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2.2 O PAPEL FUNDAMENTAL DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO

2.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana

Vander Ferreira de Andrade39, em dissertação dedicada ao tema, conclui que “a dignidade humana, assim como os direitos fundamentais, representam uma conquista da humanidade em seu perpétuo devir [Grifo do autor]”.

Construção de longa data da cultura ocidental, a ideia de “dignidade da pessoa humana” pode ser concebida como a convergência de diversas concepções de mundo e de doutrina que vêm sendo construídas há séculos, desde o pensamento grego (concepção cosmológica de responsabilidade ética dos estóicos) até seu aprofundamento no decorrer do desenvolvimento do pensamento cristão, marcado pela noção da igualdade de todos perante a criação de Deus40.

Contudo, foi a partir do pensamento de Kant que a discussão em torno do tema dignidade humana foi aprofundada, tornando-se ponto de partida e de grande influência para a maior parte dos pensadores modernos. A ética kantiana é baseada nas noções de razão e dever, na característica própria dos seres humanos de poderem dominar suas paixões e interesses próprios, e construírem, dentro de si,

                                                                                                                          38

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 356-363.

39

ANDRADE, Vander Ferreira de. A dignidade da pessoa humana como valor-fonte da ordem jurídica. Dissertação (Mestrado em Direito)-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo-SP, 2002, p. 176.

40

BITTAR, Eduardo C. B. Hermenêutica e Constituição: a dignidade da pessoa humana como legado à pós-modernidade. In: FILHO, Algassiz Almeida; MELGARÉ, Plínio (Org.). Dignidade da pessoa humana: fundamentos e critérios interpretativos. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 247.

uma lei moral para orientar a sua conduta, sempre colocando o homem como um fim em si mesmo.41

O padrão de racionalidade em Kant é mais bem compreendido a partir do imperativo categórico por ele formulado: “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa se transformar numa lei universal”.42

As palavras de Kant, a toda evidência, inspiraram a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em resposta à crise do positivismo jurídico no período das Grandes Guerras e dos regimes totalitários, que dele se aproveitavam para ascender ao poder e aterrorizar o mundo, marcando um ordenamento jurídico eminentemente formal e desprovido de conteúdo ético, como se depreende da leitura da parte inicial do preâmbulo e do seu primeiro artigo:

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, [...]

Artigo I

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Na mesma linha de raciocínio, Flávia Piovesan43 assevera que:

[...] o ser humano é concebido como um fim em si mesmo e jamais como um meio, como já explicava Kant. É um ser essencialmente moral, dotado de unicidade e de integridade, sob o manto da dignidade humana, valor fonte da experiência jurídica. Conclui-se que a Declaração Universal de 1948, ao introduzir a concepção contemporânea de direitos humanos, acolhe a dignidade humana como valor a iluminar o universo dos direitos. A condição humana é requisito único e exclusivo, reitere-se, para a titularidade de direitos. Isso porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados                                                                                                                          

41

BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 70.

42

BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial, p. 70.

43

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição Brasileira de 1988. In: QUARESMA, Regina: OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula: OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio. (Coord.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 455.

internacionais, ainda que assumam a roupagem do positivismo jurídico, incorporam o valor da dignidade humana.

Esse papel de protagonismo conferido ao princípio da dignidade humana é reconhecido na Constituição Federal brasileira como um dos fundamentos indissociáveis do nosso Estado Democrático de Direito (art. 3º), ou seja, “não há soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa ou pluralismo jurídico se não existir um princípio ainda mais relevante e fundamental: a dignidade da pessoa humana”44.

A dignidade humana se encaixa nesse papel, conquanto se impõe “como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional”.45

Luís Roberto Barroso46, analisando o tema, pontificou que “a dignidade humana seria um dos principais candidatos ao papel de maior de todos os princípios, aquele que está na essência de todas as coisas”.

A dignidade desempenha, ademais, o papel interpretativo e guia o aplicador do direito na solução de casos envolvendo lacunas, ambiguidades, colisões entre direitos fundamentais e tensões entre direitos e metas coletivas. Bem por isso, foi alçada ao patamar de verdadeira “espinha dorsal para a compreensão mais profunda do estágio de civilização e experiência histórica que logramos atingir”47.

A vida digna que deve ser assegurada à pessoa com deficiência, assim, é a mesma que deve ser garantida a todos e se encontra atualmente mencionada em incontáveis documentos internacionais, constituições nacionais, leis e decisões judiciais, sendo um dos maiores exemplos de consenso ético do mundo ocidental48.                                                                                                                          

44

MALFATTI, Alexandre David. O direito de informação no Código de Defesa do Consumidor, p. 65.

45

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição Brasileira de 1988. In: QUARESMA, Regina: OLIVEIRA, Maria Lúcia de Paula: OLIVEIRA, Farlei Martins Riccio. (Coord.). Neoconstitucionalismo, p. 458.

46

BARROSO, Luís Roberto. Aqui, lá e em todo lugar: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais, São Paulo, RT, ano 101, v. 919, maio de 2012, p. 193. (Separata).

47

ANDRADE, Vander Ferreira. A dignidade da pessoa humana como valor-fonte da ordem jurídica, p. 1.

48

BARROSO, Luís Roberto. Aqui, lá e em todo lugar: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais, São Paulo, RT, ano 101, v. 919, maio de 2012, p. 128. (Separata).

Essa é a linha mestra que deve guiar o legislador ordinário e a sociedade em matéria de tutela da pessoa com deficiência, como ressalta Eduardo C. B. Bittar49:

Só há dignidade, portanto, quando a própria condição humana é entendida, compreendida e respeitada, em suas diversas dimensões, o que impõe, necessariamente, a expansão da consciência ética como prática diuturna de respeito à pessoa humana. Trata-se de um ideal e, como todo ideal, um objetivo antevisto a ser atingido, mas nem por isso um ideal utópico, porque se encontra na estrita dependência dos próprios seres humanos, podendo-se consagrar como sendo um valor a ser perseguido e almejado, simplesmente porque (parodiando Nietzsche) se trata de algo ‘humano, demasiado humano’.

Nesse sentido, também merece destaque a proposta de conceituação jurídica da dignidade da pessoa humana elaborada por Ingo Wolfgang Sarlet50:

Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

De todo modo, assegurar a plenitude da dignidade humana a determinadas classes da sociedade, como as pessoas com deficiência e os consumidores, exige que lhes seja destinado um tratamento diferenciado, mais protetivo, com amparo em outro princípio constitucional de igual magnitude: o princípio da igualdade.

                                                                                                                          49

BITTAR, Eduardo C. B. Hermenêutica e Constituição: a dignidade da pessoa humana como legado à pós-modernidade. In: FILHO, Algassiz Almeida; MELGARÉ, Plínio (Org.). Dignidade da pessoa humana: fundamentos e critérios interpretativos, p. 264.

50

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 60.