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1.8 A PARTICIPAÇÃO DO PODER NO COMPLEXO FACTUAL AXIOLÓGICO DA NOMOGÊNESE DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO

No tempo em que a Declaração Universal estava sendo escrita (1947- 1948), o consenso internacional sobre direitos humanos era agressivo. Depois de repetidas condenações pelos Aliados das violações nazistas de direitos humanos, muitos países começaram a encarar a ONU como a nova organização mundial que teria de ter poder coercitivo. Esses países não queriam uma organização que fosse tão impotente quanto a Liga das Nações tinha sido na década de 1930, quando ela falhou em prevenir a conquista da Etiópia pela Itália e a possessão da Renânia por Hitler. Assim, o forte desejo de querer que as conversações de direitos humanos não fossem apenas conversas, mas secundados com a necessária maquinaria de implementação e de realização foi a tônica do período.

Foi nessa atmosfera internacional que o Conselho Econômico e Social escreveu, em fevereiro de 1946, os termos de referência que guiariam a Comissão de Direitos Humanos em seus trabalhos. Esses termos de referência tornaram-se objeto de intensos debates e controvérsias, que, por isso, será citado textualmente:

O ECOSOC manda que :

o trabalho da Comissão seja direcionada a submissão de propostas, de recomendações e de relatórios ao Conselho com relação :

(a) uma carta internacional de direitos;

(b) declarações internacionais ou convenções sobre as liberdades civis, o status das mulheres, liberdade de informações e matérias similares;

(c) a proteção de minorias;

(d) a prevenção de discriminação em razão da raça, do sexo, da língua ou da religião;

(e) qualquer outra matéria concernente aos direitos humanos que não foram cobertas pelos itens acima (E/248).

Explica-nos Morsink67 que a diferença entre (a) e (b) é que, em (a), o ECOSOC estava pensando em uma carta internacional genérica de direitos, enquanto em (b) o Conselho tinha em mente "declarações internacionais e convenções" mais específicas sobre vários tópicos. Essas declarações mais específicas ou convenções estão relacionadas com algumas subcomissões que sugeriram a criação da Comissão de Direitos Humanos.

Durante todo os primeiros dois terços do período de redação e bem avançando na Terceira Sessão da Comissão que se reuniu em maio e junho de 1948, a Comissão estava envolvida em uma luta sobre os termos de referência. A maioria das delegações sentia que a frase "carta internacional de direitos" significava não menos que uma convenção, enquanto as duas superpotências, os Estados Unidos (quase todo o tempo) e a União Soviética (todo o tempo) insistiam que o Conselho quis dizer que a Comissão tinha de redigir uma declaração ou um manifesto de princípios sem quaisquer maquinarias de implementação anexas nelas. Essa batalha durou muito tempo e consumiu uma enorme quantidade de energia dos redatores. (gn)

No primeiro encontro da Primeira Sessão da Comissão Plena, tarde em janeiro de 1947, Humphrey distribuiu o que ele denominou de "os termos de referência consolidados da Comissão", o que incluiu o pedido de conselho de fevereiro de 1946 sobre "uma carta internacional de direitos". Humphrey disse à Comissão que havia três modos de a CDH realizar o pedido do ECOSOC para uma carta internacional de direitos: "uma declaração ou outro ato da Assembleia Geral, um pacto multilateral ou uma emenda a Carta da ONU".

Morsink comenta que "dessas três, somente as duas últimas - o pacto ou a emenda à Carta da ONU - teriam sido responsivas à intenção original de que os direitos proclamados também fossem implementados. Os artigos 108 e 109 da Carta da ONU especificam um procedimento bem complexo para a realização de emendas à Carta e esse modo de tornar uma carta internacional de direitos efetiva nunca foi seriamente considerado, o que nos deixa com a declaração ou o pacto ou ambas.

