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O DIREITO BÁSICO À INFORMAÇÃO ADEQUADA NA ROTULAGEM DE ALIMENTOS E MEDICAMENTOS EM FACE DO CONSUMIDOR COM DEFICIÊNCIA VISUAL

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

RENAN BUENO FERRACIOLLI

O DIREITO BÁSICO À INFORMAÇÃO ADEQUADA NA ROTULAGEM

DE ALIMENTOS E MEDICAMENTOS EM FACE DO CONSUMIDOR

COM DEFICIÊNCIA VISUAL

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

RENAN BUENO FERRACIOLLI

O DIREITO BÁSICO À INFORMAÇÃO ADEQUADA NA ROTULAGEM

DE ALIMENTOS E MEDICAMENTOS EM FACE DO CONSUMIDOR

COM DEFICIÊNCIA VISUAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial à obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação do Professor Doutor Marcelo Gomes Sodré.

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O DIREITO BÁSICO À INFORMAÇÃO ADEQUADA NA ROTULAGEM

DE ALIMENTOS E MEDICAMENTOS EM FACE DO CONSUMIDOR

COM DEFICIÊNCIA VISUAL

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Agradeço, primeiramente, a Deus por não ter me desamparado nos momentos mais difíceis no decorrer da trajetória, pois Dele obtive sempre as respostas que precisei.

Não há palavras para expressar a gratidão que sinto pelo apoio incondicional e carinho dados pela minha esposa, Erika; sem ela, a conclusão deste trabalho certamente não seria possível.

Aos meus pais, Dirce e Osmar, sou grato pela vida, pela educação, pelo amor, pelo suporte permanente e pelas orações que me ajudaram tanto na reta final do curso.

Os familiares e amigos Gustavo Silva, Milena e Wilson Madrid, Rodolfo e Natália Rocha merecem mais do que meus sinceros agradecimentos pela energia positiva emanada e um enorme pedido de desculpa pelo justificável afastamento.

Ao amigo Paulo Góes, que tanto me inspirou nos dez anos de convívio diário no Procon-SP, pelo incentivo constante e pela compreensão nos períodos em que precisei ausentar-me.

Ao amigo Vitor Morais de Andrade, pela ajuda na escolha do tema e por sempre estar presente em todos os momentos.

Ao professor Marcelo Gomes Sodré, que, além de exercer o papel de orientador, por vezes, foi também um psicólogo amador, o que só fez aumentar o meu respeito e a minha admiração.

Aos professores Suzana Maria Catta Preta Friederighi, Luiz Alberto David Araujo, Roberto Baptista Dias e Gilson Delgado Miranda, por transformar o Mestrado em uma experiência única e pela inspiração que geram para os que querem seguir a carreira docente.

Aos mais do que colegas de Mestrado, verdadeiros amigos para todas as horas, Andrea da Silva Souza Sanches, Leonardo Medeiros Garcia e Lucas Rodrigues.

À minha sócia e amiga, Geysa Fonzaghi, e a Maíra Feltrin, Rosita Oliveira e Gislane Melo, pela dedicação redobrada quando precisei ausentar-me do escritório e pela torcida diária que me fez tanto bem.

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"Para além da dúvida, existe a fé. Para além do sol, existe o calor e a energia quando a luz se apaga."

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RESUMO

FERRACIOLLI, Renan Bueno. O direito básico à informação adequada na rotulagem de alimentos e medicamentos em face do consumidor com deficiência visual. 2015. 93f. Dissertação (Mestrado em Direito)-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo-SP, 2015.

