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O perfil do empresariado brasileiro

2.1 Empreendedorismo e o empresariado brasileiro

2.1.3 O perfil do empresariado brasileiro

Em busca de capital para porem suas ideias no mercado, os jovens empreendedores das startups brasileiras parecem mais encantados com os "acordes das trombetas" do anjos-investidores do que dispostos a ouvirem suas próprias vozes. Quantos estes jovens despertarão para a necessidade de uma aliança setorial, como proferida por Cardoso (1964)?

Os tradicionais industriais são exemplos aos inovadores marotos. As crises políticas e econômicas que o Brasil enfrenta desde o fim de 2014 levou empresários e representantes dos trabalhadores a lançarem, durante o mês de abril de 2015, em São Paulo, um movimento visando a um reforço nas políticas públicas para o setor industrial. Batizado de Coalizão Indústria - Trabalho para a Competitividade e o

Desenvolvimento, 42 entidades de classe e quatro centrais sindicais entoavam em

uma só voz suas demandas.Entre as centrais que compõem a coalizão estão a Força Sindical, a Central Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB) e a União Geral dos Trabalhadores (UGT). O Sindicato dos Metalúrgicos da Região do ABC, ligado à Central Única dos Trabalhadores (CUT), também assina o manifesto. De acordo com

os organizadores, as entidades empresariais que formam o grupo representam 50% do faturamento da indústria de transformação e as entidades sindicais reúnem 4,5 milhões de trabalhadores (REVISTA EXAME, 2015).

Segundo Marco Polo de Mello Lopes, presidente executivo do Instituto Aço Brasil (IABr), que representa as mais importantes siderúrgicas do país - e que participa da coalizão ao lado de entidades industriais produtoras de máquinas e equipamentos e do setor têxtil -, a balança comercial da indústria de transformação teve déficit de US$ 206 bilhões de 2008 a 2014, ante superávit de US$ 148 bilhões de 2000 a 2007. "Estamos falando de uma perda acumulada no período de US$ 354 bilhões (cerca de R$ 800 bilhões). É um massacre da indústria de transformação", destacou Lopes.

A participação da indústria de transformação no PIB, que na década de 1980 era de 35% despencou para 12% em 2014. Neste ato, os empresários ressaltaram números segundo os quais a participação da indústria de transformação brasileira no PIB caiu de 35% (na década de 1980) para 12% atualmente. O empresário Jorge Gerdau Johannpeter, um dos mais respeitados empresários brasileiros e ex-integrante do Governo da presidenta Dilma Rousseff, uniu-se ao grupo de coalizão e se declarou "emocionado", declarando que a intenção do grupo é "convencer" o Executivo e o Legislativo de que a indústria de transformação do país "precisa de igualdade competitiva, para que volte a ter a posição que já teve". "Só esse conjunto pode fazer com que alcancemos uma situação competitiva para nossas atividades industriais", complementa o presidente do conselho da Gerdau (REDE BRASIL ATUAL, 2015).

Publicada na forma de livro em 1964, a tese de livre-docência de Fernando Henrique Cardoso, Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil, constitui uma das contribuições sociológicas pioneiras para compreensão da especificidade da ação econômica inovadora em contextos de economias capitalistas periféricas e/ou subdesenvolvidas. Compreender a participação dos empreendedores industriais no desenvolvimento econômico do Brasil é o tema central da obra, tomando por base não os atributos individuais necessários ao agente empreendedor, mas as condições sociais estruturais que esabelecem as possibilidades abertas à ação empreendedora (CARDOSO, 1964, p. 8).

Partindo da análises clássicas, sobretudo de Schumpeter (1988), que distinguem o capitalista do empreendedor e atribuem a este último a função dinâmica

e inovadora do desenvolvimento econômico, Cardoso (1964) apresenta o que seria a caracterização típica dos empreendedores: um tipo especial de pessoa que teria a capacidade de liderar a ação econômica inovadora em termos de novas combinações entre meios de produção e de crédito (CARDOSO, 1964, p. 19-21); e, além disso, capazes de imprimir a continuidade efetiva das novas combinações econômicas implantadas (CARDOSO, 1964, p. 24). Todavia, em que pese a burocratização da empresa na fase monopolista do capitalismo, a empresa, e não o empreendedor, acaba por se tornar o sujeito do processo econômico capaz de coordenar os processos multidimensionais que acarretam a inovação. Nesse sentido, inovar significa a capacidade de controlar o conjunto da empresa como no nível da ordem econômica e da ordem social global, ou seja, “ser capaz de alçar-se no nível do pensamento planificado” (CARDOSO, 1964, p. 26). Por essa mudança, os dirigentes econômicos com capacidade de inovar são aqueles localizados na intersecção entre a empresa e as demais instituições sociais com que ela interage, capazes de influir na política econômica “[...] visando assegurar a prosperidade capitalista em geral e reservar a maior porção dos contratos e privilégios governamentais para sua organização” (CARDOSO, 1964, p. 39-40).

