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MORAIS

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Morsink chama-nos a atenção para o fato de:

Mesmo o leitor casual da Declaração Universal verá que existe uma similaridade de linguagem entre este documento das Nações Unidas de 1948 e as declarações clássicas do século XVIII. Essa similaridade é, especialmente, marcante no começo do documento.

A primeira consideração do Preâmbulo fala de "dignidade inerente" e de "direitos iguais e inalienáveis", ambas frases que recordam as formas de pensar do Iluminismo. A Declaração de Direitos de Virgínia de 1776 diz que "todos os homens são, por natureza, livres e independentes, e têm certos direitos inerentes", enquanto a Declaração Americana de Independência afirma que é "autoevidente que todos os homens são criados iguais" e "dotados pelo seu criador de certos direitos inalienáveis". A Declaração Francesa de 1789 usa da mesma linguagem, falando de direitos como "naturais, imprescritíveis, e inalienáveis".

Essas similaridades línguísticas no Preâmbulo criam uma presunção de que os autores da Declaração Universal tinham uma perspectiva iluminista dos direitos humanos ou dos direitos naturais como, de alguma forma, espalhados nos seres humanos simplesmente por virtude da própria humanidade deles e por nenhuma outra razão externa, como convenções sociais, atos de governos ou decisões parlamentares ou judiciais. Antes do final do processo de elaboração, o representante francês, René Cassin, confirmou essa suspeita, quando ele disse à AGNU que "em comum com a Declaração de 1789, a Declaração Universal de Direitos Humanos estava fundada nos princípios de liberdade, de igualdade e de fraternidade".

Mesmo os delegados comunistas, às vezes, enganavam-se, conforme ocorreu na proposta iugoslava que apoiava a prática de "estabelecer, como direitos inerentes em todo ser humano, o princípio da liberdade de associação sindical". Bem no

65 MORSINK, Johannes, The Universal Declaration of Human Rights : Origins , Drafting and Intent,

início dos procedimentos de elaboração, a delegação indiana submeteu sua versão de uma carta internacional, que começou com a seguinte frase: "Reconhecendo o fato de que as Nações Unidas foram estabelecidas com o propósito específico de valorizar os direitos do homem".

Essas citações fortalecem a presunção, criada pelo texto, de que há um tipo de conexão entre a Declaração Universal e o modo iluminista de pensar sobre a moralidade. Exploraremos tanto as diferenças quanto as semelhanças.

Uma das vantagens de considerar os direitos humanos como direitos naturais dados a nós pela Natureza de Deus ou pela Natureza é que os torna mais fácil de serem considerados como universais e, portanto, tidos por todas as pessoas. Inversamente, uma vez que os redatores não usaram, expressamente, nem a palavra ''natureza'' nem a frase ''natureza humana'' como a fundação dos direitos na Declaração, o rótulo e o título de ''direitos humanos'' encaixa-se no texto e nos debates de forma muito mais apropriada do que a designação clássica de direitos naturais. Essa nova frase sintetiza os mesmos pontos sem quaisquer bagagens metafísicas extras que vinham anexas às conversações de direitos naturais. Uma consequência dessa demoção da Natureza é que nós devemos abordar esses termos iluministas chaves, como inalienável, inerente e nascido, dentro do enquadramento da tradição racionalista ocidental. Os redatores da Declaração vieram de uma grande variedade de tradições ideológicas e filosóficas - enquanto a maioria via os direitos fundamentados na natureza humana - e eles não pensavam que os direitos estavam anexos a nenhuma característica particular ou conjunto de característica. Os críticos que interpretam as frases iluministas da abertura da Declaração de um modo essencialista, racionalista ou deísta abordam de maneira muito restrita a Declaração Universal.

A estrutura geral do Preâmbulo é pragmática, no sentido de que os direitos ali proclamados são meios que visam à obtenção da paz mundial e de relações amistosas entre os Estados, no entanto, as duas primeiras considerações põem limites nesses cálculos para a paz mundial e o bem-estar da humanidade, porque, nessas considerações preambulares, os direitos humanos são tratados como fins em si mesmos. A lição é a de que os direitos humanos não podem servir como meios para algo, ao menos que eles sejam pensados como fins em si mesmos, o que é como os redatores pensavam dos direitos humanos na maioria do tempo.

Apesar de termos importantes do Iluminismo, como "inalienável" e "inerente", terem sido usados esporadicamente nos debates, o primeiro considerando não

foi introduzido no texto da Declaração até muito tarde durante o processo de redação. Um Comitê sobre o Preâmbulo, composto de oficiais da Comissão de Direitos Humanos, propôs, pela primeira vez, as considerações na Terceira Sessão entre Maio e Junho de 1948. O Comitê era composto por Eleanor Roosevelt dos Estados Unidos (presidenta), P.C.Chang da China (vice-presidente), René Cassin da França (vice-presidente) e Charles Malik do Líbano (relator e secretário executivo). Todas as quatro delegações apoiavam (em graus variados) a perspectiva dos direitos humanos inerentes e, não nos deveria causar surpresa o fato dessas frases nunca terem sido seriamente questionadas, nem mesmo no Terceiro Comitê, que examinou tudo com um pente fino. Mesmo as delegações comunistas se esqueceram de votar contra ou de abster-se, pois, no Terceiro Comitê. essa primeira consideração preambular foi adotada unanimemente.