Versa a presente dissertação sobre o tema do direito à informação do consumidor com deficiência visual, especificamente no que tange à rotulagem adequada de produtos considerados de necessidade básica – alimentos e medicamentos –, cuja não observância pode ferir o seu direito fundamental à vida e preservação da sua saúde e segurança. Para dirigir o caminho a ser percorrido, que visa evidenciar a aplicação das normas já existentes para garantir a proteção ao direito básico à informação adequada do consumidor com deficiência visual, o estudo utiliza como metodologia o raciocínio dedutivo e a técnica de pesquisa bibliográfica, com os quais busca reunir o referencial teórico pertinente, apresentado nos quatro capítulos que compõem este relatório, a saber: o primeiro capítulo se dedica a demonstrar a evolução da proteção à pessoa com deficiência até os dias atuais; o segundo trata da previsão constitucional da proteção da pessoa com deficiência e do consumidor; o terceiro aborda a disciplina infraconstitucional aplicada ao tema, com foco no Código de Defesa do Consumidor; o último capítulo apresenta as iniciativas existentes para minimizar o problema da ausência de informação adequada aos consumidores com deficiência visual. Findo o esforço de pesquisa, a conclusão a que se chega é que as normas existentes são suficientes para assegurar ao consumidor com deficiência visual o direito à mínima informação adequada na rotulagem de produtos de primeira necessidade como alimentos e medicamentos, a fim de que não coloquem em risco sua vida, saúde e segurança, sendo necessário o empenho da sociedade e do Estado para lhes garantir a desejada efetividade.

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FERRACIOLLI, Renan Bueno. The basic right to adequate information on food and drug labels for visual impaired consumers. 2015. 93p. Dissertation (Master of Law)-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo-SP, 2015.

This dissertation deals with the subject of the right to information for consumers with visual impairment, specifically with respect to proper labeling of products that are considered of basic necessities – such as food and medicine. The non-compliance of this rule can hurt their fundamental rights to life and preservation of health and safety. To follow the correct path – which aims to highlight the application of existing standards to ensure the protection of basic right to information to consumers with visual impairment – the study used as methodology deductive reasoning and bibliographic research technique with which seeks to bring together the relevant theoretical framework presented in the four chapters of this report: the first chapter is dedicated to demonstrate the evolution of the protection of people with disabilities until our present day; the second chapter deals with the constitutional provision of protection of the disabled person and consumer; the third addresses the inner constitutional discipline applied to the subject, focusing on the Consumer Protection Code; the last chapter presents the existing initiatives to minimize the problem of lack of adequate information to visually impaired consumers. After the research effort, the conclusion reached is that the existing rules are sufficient to provide the visually disabled consumer the right to minimum adequate information on product labeling of basic necessities, such as food and medicines. Hence, in order not to harm their life, health and safety, the commitment of society and the State is necessary to guarantee its effectiveness.

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INTRODUÇÃO ... 10

1 A PROTEÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ... 13

1.1 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO ... 13

1.2 A CONVENÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA ... 17

1.2.1 Acessibilidade ... 20

1.2.2 O problema da efetividade da Convenção ... 23

1.2.3 A ratificação da Convenção pelo Brasil ... 25

2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A PROTEÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E DO CONSUMIDOR ... 28

2.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA PROTEÇÃO À PESSOA COM DEFICIÊNCIA ... 28

2.2 O PAPEL FUNDAMENTAL DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO ALICERCE DA PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E DOS CONSUMIDORES ... 31

2.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana ... 34

2.2.2 O princípio da igualdade ... 38

2.3 A DEFESA DO CONSUMIDOR ENQUANTO DIREITO FUNDAMENTAL ... 41

2.4 A DISCIPLINA CONSTITUCIONAL DA INFORMAÇÃO ... 45

3 OS DIPLOMAS INFRACONSTITUCIONAIS VOLTADOS À PROTEÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E A FIXAÇÃO DO TEMA REALIZADA PELO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ... 48

3.1 A PROTEÇÃO À PESSOA COM DEFICIÊNCIA ... 48

3.2 O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR ... 54

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4.2 AS INICIATIVAS PONTUAIS DA INDÚSTRIA DE GÊNEROS ALIMENTÍCIOS . 70

4.3 AS PROPOSTAS LEGISLATIVAS ... 72

4.4 COMO APLICAR AS NORMAS EXISTENTES ... 77

CONCLUSÃO ... 84

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6.056.533. Este é o número de pessoas que, segundo o último Censo

Demográfico de 2010, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1, possuem grande dificuldade de visão. Pouco maior que a população da Dinamarca (5,5 milhões de habitantes)2, a esse contingente somam-se outros 506.377 indivíduos que não conseguem de modo algum enxergar, mas que precisam realizar suas atividades cotidianas, quase todas ligadas a um ato de consumo.

De maneira geral, pode-se dizer que o mercado de consumo não está preparado para atender esse enorme contingente de forma adequada, especialmente quanto às suas necessidades mais básicas, como são a alimentação e os cuidados com a saúde, por meio da administração de medicamentos.