67 MORSINK, Johannes, The Universal Declaration of Human Rights : Origins , Drafting and Intent,

Um pacto é muito mais difícil de ser redigido, porque ele é muito mais detalhado do que uma declaração geral de princípios. O pacto precisa ser feito por especialistas em direito internacional e leva muito tempo para ser escrito. Além disso, os Estados que assinam a convenção ou o pacto se comprometem a dizer "às autoridades" como eles têm implementado os termos da convenção em seus próprios sistemas jurídicos domésticos. Essas promessas com frequência tomam a forma de outras promessas de escrever relatórios sobre o progresso sendo feito na adaptação do sistema jurídico doméstico aos novos padrões internacionais recentemente aceitos. No caso de desacordos sobre se um Estado manteve ou não suas promessas, um Estado envolvido nessas disputas, com frequência, promete concordar com procedimentos voluntários de arbitragem. Finalmente, a única força envolvida é a sanção do isolamento internacional.(gn)

Uma declaração, por sua vez, em comparação é bem mais simples. As partes necessitam concordar com os princípios a serem proclamados e, então, proclamam- nos. Mesmo que seja verdade que os diplomatas que escreveram a DUDH1948 eram representantes oficiais de seus respectivos governos, que os diziam como votar e o que submeter, o fato em si não transforma a declaração em um convenção detalhada e obrigatória. A verdade é que as nações podem descumprir a declaração muito mais facilmente do que uma convenção ratificada. Essa é a razão precisa pela qual a maioria dos Estados-nação pequenos queria uma convenção que vinculasse tanto as nações pequenas quanto as grandes, e não uma mera declaração. O desejo dessas nações menores foi frustrado, porque em fases importantes do debate ou os Estados Unidos ou a União Soviética ou ambos retardavam ou bloqueavam o progresso da redação de uma convenção. Os oponentes mais insistentes de uma mera declaração eram os delegados do Reino Unido e da Austrália. (gn)

Depois da Segunda Sessão da Comissão, as propostas normativas da declaração e da convenção foram enviados para os governos membros comentarem. Provavelmente como resultado desses comentários e, em razão dos lobbies por trás das cenas, a Segunda Sessão do Comitê de Redação devotou todo o seu tempo à convenção.

Toni Sender da Federação Americana Trabalhista

pensou que era encorajador que muitos governos

terem comentado favoravelmente sobre o tema da implementação.

Os Estados Unidos também tinham se decidido novamente a apoiar o rascunho do pacto mais ativamente. Eleanor Roosevelt pensou que, talvez, fosse possível passar na Terceira Assembleia Geral ambos o pacto e a declaração. Isso criou um momento ímpar para a redação e a melhoria do pacto, e o Comitê Redator decidiu em uma votação apertada de 3 favoráveis a 2, com 2 abstenções, gastar mais tempo na redação do pacto. Duas vezes, o Comitê debruçou-se sobre os artigos do pacto que tinha se originado da proposta normativa britânica, e não gastou nada de seu tempo na redação da declaração. Parecia, afinal, que o pacto se tornaria o equivalente da Declaração.

A única oposição à convenção vinha da União Soviética, e mesmo assim não era tão contundente. Alexie Pavlov começou com um discurso afiado em relação à Guerra Fria, mas sua atitude durante o restante da Segunda Sessão foi muito conciliatória. Apesar de ser a posição oficial da União Soviética de que "a redação de um Pacto ser prematuro", Pavlov fez várias sugestões positivas além das usuais. Essa atitude de cooperação coincidiu com o levantamento temporário do bloqueio de Berlim68, mas

68 José Sombra Saraiva, no capítulo 6. Dois Gigantes e um condomínio: da guerra fria à coexistência pacífica

(1947-1968), seção 6.1.3, Da Alemanha à Coréia: o mundo na balança da guerra fria, contextualiza esse fato histórico: Um sucessão de crises embalou as relações internacionais da Guerra Fria entre 1947 e 1955. Iniciada por Berlim e estendida pela Guerra da Coréia, a efervescência das disputas interimperiais norte- americanas e soviéticas se fez presente em várias partes do mundo. Os dois gigantes disputavam, quase sempre, novos espaços no condomínio internacional.

O bloqueio de Berlim, resultante da reação soviética à política de contenção norte-americana, tornou o ano de 1948, para os europeus recém-saídos de uma guerra mundial, um pesadelo. A crise no ponto mais vulnerável do carrefour Ocidente-Oriente elevou a tensão entre as superpotências a altos níveis de temperatura política.

Localizada a mais de 150 quilômetros dentro da zona de ocupação soviética e dividida internamente, dentro da lógica de Potsdam, em quatro áreas de ocupação, Berlim foi bloqueada por Stalin como teste do grau de determinação dos seus adversários e como reação à doutrina Truman. Em Berlim, confrontavam-se os dois mundos: na Berlim Ocidental, os EUA haviam despejado os dólares de ajuda econômica, enquanto, na Berlim Oriental, os soviéticos extraíam riquezas para o plano de reconstrução da URSS.