A doutrina da inerência que atribuímos aos redatores-autores conflita com a interpretação que Tore Lindholm dá ao artigo 1 da Declaração. Lindholm sabe, por certo, que a perspectiva da inerência é a forma mais natural de ler as frases de abertura da Declaração. Ele sugere que os "defensores da interpretação dos direitos naturais da Declaração" podem responder que qualquer doutrina moral ou legal pré-estatal ou pré- positivada de direitos humanos validos é uma doutrina de direito natural por definição. Enquanto isso não seja um chauvinismo cultural míope, a inerência é, diz Lindholm, "uma versão diluída de algo genuíno, de acordo com o qual os direitos naturais podem ser vistos como conclusões de um argumento, cujas premissas propõem aspectos pertinentes [...]da natureza humana".

Ao não trabalhar com essências e argumentos dedutivos, a doutrina da inerência simples que atribuímos aos redatores é, de fato, uma "versão diluída" do que supostamente seja uma coisa "real".

Os redatores compartilhavam com os seus predecessores iluministas a alegação crucial de que o Direito (positivo) não é, conforme Thomsom coloca, "uma condição necessária para se ter demandas (morais). Há alegações de que nós, no nosso mundo, somos incumbidos pela lei, mas que nós seriamos incumbidos da mesma forma, mesmo se não existisse lei para tanto". A DUDH1948 contém um bom número desses direitos morais. As pessoas têm direitos morais que restringem o comportamento dos outros e esses direitos são inerentes a elas, uma vez que eles não decorrem de atos alheios, como os de governos, de cortes, ou mesmo de convenções sociais. Os Redatores acreditavam que as pessoas já começavam suas vidas, possuindo certos direitos morais, o

direito à vida sendo apenas um entre eles.

A definição não tradicional ou não racionalista (e, portanto, minimalista) dos direitos inerentes como pré-estatais ou pré-positivos não deve cegar-nos à distinção crucial entre direitos legais e morais. Os redatores entendiam essa distinção e trabalharam com ela. As pressões do tempo e da Guerra Fria impediram a finalização e a adoção de um pacto em 1948. A maioria dos redatores viu essa não realização como um revés, mas, ao invés de desistir da ideia de uma carta de direitos, os autores seguiram em frente e proclamaram uma carta de direitos morais somente, na esperança de que a maquinaria de implementação legal seguisse em breve. Os discursos dos delegados deixam evidente esse posicionamento de que eles sentiam nenhum remorso sobre a proclamação de uma lista com apenas direitos morais. De fato, o Instituto Internacional de Direito tinha encorajado os diplomatas a fazerem dessa maneira.(gn)

Roosevelt acreditou, o tempo todo, que "a declaração não seria legalmente vinculante sobre os governos", o que é uma das razões do país dela querer uma mera declaração, mas ela argumentou, junto ao Terceiro Comitê, que essa falta de força legal "tornava ainda mais necessário redigir um preâmbulo que exercesse sobre os governos a maior força de persuasão em termos morais". Frede Castberg, o delegado da Noruega, também notou que a Declaração foi designada para "estabelecer padrões morais ao invés de obrigações legais". Corominas, o delegado argentino, seguiu a mesmo raciocínio ao comentar que a Declaração "envolvia somente obrigações morais, e deveria ser seguida por um documento que impusesse obrigações legais".

Mesmo Cassin, que frequentemente realçava que a Declaração era "uma interpretação categórica da Carta das Nações Unidas", admitiu que ela "não teria força jurídica coercitiva". E C.H. Wu, o delegado chinês na Primeira Sessão de Elaboração, "mantinha que a declaração poderia servir, somente, como um padrão moral em relação ao qual a humanidade aspira". Juliusz Katz-Suchy, o delegado polonês que se absteve da votação final, admitiu, momentos antes de tê-lo feito, que a Declaração tinha força moral. Ele disse que "a declaração do modo apresentado era somente uma expressão de princípios, com nenhuma provisão para implementação e apenas com valor moral"

A perspectiva de que a Declaração Universal de Direitos Humanos não tinha força coercitiva, mas apenas força moral era a opinião quase unânime das delegações envolvidas no processo de redação. Há uma tremenda força moral e filosófica nessa posição, e ela explica o porquê a Declaração tornou-se o referencial moral tanto no mundo

dos indivíduos quanto no dos Estados.

É precisamente o fato de esses direitos serem inerentes às pessoas, e não presente da história ou das circunstâncias, que eles podem ser usados como padrões os quais tanto a história quanto as circunstâncias poderão ser julgados. (gn)

1.7 - AS SETE ETAPAS DO PROCESSO DE ELABORAÇÃO

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