Essa assertiva tem esteio na dissertação apresentada Roberta Lucas Scatolim3 ao Curso de Pós-Graduação em Desenho Industrial na UNESP, intitulada “A comunicação de embalagens de produtos alimentícios para deficientes visuais”.

A autora, ao pesquisar um grupo de vinte deficientes visuais, observou que nenhum deles consegue manter sozinho o hábito de fazer compras: 35% necessitam ser acompanhados por terceiros e 65% dependem da família para tal atividade. A situação se agrava no que tange ao aspecto “identificação” dos produtos adquiridos e já na residência dos consumidores.4

De acordo com a mencionada pesquisa, 50% dos entrevistados alegaram que identificam os produtos com base na localização, necessitando que a família os organize por tipo, função e/ou linha5, valendo destacar que tal solução é empregada

                                                                                                                          1

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Tabela da população residente, por tipo de deficiência permanente, segundo as Grandes Regiões e as Unidades da Federação -

2010. Disponível em: <http://

ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Resultados_Gerais_da_Amostra/tab1.pdf>. Acesso em: 6 dez. 2014.

2

UNIÃO EUROPEIA. Dinamarca. Disponível em: <http://europa.eu/about-eu/countries/member-countries/denmark/index_pt.htm>. Acesso em: 6 dez. 2014.

3

SCATOLIM, Roberta Lucas. A comunicação de embalagens de produtos alimentícios para deficientes visuais. Dissertação (Mestrado em Desenho Industrial). Universidade Estadual Paulista, Botucatu, SP, 2008, p. 62.

4

SCATOLIM, Roberta Lucas. A comunicação de embalagens de produtos alimentícios para deficientes visuais, p. 65.

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para o mínimo atendimento das suas necessidades, mas que não atende aos direitos mais básicos desses consumidores: proteção da vida, saúde e segurança.

Fato é que, por mais que os consumidores com deficiência visual saibam qual produto irão consumir após a mencionada organização, não lhes são asseguradas informações básicas como prazo de validade ou indicação de um canal para que possam ter acesso a todos os detalhes do produto, como um componente alergênico, por exemplo.

Dentro desse contexto, o presente estudo objetiva demonstrar a exacerbada exposição aos riscos a que os consumidores com deficiência visual são corriqueiramente submetidos e que, para evitá-los, não seria necessário inovar no ordenamento jurídico porque existem normas bastantes, seja no campo da proteção da pessoa com deficiência, seja no campo da proteção do consumidor.

Para atingir esse desiderato, o estudo adota como apoio metodológico a abordagem dedutiva, à procura de um referencial teórico que abarque e responda a problemática em tela. A técnica de pesquisa para tanto será a bibliográfica, com dados coletados em doutrinas nacional e estrangeira – livros, artigos, revistas e periódicos especializados, sites afins, entre outros –, e em algumas decisões judiciais que abordam o tema de forma transversal, pois pouco se discutiu a respeito da matéria.

Quanto à estrutura de apresentação da pesquisa, o trabalho se divide em quatro capítulos distintos.

O primeiro capítulo, no que tange à tutela da pessoa com deficiência, procura demonstrar que o reconhecimento normativo foi muito tardio, com a marginalização desse público até meados do século XX, quando avançou em alta velocidade, em compasso com o desenvolvimento dos direitos humanos no período pós-Segunda Guerra, culminando na “Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”, diploma este de referência sobre o tema e que, no Brasil, passa a ter força de norma constitucional.

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que servirão como junção entre a proteção da pessoa com deficiência e os direitos assegurados ao consumidor, também elevados ao grau de direitos fundamentais.

Na sequência, a atenção é voltada para esse panorama favorável, inaugurado em 1988, que irradiou efeitos para todo o ordenamento e inúmeras leis foram concebidas, sendo a mais importante a que instituiu o Código de Defesa do Consumidor (CDC), especialmente em razão do protagonismo com que trata do tema sub examine, ao apontar para um horizonte menos sombrio.

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1 A PROTEÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

1.1 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO

Por milhares de anos, pessoas com deficiência foram marginalizadas, por serem consideradas inferiores, incapazes, o que lhes acarretou até mesmo a imposição da morte, seja pelo receio de contágio da deficiência de que eram portadoras, seja por questões religiosas.

