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O princípio da autonomia privada

1. Origem do direito comercial

6.1 Os princípios jurídico-civis

6.1.3 O princípio da autonomia privada

O princípio da autonomia da vontade na celebração dos negócios jurídicos manifesta-se pelo direito reconhecido às pessoas individuais e coletivas de celebrarem todos os contratos e conformarem livremente o seu conteúdo, segundo os seus interesses, modulando a constituição, modificação ou extinção de relações jurídicas. A este opõe-se o princípio da tipicidade ou numerus clausus.

“Negócio jurídico é simplesmente um conceito geral abstrato, um operador juscientífico que tem como referente a multidão de todos os contratos e de todos os negócios unilaterais juridicamente concebíveis”265.

Consagrado na lei fundamental trata-se de um direito fundamental com aplicação direta e transversal a todos, privados e Estado: o princípio da autonomia privada abrange a liberdade de associação e a liberdade de estipulação266.

O equilíbrio entre autonomia privada e princípio da tipicidade pode ser ponderado sempre que havendo liberdade de estipulação, operem as normas dispositivas, estas vigoram, salvo disposição contratual em sentido contrário. Enquanto o princípio da tipicidade267 se funda na proteção da ordem pública e na certeza jurídica, para isso sacrificando através de normas injuntivas, limitativas do poder de autorregulação da vida privada, o âmbito da autonomia privada funda-se na liberdade de associação.

A liberdade de forma consagrada no direito privado geral, encontra-se, ou melhor, encontrava-se comprimida no direito societário, aos contratos de sociedade e suas alterações, porque se exigia que a declaração de vontade fosse feita perante um notário, num instrumento digno de fé pública que é a escritura. Entre os defensores da formalização dos contratos em geral, citando Mota Pinto, “existem quatro razões para a importância das formalidades:

263 Prescrição aquisitiva, como era designada no Código Civil de Seabra. Para abordar os efeitos da posse e usucapião, Cf. José António de França Pitão, Posse e Usucapião. Anotações aos arts. 1251.º a 1301.º do CC. 264 Assim, como veremos adiante, é feito por depósito o registo de transmissão de quota, a constituição, modificação, extinção de direitos reais de gozo sobre as partes sociais. Consideramos o ingresso no registo pela aplicação por interpretação analógica do artigo 3.º e) conjugado com os arts. 9.º a) e 53.º-A nº 5 b) e g).

265 P.P. de Vasconcelos, op. cit., p.410. 266 Cf. arts. 18.º , 46.º e 47.º da CRP.

267 Apontamos o exemplo do art. 1.º n.º 3 do CSC, “as sociedades que tenham por objeto a prática de atos de comércio devem adotar um dos tipos previstos no CSC”. Ao invés do previsto no art. 405.º n.º1 do CC, as partes não têm a faculdade de celebrar contratos de sociedade comercial diferentes dos previstos na lei.

Primeira, a de conferir uma mais elevada dose de reflexão, defendendo as partes ‘contra a sua ligeireza ou precipitação’. Segunda, contribuem para separar a fase da negociação, pré- contratual, da do negócio definitivo. Terceira, permitem uma formulação precisa e completa da vontade das partes. Quarta, proporcionam um maior grau de certeza quanto à prova e sobre a celebração do negócio e dos seus termos” o que enfim, “possibilita uma certa publicidade do ato”268. Noutra linha de pensamento, Menezes Cordeiro, aceita os motivos que justificam a exigência de forma que são “a razão de solenidade e de publicidade, de reflexão e de prova”, no entanto critica-os, indicando que a solenidade e a publicidade “são asseguradas pelo registo e publicação obrigatória”, a reflexão não “corresponde a formalidade” e a “prova só põe em causa a existência do negócio e não a sua validade”269.

Quanto ao direito comercial e à atividade registal, o princípio da autonomia da vontade está sujeito à restrição necessária e proporcionada que é o princípio da tipicidade. Para constituir uma sociedade comercial há que atender às regras imperativas que o sistema impõe, nomeadamente a adoção de um tipo jurídico societário e ainda, deve obedecer, na sua constituição, aos requisitos formais contidos e regulados pela lei, a bem do interesse público, da equidade, da segurança do comércio jurídico. No entanto, mantém a liberdade de escolha do tipo a adotar, bem como a livre escolha de associado.

