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2.2.4 FOME : VIOLAÇÃO DO ARTIGO 11 DO PIDESC Segundo o primeiro Relator Especial para o Direito à Alimentação, Jean

Ziegler122:

Entre todos os direitos do homem, o direito à alimentação é, certamente, aquele que é mais constantemente e mais massivamente violado em nosso planeta.

Segundo as estimativas da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO)123, o número de pessoas grave e permanentemente subalimentadas no planeta chegava, entre 2010-12, a 870 milhões. O número de pessoas famintas no mundo permanece inaceitavelmente alto. A vasta maioria vive em países em desenvolvimento, onde 850 milhões de pessoas, ou pouco menos de 15% da população, são estimadas estarem subnutridas. 60% de todas as pessoas subnutridas vivem em sete países: Bangladesh, China, República Democrática do Congo, Etiópia, Índia, Indonésia e Paquistão. 43% dessas pessoas famintas encontram-se na China e na Índia124.

O fenômeno da fome pode ser abordado de maneira simples125. A comida (ou o alimento), seja de origem vegetal ou animal (às vezes, mineral), é consumida pelos seres vivos com fins energéticos e nutricionais. Os elementos líquidos (como a água de origem mineral) - ou, dito de outra forma, as bebidas (consideradas alimento, quando são sopas, caldos etc) - são ingeridos com a mesma finalidade.Todos esses elementos, em conjunto, compõem o que se designa como alimentação.

Essa alimentação constitui a energia vital do homem. A unidade energética chamada reconstitutiva é a quilocaloria. Ela permite avaliar a quantidade de energia necessária ao corpo para se reconstituir. Uma quilocaloria contém mil calorias. Aportes energéticos insuficientes (subnutrição), uma carência de quilocaloria, provocam a fome e, depois, a morte. As necessidades calóricas variam em função da idade: setecentas calorias diárias para um lactente, mil para um bebê entre um e dois anos, 1.600 para uma

122 ZIEGLER, Jean. Destruição Massiva- Geopolítica da Fome. éditions du Seuil, Paris, 2011. p.19 123 FAO, WFP and IFAD. 2012. The State of Food Insecurity in the World 2012.

Economic growth is necessary but not sufficient to accelerate reduction of hunger and malnutrition. Rome, FAO. ISBN 978-92-5-107316-2

124 FAO, Cuaderno de Trabajo sobre el derecho a la alimentación.Evaluación del derecho a la

alimentación.2013.p.8.

criança de cinco anos. Quanto ao adulto, suas necessidades variam entre 2.000 e 2.700 calorias por dia, conforme o clima sob o qual vive e a natureza do trabalho que realiza. A Organização Mundial da Saúde (OMS) fixa em 2.200 calorias diárias o mínimo vital para um adulto. Abaixo desse mínimo, o adulto não consegue reproduzir satisfatoriamente a sua própria força vital.

Dolorosa é a morte pela fome. A agonia é longa e provoca sofrimentos insuportáveis. Ela destrói lentamente o corpo, mas também o psiquismo. A angústia, o desespero e um sentimento de pânico, de solidão e de abandono acompanham a decadência física.

A desnutrição severa e permanente provoca um sofrimento agudo e lancinante do corpo. Produz letargia e debilita, gradualmente, as capacidades mentais e motoras. Implica marginalização social, perda de autonomia econômica e, evidentemente, desemprego crônico pela incapacidade de executar um trabalho regular. Conduz inevitavelmente à morte.

A agonia provocada pela fome passa por cinco estágios.

Salvo raras exceções, um homem pode viver normalmente três minutos sem respirar, três dias sem beber e três semanas sem comer. Não mais. Então começa a agonia.

Entre crianças subalimentadas, a agonia se anuncia muito mais rapidamente. O corpo esgota primeiro as suas reservas de açúcar e depois as de gordura. As crianças entram num estado de letargia. Depressa perdem peso. Seu sistema imunitário colapsa. As diarréias aceleram a agonia. Parasitas bucais e infecções das vias respiratórias causam sofrimentos espantosos. Começa, então, a destruição da massa muscular. As crianças já não conseguem manter-se de pé. Como alguns pequenos animais, encolhem-se sobre si mesmas no chão. Seus braços pendem sem vida. Seus rostos assemelham-se àqueles dos idosos. Finalmente, sobrevém a morte.