Importante estudo histórico elaborado por Laís Vanessa Carvalho Figueirêdo Lopes6 registra que muitas sociedades transcreveram essas concepções em lei e a mais antiga que se tem notícia é o Código de Manu (1500 a.C.). Referido Código vedava a sucessão às pessoas com deficiência, conforme enunciava o artigo 612: “os eunucos, os homens degradados, os cegos, surdos de nascimento, os loucos, idiotas, mudos e estropiados não serão admitidos a herdar”.

Os antigos hebreus consideravam a deficiência um sinal de impureza, o que fica evidente nesta passagem do livro Levítico de Moisés:

O homem de qualquer das famílias de tua linhagem que tiver deformidade corporal, não oferecerá pães ao seu Deus, nem se aproximará de seu ministério; se for cego, se coxo, se tiver nariz pequeno ou grande, ou torcido; se tiver pé quebrado ou a mão; se for corcunda [...].

Todo homem da estirpe do sacerdote Arão, que tiver qualquer deformidade (corporal), não se aproximará a oferecer hóstias ao Senhor, nem pães ao seu Deus; comerá todavia dos pães que se oferecem no santuário, contanto, porém, que não entre do véu para dentro, nem chegue ao altar, porque tem defeito e não deve contaminar o meu santuário (Lev. 21:21-23).

Na Grécia Antiga (Platão, em “A República”), imperava a concepção de que: “[...] no que concerne aos que receberam corpo mal organizado, deixa-os morrer”. A Lei das XII Tábuas, de 451 a.C., já regrava que o filho nascido monstruoso deveria ser morto imediatamente.

                                                                                                                          6

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Adiante, no Período Feudal, em 1347, a Peste Negra que assolou a Europa foi considerada um castigo dos deuses e as pessoas com deficiência sobreviventes foram obrigadas a vagar em penitência para perdoar os pecados da sociedade.

Como visto, por um longo período da história humana, a situação da pessoa com deficiência pouco se alterou. Contudo, a partir dos avanços em relação aos direitos humanos em sociedades que romperam com a dominação vigente à época (notadamente do clero e da nobreza), as primeiras manifestações de proteção passaram a existir, ainda que por via indireta.

Apesar de estarem sob o manto da liberdade e da igualdade, consagrado em importantes Declarações de Direitos como a da Virgínia (EUA, 1776) e a que frutificou com a Revolução Francesa de 1789, isso não afetava tanto a realidade das pessoas com deficiência, pois a preocupação primordial desses diplomas era mais um manifesto contra a sociedade hierárquica de privilégios do que a favor de uma sociedade plenamente igualitária.

A Revolução Industrial, datada da mesma época, acabou gerando uma consequência paradoxal: ao mesmo tempo em que agravou a marginalização da pessoa com deficiência, em razão do império da razão acima de tudo – e, como consequência deste pensamento, um corpo imperfeito não teria oportunidade de produzir –, permitiu o desenvolvimento de novas tecnologias justamente para este público, dotando-o de mais autonomia na busca pelo conhecimento, necessário para todas as outras conquistas, especialmente a construção e a efetivação de direitos.

Justamente nessa época, após a frustrada tentativa de instituir uma nova forma de comunicação noturna entre oficiais nas campanhas de guerra, criou-se uma codificação baseada em 12 sinais, compreendendo linhas e pontos salientes, representativos de sílabas na língua francesa. O oficial do exército francês Charles Barbier foi quem levou referido código para ser utilizado por alunos cegos do Instituto Real dos Jovens Cegos, em Paris. O adolescente Louis Braille, cego desde os três anos de idade, tomou conhecimento do invento e, aproveitando a significação tátil dos pontos em relevo, concebeu, em 1825, um sistema ao qual lhe deu o nome de Procédé de L. Braille, o atual Sistema Braille7, consistente no                                                                                                                          

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processo de leitura e escrita em relevo, com base em 64 símbolos resultantes da combinação de seis pontos, dispostos em duas colunas de três pontos.