Na linha do pensamento de Pais de Vasconcelos, apesar do princípio da tipicidade, que emana de uma consagração de “tipologia legal taxativa, i.e. só aqueles tipos de sociedades comerciais são admitidos por lei – no artigo 1º n.º 2 do Código das Sociedades e estando vedada à autonomia privada a criação de novos tipos há, no entanto, uma elasticidade que significa a liberdade de modificações, construindo soluções estatutárias de acordo com a sua conveniência”270, desde que não afetem os preceitos inderrogáveis quanto ao tipo legal. A distinção dos tipos jurídicos previstos na lei é feita através de critérios, tais como: a responsabilidade dos sócios pela obrigação de entrada e a correspondente responsabilidade pelas dívidas, os poderes conferidos aos órgãos sociais e as formas de composição e titulação das participações na sociedade.

268 J. Mouteira Guerreiro, Formalizar, Desformalizar, Desburocratizar, Simplificar – nos Registos e no

Notariado. Quid iuris?, p.3.

269 Mouteira Guerreiro também não encontra nas formalidades, um entrave ao tráfico, pelo contrário, conferem eficiência e segurança, uma vez o recurso às tecnologias informáticas, podem até tornar essas formalidades, mais fluidas, consequentemente o tráfego mais competitivo, desde que haja a intervenção notarial. Idem, Ibidem, p.6. 270 Nesta abordagem o autor cita outras opiniões e refere exemplos de adaptações internas e externas, dentro dos limites de elasticidade dos tipos. Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, p.45-54.

A favor da distinção mitigada entre os dois tipos societários mais comuns em Portugal, a sociedade por quotas e a sociedade anónima tem mais ecos na doutrina271. Os tipos legais

mencionados diferenciam-se um do outro, pela publicidade dada, pelo registo comercial, aos titulares das quotas, contraposta à sigilosa circulabilidade das ações. A titularidade das ações tituladas ao portador não está sujeita a registo comercial. A aquisição das ações nominativas está sujeita a registo junto da entidade emitente ou intermediário financeiro272.

Apesar do regime legal se basear na estrutura formal, há sociedades anónimas que se aproximam mais das sociedades por quotas, porque nos seus estatutos existirem cláusulas que restringem a transmissibilidade das ações, ou até por as participações sociais serem nominativas ou escriturais, em vez de serem ao portador. Por outro lado, as sociedades por quotas pode incluir cláusulas no contrato que permitam a livre transmissão de quotas ou que outorgue amplos poderes à gerência.

O atual regime do registo da transmissão das quotas, que agora é efetuado por depósito na conservatória, pela iniciativa da sociedade273. Logo, sem o controle direto da legalidade pelo conservador foi transferida a responsabilidade para a sociedade274. Esta promove o depósito dos documentos que servem de base a registos de quotas e dos seus titulares.

O princípio da tipicidade ou numerus clausus só abrange as sociedades que tenham por fonte um negócio jurídico – as sociedades criadas ope legis podem desviar-se dos tipos previstos no Código das Sociedades Comerciais, uma vez que tais sociedades provêm de instrumentos normativos de valor hierárquico idêntico ao do próprio CSC, onde o princípio da tipicidade se estabelece275.

271 A defender um hibridismo dos tipos sociais, a proposta feita por Rui Pinto Duarte para o registo das participações sociais – quotas e ações – o registo de quotas e de ações passe a obedecer às seguintes orientações comuns: constar de registo organizado pelas próprias sociedades, ser de acesso público, obedecer aos princípios da prioridade e do trato sucessivo, condicionar a eficácia da titularidade, quer perante a sociedade, quer perante terceiros. In Rui Pinto Duarte, Publicidade das participações nas sociedades comerciais, Direito das Sociedades

em Revista, março 2010, p. 85. 272 Idem, pp. 66-67.

273 O depósito dos documentos que baseiam a transmissão, usufruto, penhor ou penhora e outros direitos sobre as quotas está previsto e regulado nos arts. 242.º-B a 242.º-E do CSC e 53.º-A n.º 3 e n.º 4 a) do CRCom.

274 Estes devem ficar arquivados na sede da sociedade, art. 47.º do CRCom e art. 242.º-E n.º 3 do CSC.

275 São exemplos as entidades pessoas coletivas de direito privado criadas pelo Estado, as pessoas coletivas públicas, cujos estatutos são concebidos por decreto ou decreto-lei declaram um regime de direito público. A este propósito releva o Parecer do Conselho Consultivo da PGR, n.º P001602004 – Constituição de Pessoa Coletiva de Utilidade Pública.