No ser humano, os neurônios do cérebro formam-se entre zero e cinco anos. Se nesse lapso, a criança não receber uma alimentação adequada, suficiente e regular, ficará lesionada por toda a vida. Em contrapartida, um adulto que, atravessando o deserto do Saara, tenha sofrido uma pane em seu carro e, por isso, foi privado de alimentação por algum tempo, antes de ser salvo in extremis, poderá recuperar sem problema sua vida normal: uma "renutrição" administrada sob controle médico lhe permitirá restabelecer a totalidade de suas forças físicas e mentais. Vê-se, pois, que não é esse o caso de uma

criança de menos de cinco anos privada de alimento adequado e suficiente. Mesmo se, ulteriormente, ela desfrutar de condições milagrosamente favoráveis - que seu pai encontre trabalho, que seja adotada por uma família com recursos etc -, seu destino estará selado. Será uma crucificada de nascimento, uma lesionada cerebral por toda a vida. Nenhuma alimentação terapêutica poderá assegurar-lhe uma vida normal, satisfatória e digna. Num grande número de casos, a subalimentação provoca as chamadas doenças da fome: a noma, o kwashiorkor etc. Ademais, ela debilita perigosamente as defesas imunitárias das suas vítimas.

A maldição da fome prolonga-se biologicamente. A cada ano, milhões de mulheres subalimentadas dão à luz crianças condenadas desde o nascimento. Estas já são vítimas de carências antes mesmo do seu primeiro dia sobre a Terra. Durante a gravidez, a mão subalimentada transmite essa maldição à sua criança. A subalimentação fetal provoca invalidez definitiva, danos cerebrais e deficiências motoras. Uma mãe esfaimada não pode aleitar seu bebê, nem dispõe dos recursos necessários para comprar um sucedâneo lácteo. Nos países do Sul, 500.000 mulheres morrem, anualmente, no parto, a maioria por falta prolongada de alimentos durante a gravidez.

Romper com este ciclo intergeracional é extraordinariamente importante: não é só uma questão ética fundamental, mas também uma prioridade para todo governo que se preocupe com a futura capacidade intelectual e econômica de sua população126.

A fome é, pois, e de longe, a principal causa de morte e de desamparo em nosso planeta. (gn)

Para circunscrever melhor a geografia da fome127, a distribuição dessa destruição massiva sobre o planeta, é preciso, de início, recorrer a uma primeira distinção, qual se referem a ONU e suas agências especializadas: a "fome estrutural", de um lado, e, de outro, a "fome conjuntural".

A fome estrutural é própria das estruturas de produção insuficientemente desenvolvidas dos países do Sul. Ela é permanente, pouco espetacular e se reproduz biologicamente: a cada ano, milhões de mães subalimentadas dão à luz milhões de crianças deficientes. A fome estrutural significa destruição psíquica e física, aniquilação da dignidade, sofrimento sem fim.

126 EIDE, Asbjorn. E/CN.4/Sub.2/1999/12 - O direito a uma alimentação adequada e a não padecer de

fome.Estudo atualizado sobre o direito à alimentação apresentado pelo sr. Asbjorn Eide em cumprimento da decisão 1998/106 da Subcomissão de Prevenção de Discriminações e Proteção da Minorias.p.8.

A fome conjuntural, em troca, é altamente visível. Irrompe periodicamente nas telas da televisão. Ela se produz quando, repentinamente, uma catástrofe natural - gafanhotos, uma seca ou inundações assolam um região - ou uma guerra destrói o tecido social, arruína a economia, empurra centenas de milhares de vítimas aos acampamentos de pessoas deslocadas no interior do país ou de refugiados para além- fronteiras. Nessas circunstâncias, não se pode semear nem colher. São destruídos os mercados, as estradas são bloqueadas e as pontes bombardeadas. As instituições estatais deixam de funcionar. Para milhões de vítimas amontoadas nos acampamentos, a última salvação está no Programa Alimentar Mundial (PAM)128.

128 O Programa Mundial para a Alimentação (PAM) é a maior agência humanitária que combate a fome no

mundo. Criada em 1961, teve se mandato definido pela Assembleia Geral nos seguintes termos:

"eliminar a fome e a pobreza no mundo, ao responder às necessidades urgentes e ao apoiar o desenvolvimento econômico e social"

O PAM deve visar, em particular, à redução das taxas de mortalidade infantil, à melhoria da saúde das mulheres grávidas e a lutar contra as carências de micronutrientes".

3 - O PROCESSO AXIOLÓGICO-FACTUAL

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