Em terras brasileiras, pouco tempo depois, em 12 de setembro de 1854, por meio do Decreto Imperial n. 1.428, o Imperador Dom Pedro II criou o Instituto para os Meninos Cegos, no Rio de Janeiro, atual Instituto Benjamin Constant. Este decreto foi considerado o primeiro passo para garantir à pessoa com deficiência visual o direito à cidadania em nosso país8.

Contudo, entre o final do século XIX e o início do século XX as ideias eugenistas concebidas a partir das teorias de Darwin sobre a evolução e a seleção natural passaram a ganhar força e sustentaram o discurso do “extermínio do imperfeito”, que justificou as atrocidades cometidas durante o regime nazista.

Após as duas Grandes Guerras Mundiais, a pessoa com deficiência se tornou o centro das preocupações dos Estados, passando a fazer parte do discurso transnacional, quer pelo grande contingente de civis e militares incapacitados nos combates, quer pela necessidade de consagração em cláusulas pétreas dos direitos fundamentais. O objetivo era que esses indivíduos não ficassem à mercê das forças dominantes como ocorreu no Período Nazifascista.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, ao proclamar a dignidade humana como valor9, coloca em xeque o modelo de isolamento da pessoa com deficiência até então adotado. Após, em 1955, tanto a Assembleia Geral das Nações Unidas como o seu Conselho Econômico e Social passam a aprovar resoluções sobre a prevenção e reabilitação.

No Brasil, o fim da década de 1940 e o início dos anos 1950 foi um período de singular importância para as pessoas com deficiência visual. Nessa época, precisamente em 1946, uma jovem de 26 anos, Dorina Gouvêa Nowill, dez anos após ter perdido completamente a visão, criou a Fundação para o Livro do

                                                                                                                          8

INSTITUTO BENJAMIN CONSTANT. Onde tudo começou. Disponível em: <http://www.ibc.gov.br/?catid=13&blogid=1&itemid=89>. Acesso em: 12 nov. 2014.

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Cego no Brasil, marco inicial da brilhante trajetória de vida voltada à inclusão desse público na sociedade, por meio da disseminação do conhecimento10.

A evolução das décadas seguintes resultou, em 1975, na aprovação, pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), da Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (Resolução n. 34/47), que passa a tratar o tema com uma visão mais social, inclusiva, ao contrário da antiga visão médica da atenção. O objetivo é permitir que essas pessoas alcancem a maior autonomia possível.

Logo no ano seguinte, com a aprovação da Resolução n. 31/123 da Assembleia Geral, proclamou-se o ano de 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes e o decênio de 1983 a 1992 como a Década das Nações Unidas para as Pessoas com Deficiência11.

Em que pesem os inúmeros avanços obtidos até o fim da década de 1990, sobretudo em nosso país, com a força dada pela Constituição Federal de 1988, em reunião da Secretaria-Geral das Nações Unidas, realizada em 2000 na cidade de Estocolmo, o relatório exarado a partir das discussões realizadas deixou claro que as normas até então aprovadas sobre o tema tinham muitos méritos, mas necessitavam de força jurídica vinculante.

Em 19 de dezembro de 2001, por meio da Resolução n. 56/168, adotada pela 56ª sessão da Assembleia Geral da ONU, criou-se o Comitê Ad hoc, que deveria contar com a participação de membros dos Estados-Partes e observadores da ONU, para elaborar uma convenção internacional ampla e integral para proteção e promoção dos direitos e dignidade das pessoas com deficiência. Esse intento só aconteceu em 13 de dezembro de 2006, por meio da aprovação do texto final da Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e do Protocolo Facultativo a ela relacionado, na 61ª sessão da Assembleia Geral da ONU12.

                                                                                                                          10

NOWILL, Dorina de Gouvêa. E eu venci assim mesmo. São Paulo: Totalidade, 1996, p. 1-27. 11

O Brasil sempre teve lugar de destaque nas discussões relacionadas à proteção da pessoa com deficiência, sobretudo pela participação ativa da sociedade civil organizada. Essa rica história está bem retratada no “Memorial da Inclusão”, criado pela Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado de São Paulo, cujo acervo está disponível no seguinte endereço eletrônico. Cf. SÃO PAULO. Secretaria de Estado da Pessoa com Deficiência. Memorial da Inclusão: os caminhos

da pessoa com deficiência. Disponível em:

<http://www.memorialdainclusao.sp.gov.br/br/home/index.shtm.>. Acesso em: 12 nov. 2014. 12

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1.2 A CONVENÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA13

Como mencionado anteriormente, inúmeros tratados de direitos humanos não específicos para pessoas com deficiência já seriam a elas aplicáveis, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).