Cortando o tráfego ferroviário e rodoviário do Ocidente, Stalin desafiou Truman, ocupado em sua campanha de reeleição e pego de surpresa pelos fatos. Durante os meses em que o mundo assistiu aos preparativos para uma nova guerra mundial, foram testadas várias modalidades de negociação. O argumento de Stalin era o de que Berlim não poderia ser um enclave ocidental no interior de uma zona de ocupação soviética, ali plantado para desestabilizar a construção do socialismo. O pretexto para seus movimentos havia sido a reforma do marco na Alemanha Ocidental e seus efeitos para Berlim, que teria duas moedas, uma delas absolutamente incorporada ao Ocidente.

provou-se ser o último degelo.

O fim da resistência ocorreu na Terceira Sessão da Comissão. Falando como presidenta da CDH, Roosevelt sugeriu que fosse gasto uma semana cada na preparação da Declaração, do Pacto e das medidas de implementação. Disse ela que esse cronograma satisfaria o mandato do Conselho Econômico e Social (SR.46/p.4).

Cassin, representante francês, queria discutir a Declaração primeiro, e Pavlov, representante soviético, queria começar com uma discussão de princípios gerais. Depois de Cassin ter argumentado que "a Declaração era o primeiro documento em que um acordo poderia ser alcançado", uma proposta francesa que desconectou a Declaração de qualquer medida de implementação, incluindo uma convenção, foi adotada por nove votos a dois. (gn)

O fim da resistência significou que a delegação do Reino Unido apoiou a proposta francesa e, ao assim fazer, desistiu de sua posição de tudo ou nada. As minutas afirmam que "o sr. Wilson do Reino Unido apoiou a proposta do representante francês. A Comissão tinha sempre examinado os dois documentos separadamente e a mudança de método na Terceira Sessão poderia levar à confusão. Além disso, os objetivos

Stalin levou adiante seu plano com determinação, desprezou as ameaças de Truman e preparou- -se para enfrentar toda a resistência, doméstica e internacional. Entendia que o tempo o beneficiaria, pois o esgotamento natural da parte ocidental da cidade tornaria o bloqueio um fato sem retorno. Para os EUA restariam saídas honrosas, como a retirada das tropas de Berlim, que implicariam a perda da confiança na própria doutrina Truman e no Plano Marshall, ou a negociação de uma solução diplomática lenta e desgastante.

Quando parecia inevitável o bloqueio, norte-americanos e britânicos iniciaram, em 28 de junho de 1948, o transporte aéreo maciço de alimentos, de combustíveis e de materiais necessários à resistência de Berlim Ocidental. Para provocar o efeito do terror e da memória da guerra, os norte--americanos mandaram, para bases inglesas, 60 bombardeiros b-29 capazes, segundo dizia, de lançar bombas atômicas.

A ameaça atômica, embora tenha sido só uma ameaça, teve forte ressonância internacional. A propaganda messiânica nos EUA e na Europa Ocidental acerca do terror comunista prestou-se a objetivos internos de poder e a situações eleitorais em quase todos os países. A desmoralização do bloqueio, especialmente pela exploração dos "corredores aéreos" legais entre a Alemanha Ocidental e Berlim, desviou o debate da opinião pública sobre os gastos gigantescos que foram empreendidos por norte-americanos e britânicos naqueles meses do segundo semestre de 1948.

O conflito foi dissipado lentamente. Stalin, que não perturbou os vôos, de norte-americanos e britânicos, rejeitou qualquer tentativa diplomática de negociação e levou em conta o diferendo nuclear entre os dois países. Berlim correspondeu, portanto, ao petardo soviético contra a triunfante guerra fria norte- americana, a evidenciar que os dois lados falavam a mesma linguagem. Em 1949, o bloqueio estava encerrado e um acordo discreto viria a ser assinado nas Nações Unidas para reestabelecer a normalidade. in SARAIVA, José Flávio Sombra. História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade internacional do Século XIX à era da globalização, (Sombra organizador) São Paulo, Saraiva, 2008

do Pacto e da Declaração eram diferentes e cada um desses dois documentos era uma unidade que tinha de ser examinada como um total". Esse apoio britânico foi uma mudança notável, uma vez que essa delegação vinha insistindo todo o tempo que uma mera declaração era inútil e talvez mesmo contraprodutiva, e que, dos documentos, a convenção era a parte fundamental da carta internacional de direitos. (gn)

Em um ensaio posterior, Cassin leva o crédito pela suavização da perspectiva britânica sobre a inutilidade de uma mera declaração. Ele observa corretamente que, se os delegados tivessem insistido na feitura de um pacto, eles teriam corrido o risco de deixar um período político favorável escapar. (gn)

Cassin escreve que:

A Guerra Fria já tinha começado e ameaçava comprometer a adoção tanto de uma declaração quanto de uma convenção".