O problema para Cardoso reside justamente nos esquemas abstratos de análise que se debruçam sobre o processo de desenvolvimento e seus atores preferenciais, mas que passam ao largo das singularidades históricas que redefinem a categoria social de empreendedor nas economias subdesenvolvidas (CARDOSO, 1964, p. 41-42). Para explicar o processo de formação da ordem capitalista no Brasil pelo prisma da constituição da camada empresarial, Cardoso pretende compreender a ação empreendedora como resultado de uma estrutura determinada do mercado e da sociedade e, ao mesmo tempo, como variável que interfere na gênese deste mesmo mercado e sociedade (CARDOSO, 1964, p. 44). Em outros termos, o problema sociológico sobre o papel dos empreendedores no desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos é “[...] por um lado, se 'burguesia' e 'desenvolvimento' relacionam-se como se fossem um grupo social e sua raison d'être. Por outro lado, […] se esta relação pode instaurar-se no próprio circuito de crescimento econômico nos quadros do mercado colonial”, de exportação de produtos primários e importação de manufaturados (CARDOSO, 1964, p. 74). Em suma, os condicionantes estruturais da sociedade limitam e definem as formas possíveis de

comportamento econômico inovador (CARDOSO, 1964, p. 93). No entanto, qual a singularidade característica do nosso empresariado brasileiro?

De acordo com Cardoso, o padrão de controle mais difundido entre os empresários brasileiros é aquele exercido diretamente pelo proprietário, a chamada

gestão familiar da empresa. Tomando esse tipo de gestão como referência, pretende-

se verificar como os empresários brasileiros se adaptam às condições econômicas instáveis e tentam construir formas de gestão que possibilitem a transição do padrão tradicional para um padrão moderno de controle administrativo (CARDOSO, 1964, p. 96). A esse respeito, duas tendências se confrontam: por um lado, a tendência de quebra do controle familiar pela complexificação das operações financeiras e consequente criação de sociedades anônimas, o aumento da participação das organizações estrangeiras na economia brasileira e de empresas de economia mista (CARDOSO, 1964, p. 101-102); por outro lado, temos a resistência da gestão familiar, ligada às condições peculiares do processo de industrialização do Brasil. Não se trata de atraso cultural ou de mentalidade empresarial arcaica, mas antes de condições objetivas do mercado e da sociedade brasileira, pouco propícios à racionalização econômica. Dois fatores são particularmente limitadores do planejamento e cálculo econômico: as flutuações da oferta e procura em um mercado de concorrência imperfeita e, somado a isso, o papel preponderante do Estado na política cambial (CARDOSO, 1964, p. 105). Ambas as medidas forçam as empresas a mudar rapidamente seus objetivos e planejamento:

Isto quer dizer que o grau escasso de previsibilidade econômica imposto pela conjuntura socioeconômica brasileira obriga os empresários a tomar decisões rápidas, guiadas mais pela ‘sensibilidade econômica’ do que pelo conhecimento técnico dos fatores que estão afetando a empresa. A delegação da autoridade e a racionalização das formas de controle pode resultar, nesta conjuntura, em perdas graves, que a ação pronta e ‘irracional’ (isto é, não controlada por meios técnicos) do chefe de empresa pode evitar (CARDOSO, 1964, p. 106).

Nesse contexto de constante incerteza e mudança, somente a tomada de decisões igualmente cambiante pode evitar maiores perdas aos empresários, o que, do ponto de vista das economias desenvolvidas, seria uma estratégia irracional. Não obstante, a conjuntura dos altos lucros e da concorrência relativamente frouxa do mercado brasileiro garantem a persistência desse padrão de controle e de decisão tradicional (CARDOSO, 1964, p. 106). Nesse sentido, ainda que a gestão familiar da

empresa tenha origem no patrimonialismo característico da economia agrária brasileira, a própria estrutura econômica brasileira o redefiniu, fazendo com que garantisse a sobrevivência das empresas nacionais (CARDOSO, 1964, p. 121).