A propósito desses documentos supranacionais, cabe apresentar a seguinte indagação: por que, então, haveria a necessidade de um diploma específico para proteção e defesa das pessoas com deficiência?

Laís Vanessa Carvalho de Figueirêdo Lopes, dissertando sobre o tema, afirma que:

A experiência de aplicação dos demais tratados para as pessoas com deficiência se mostrou insuficiente para promover e proteger os direitos do segmento. Nos relatórios dos Estados Partes encaminhados à ONU referentes ao cumprimento dos instrumentos existentes, muito pouca atenção foi dispensada às pessoas com deficiência. O Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais explicitou então uma conclusão, com base na assertiva anterior, sugerindo que os direitos humanos das pessoas com deficiência deveriam ser protegidos pelo sistema geral e também por um outro para elas especificamente desenhado, com leis, políticas e programas próprios.14

Trata-se da etapa de especificação, na construção do Estado Democrático de Direito, conforme os ensinamentos de Celso Lafer, marcada pelo                                                                                                                          

13

Dos 198 Estados-membros da Organização das Nações Unidas, ou seja, aqueles que selaram compromisso com a paz e a segurança internacionais ao aceitar os compromissos elegidos na Carta das Nações Unidas, 151 podem ser considerados “Estados-Partes” (inclusive o Brasil) desta Convenção, pois manifestaram seu consentimento por um ato de ratificação ou adesão, por meio do qual entrou em vigor no ordenamento jurídico interno; 31 são considerados apenas “Signatários” (destaque-se os Estados Unidos da América), pois forneceram apenas uma aprovação preliminar do instrumento e sua intenção de examiná-lo internamente e considerar a sua ratificação; 16 Estados não manifestaram qualquer ação (consentimento), os quais estão concentrados no continente africano. Cf. UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS. Status of ratification interactive dashborad. Disponível em: <http://indicators.ohchr.org>. Acesso em: 24 nov. 2014.

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aprofundamento da proteção, que passa dos destinatários genéricos – ser humano, cidadão – para tutelar o negro, a mulher, a pessoa com deficiência15. Essa etapa é precedida pela conversão do valor da dignidade da pessoa humana em direito positivo, a etapa da “positivação”. Após, vem a etapa da “generalização’, caracterizada pelo princípio da igualdade e a consequente não discriminação. Em um terceiro momento, tem-se a etapa da “internacionalização”, com o reconhecimento de que a eficácia dos direitos humanos depende do apoio da comunidade internacional e das normas de direito internacional público.

O primeiro avanço da Convenção da ONU sobre os direitos da pessoa com deficiência foi justamente a consagração da perspectiva social da deficiência em detrimento da visão meramente médica e assistencial, como se a deficiência fosse uma experiência do corpo a ser tratada com medicamentos.

Logo no primeiro artigo, o citado diploma supranacional assim conceitua quem são as pessoas com deficiência:

Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

Segundo o modelo social, portanto, a deficiência resulta de uma função cujo valor final da variável deficiência está intimamente relacionado às limitações funcionais do corpo humano e as barreiras físicas, econômicas e sociais colocadas pelo ambiente ao ser humano.

Dessa forma, as pessoas com deficiência não devem ser definidas como se fossem objetos, por funcionalidade ou utilidade na sociedade, mas sim como sujeitos de direitos, justamente aqueles valores que embasam todo o sistema de direitos humanos: a dignidade humana, a autonomia, a equiparação de oportunidades e a solidariedade16.

A Convenção vai além de apenas alterar a concepção de deficiência física, ao traçar um cenário completo com direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, emoldurando um quadro de direitos humanos das pessoas com

                                                                                                                          15

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 2. 16

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deficiência, os quais devem ser analisados de forma universal, indivisível e interdependente, para que o indivíduo possa realizar-se nos seus aspectos físico, moral e intelectual.