Morsink explica aliviado sobre essa situação:

Felizmente, Harold Laski, um amigo de Cassin, teve a capacidade...de exercer influência favorável sobre Clement Attlee com respeito à adoção imediata de uma 'mera' declaração. Eu não verifiquei a versão do Cassin sobre o ocorrido, mas não pode haver dúvidas de que a retirada da oposição britânica foi a maior razão de a Terceira Sessão da Comissão de Direitos Humanos ter sido capaz de concentrar toda a sua atenção na elaboração da Declaração. Esse acontecimento foi, provavelmente, essencial para a adoção da Declaração em 1948. (gn)

Nos encaminhamentos finais da Terceira Sessão, Roosevelt, mais uma vez, - quase triste por querer algo que não se poderia ter - "destacou que o Conselho Econômico e Social tinha instruído a Comissão de Direitos Humanos a entregá-lo, pronto, uma proposta de Declaração Internacional, uma proposta de Convenção e provisões para a implementação de ambas, e perguntou aos membros da Comissão se eles achavam ser possível cumprir essa tarefa que lhes havia sido imposta pelo Conselho na sessão presente

(SR.48/p.3). A CDH respondeu que sim, mas Eleanor Roosevelt sabia que não seria possível, por causa do impacto da proposta normativa francesa, que colocou a Declaração por primeiro.

De fato, naquela mesma Sessão, Roosevelt citou Abraham Lincoln para fazer dizer que havia uma diferença crucial entre ter um direito e a implementação desse direito. Lincoln havia dito que os autores da Declaração de Independência Americana

não queriam afirmar a óbvia inverdade de que todos os homens estavam realmente gozando da igualdade nem que eles iam concedê-la imediatamente para todos. De fato, os autores da Declaração não tinham poder de conferir esse benefício. Eles simplesmente quiseram declarar o direito para que a implementação dele pudesse ocorrer tão logo as circunstâncias pudessem permitir. (gn)

Morsink conclui que, se o presidente Lincoln pôde dividir em dois, então, a Comissão de Direitos Humanos também poderia, com ou sem mandato. Como ironia da história, o que preocupava muitas delegações - que a declaração delas não estava anexa nem acompanhada por uma convenção - provou-se ser uma característica muito benéfica do documento, uma que mais ajudou do que atrapalhou o processo de implementação. Quando a Terceira Assembleia Geral adotou a DUDH1948, ela também passou uma resolução demandando um término célere da convenção que a CDH não teve capacidade de terminar. No curso de maiores discussões, a CDH decidiu dividir a única convenção em duas. O resultado foi que, em 1966, duas convenções internacionais foram abertas para assinatura, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esses dois pactos começaram a viger, quando ratificações suficientes foram coletadas dos Estados em 1976. Juntos , esses documentos fazem parte da Carta Internacional de Direitos Humanos, publicada pelo Escritório de Informações Públicas da ONU. (gn)

No cerne dessa tríade está a separação de direitos morais das medidas concretas adotadas posteriormente para a implementação legal. Enquanto a Carta da ONU originou a Declaração, a Declaração, por sua vez, deu origem a esses dois Pactos e para tantos outros instrumentos regionais de implementação.

O fato de a Declaração em si não ter nenhuma medida de implementação deu-lhe, desde o início, um status moral independente no mundo das relações internacionais e do direito. Mais de 50 anos de sua adoção, a DUDH1948 é o padrão moral e a fonte de inspiração de um novo ramo do direito internacional totalmente novo. Antes da Segunda Guerra Mundial , quase não havia instrumentos internacionais que diziam respeito à realização dos direitos humanos. Desde então, o crescimento tem sido fenomenal, de tal forma que há cerca de duzentas diferentes declarações, convenções, protocolos, tratados, cartas e acordos, todos lidando com a realização dos direitos humanos no mundo. Desses instrumentos posteriores à Guerra, não menos de 65 mencionam em seus prefácios ou preâmbulos a Declaração dos Direitos Humanos como uma fonte de autoridade e de inspiração.

1.9 - QUESTÃO DE FUNDO DOS DIREITOS HUMANOS: A

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