Mesmo nesse contexto predominantemente tradicional de gestão empresarial, é preciso esabelecer elementos que permitam distinguir a rotina da inovação e, principalmente, “[...] os níveis em que pode ser pioneira a ação de industriais que trabalham em empresas antiquadas” (CARDOSO, 1964, p. 132). Esquematicamente, Cardoso (1964) constrói dois tipos de mentalidade empreendedora típicas que foram encontradas por meio da pesquisa, as quais designou como capitães de indústria e homens de empresa. Os capitães de indústria seriam caracterizados por “situações de trabalho” em que as condições precárias de produção são exploradas até o limite da irracionalidade e por um espírito de usura, de manobras de mercado que rendem altos lucros e a preocupação em tirar proveito das facilidades oficiais do Estado exclusivamente em benefício próprio (CARDOSO, 1964, p. 133-134). O polo decisivo da mentalidade econômica dos capitães de indústria diz respeito à valorização do trabalho e da poupança, que tornou o progresso técnico da produção com os próprios recursos (CARDOSO, 1964, p. 137-138). Já os homens de

empresa são caracterizados pela construção de situações sociais que permitem o

controle dos fatores fundamentais para a acumulação de capital, isto é, desde a metodização do trabalho, especialização da base tecnológica da produção, expectativa e planejamento de lucros a médio prazo, espírito aventureiro e defesa da concorrência. Dessa forma, ao contrário dos capitães de empresa, os homens de

empresa pretendem uma participação ativa nos problemas nacionais, “[...] visando

assegurar uma ordem social que permita a expansão da 'iniciativa privada'” (CARDOSO, 1964, p. 148), de modo que seus interesses como classe produtora se confundam com o interesse nacional.

Essas duas mentalidades, cada uma à sua maneira, são as que abrem caminho para a consolidação de uma mentalidade empresarial, ou seja, quando os empresários “[...] alcançam consciência da necessidade de 'estar à frente dos concorrentes' e esta consciência leva-os à prática de determinados tipos de ação econômica que garantem para suas empresas uma 'posição vantajosa' no mercado” (CARDOSO, 1964, p. 125). Essa é, portanto, a passagem concreta do “irracional” para o “racional”, por meio de tipos de ação empresarial estabelecidos pela situação do

mercado e do padrão societário brasileiro, conforme conclui o autor: “[...] na modernização da economia brasileira fez-se exatamente pelo aproveitamento e redefinição paulatina de formas tradicionais de comportamento econômico” (CARDOSO, 1964, p. 185).

O problema para Cardoso (1964) reside, em última análise, na possibilidade de a burguesia industrial agir enquanto classe social e exercer dominação política, analisando mais detidamente a sua formação como grupo e os dilemas de sua adesão ideológica a tendências tradicionais e modernizadoras. Os industriais brasileiros constituem uma camada social heterogênea e historicamente recente e, por essa razão, não reagem como grupo contra os problemas que os defrontam, de tal modo que essa situação dificulta “[...] a formação de uma ideologia industrial capaz de nortear a ação de todos em função de interesses comuns” (CARDOSO, 1964, p. 161). Reagem aos problemas dentro dos limites da tradição, reforçando a dominação tradicional e, consequentemente, exercem um efeito de

amortecimento na concretização dos interesses de classe (CARDOSO, 1964, p. 166).

Como contrabalanço dessa situação, Cardoso apresenta o surgimento incipiente de uma camada social de capitalistas e de uma nova ideologia, distante da ideologia tradicional, que redefine e reorganiza a ação política dos empresários de forma racional, por meio da aliança entre economia e política, misturando os interesses de classe com o interesse nacional (CARDOSO, 1964, p. 174). Enfim, conforme a conclusão de Cardoso, o dilema da burguesia industrial é resumido da seguinte maneira:

A situação peculiar da burguesia industrial na sociedade de massas em formação e a situação em que se encontra no processo de industrialização, fazem-na temerosa e incapaz de romper os vínculos com a situação de interesses tradicionalmente constituídos, isto é, com os grupos estrangeiros, com os grandes proprietários e com os comerciantes e banqueiros, a eles ligados. Não assumindo as responsabilidades políticas de classe economicamente dominante, a burguesia industrial torna-se em parte instrumento de dominação política dos grupos tradicionais. Com isso, cria, quiçá, a possibilidade que mais teme: de perder as chances históricas de exercício pleno da dominação de classe (CARDOSO, 1964, p. 180).

Continuamos paulatinos neste estágio cambiante entre o encanto “irracional” para o desencanto “racional”? Parece que pouco mudou, não nos quesitos tecnológicos, mas no cerne das características do empresariado problematizadas em Cardoso, mesmo em quase meio século após esta obra. Pelo menos na realidade dos jovens empresários que arriscam-se no mercado da inovação, combinando o novo

ousar das ideias com o velho freio dos modelos tradicionais. Levando a teoria ao campo, percebemos este feito amortecimento sugerido quando comparamos um ano depois de nossa primeira entrevista, em 2013, com uma das startups cearenses, um dos objetos desta dissertação. O retorno ao tradicional freou a ousadia de uma reinvenção, de um dos produtos da startups que analisamos. Esboçamos esta análise comparativa entorno ao nosso objeto de pesquisa, em maior detalhe, no capítulo 4.