa dinâmica a figura central não é o cidadão participativo, designado como sujeito de direito, mas beneficiários passivos que comparecem na condição de mendicantes de favores e generosidades de uma forma nova de caridade marcada pela excelência dos programas adotados.

As ações filantrópicas dispensam o amplo debate público, gerador de criatividades antagônicas e dialógicas, próprio do processo democrático de decisão pública que envolve a distribuição de bens materiais e simbólicos de uma sociedade. O protagonismo popular, que mediante a linguagem do conflito vinha participando com o mesmo status de cidadão nas decisões de interesse comum, foi se invisibilizando na trama que o substituiu pelas funções especializadas das ONGs e da filantropia empresarial que cada vez mais se fazem representantes e mediadoras das demandas populares junto ao poder público. Por essa via, o anseio de autonomia dos movimentos sociais foi gradativamente se conformando nas organizações públicas não-estatais, inserido na dimensão do chamado terceiro setor em expansão. Configura-se, assim, um outro modelo de atenção da questão social que apela para outra relação e lhe confere capacidade política para concretizá-la – o ativismo civil voluntário com competências descentralizadas para o exercício em localidades específicas. Concretiza-se a passagem para uma sociedade centrada na ação solidária privada que se contrapõe ao modelo de organização social referenciado nos direitos fundamentados na solidariedade coletiva. Fala-se até na solidariedade consigo mesmo, como criticado por Britto da Motta (2003). Tanto governos quanto empresários se empenham na busca de formas legítimas para desmontar as garantias sociais de direitos universais, construindo mecanismos seletivos de acesso a elas. Nesse esforço de legitimidade é que apropriam a ideia original no âmbito dos movimentos sociais da década de 1980 – a participação de novos atores na solução dos problemas sociais – e lhe confere uma versão

diferente, centrada na escolha daqueles que devem ser integrados e no rígido controle de quem não se insere nessa parcela da população. Uma operação de franca negação dos direitos universais que se assenta no discurso da “eficiência” da gestão empresarial agora empenhada em gastar bem os recursos sociais, inclusive os governamentais. Por essa lógica, a noção de distribuição dos recursos sociais, decidida aleatória e privadamente sob a “garantia” da eficácia da gestão, toma o lugar da ideia de deliberação participativa ampliada sobre os bens públicos. Assim, essas praticas legitimam o apagamento da referência pública e política da luta pela redução das desigualdades sociais decorrentes das injustiças sociais (PAOLI, 2002).

4.2 REFORMAS ESTRUTURAIS DÃO OUTRO SIGNIFICADO À SEGURIDADE