Essa é, pois, a concepção contemporânea dos direitos humanos, que corresponde à sua indissolubilidade em relação ao que foi conquistado ao longo da história, quer dizer: cada avanço singular é somado ao todo. Essas subdivisões em direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais seriam meramente teóricas, haja vista que essa inter-relação, indivisibilidade e independência se sobrepõem à ideia de que tais direitos possam ser aplicados de forma autônoma, sem interferir uns nos outros17.

Os direitos civis e políticos podem ser observados nos seguintes artigos da Convenção em comento: 5º (igualdade e não discriminação), 10 (direito à vida), 12 (reconhecimento igual perante a lei), 13 (acesso à Justiça), 14 (liberdade e segurança da pessoa), 15 (prevenção contra a tortura, tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes), 16 (prevenção contra a exploração, a violência e o abuso), 17 (proteção da integridade da pessoa), 18 (liberdade de movimentação e nacionalidade), 19 (vida independente e inclusão na comunidade), 20 (mobilidade pessoal), 21 (liberdade de expressão e de opinião e acesso à informação), 22 (respeito à privacidade), 23 (respeito pelo lar e pela família) e 24 (participação na vida política e pública).

Os direitos econômicos, sociais e culturais, por sua vez, manifestam-se nos artigos 24 (educação), 25 (saúde), 26 (habilitação e reabilitação), 27 (trabalho e emprego), 28 (padrão de vida e proteção social adequados) e 30 (participação na vida cultural, recreação, lazer e esporte).

Esses direitos garantidos pela Convenção têm como finalidade emancipar as pessoas com deficiência e lhes garantir o pleno exercício de seus direitos humanos fundamentais.

A garantia desses direitos e a certeza de que a Convenção irradiará seus efeitos para todo o ordenamento jurídico dos países dela signatários se traduzem nos princípios nela consagrados, conforme se depreende da seguinte transcrição do artigo 3º:

                                                                                                                          17

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a) o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas;

b) a não-discriminação;

c) a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade;

d) respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; e) a igualdade de oportunidades;

f) a acessibilidade;

g) a igualdade entre o homem e a mulher;

h) o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade.

Como são verdadeiros pilares para a proteção mínima da pessoa com deficiência nos Estados-Partes, merece especial atenção o postulado da acessibilidade – que igualmente assume a faceta de regra – o qual servirá como guia para este estudo a partir de agora.

1.2.1 Acessibilidade

O princípio da acessibilidade ganha especial relevância na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, seja em razão do seu ineditismo em sede de tratados internacionais de direitos humanos, garantindo a efetivação de outros princípios (plena e efetiva participação e inclusão na sociedade e igualdade de oportunidades, notadamente), seja por apontar, diante da perspectiva social da deficiência inaugurada no diploma, importante elemento que maximiza ou diminui a limitação funcional da pessoa com deficiência.

O princípio em questão induz à supressão de barreiras físicas, de comunicação e atitudes, e clama para que novas dificuldades não sejam erigidas, qualquer que seja a sua natureza, traduzindo-se em dever e direito de incorporar a acessibilidade em todos os aspectos da vida em sociedade. Mais do que isso: determina que todos os espaços e formatos de produtos e serviços devam garantir que os indivíduos com deficiência possam ser seus usuários legítimos e dignos.

(21)

José Afonso da Silva, ao tratar da teoria dos direitos fundamentais do homem, ensina:

No qualitativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. [...] Desde que, no plano interno, assumiram o caráter concreto de normas positivas constitucionais, não tem cabimento retomar a velha disputa sobre seu valor jurídico, que sua previsão em declarações ou em preâmbulos suscitava. Sua natureza passará a ser constitucional, o que já era uma posição expressa no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, a ponto de, segundo este, sua adoção ser um dos elementos essenciais do próprio conceito de constituição.18

Enquanto garantia fundamental, a acessibilidade deve permear toda a legislação nacional dos países que ratificaram a Convenção como ponto de partida mínimo, pois quanto maior for o seu grau de aplicação maior será o grau de dignidade experimentado pela pessoa com deficiência.

Com efeito, para a efetivação da acessibilidade como garantia fundamental, a Convenção traz importantes dispositivos, que devem ser levados em consideração, como o da adaptação razoável, assim conceituado no artigo 2º:

[...] as modificações e os ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.

Contudo, pondera Asís Roig19, a adaptação razoável não substitui o

cumprimento dos requisitos de acessibilidade e sua aplicação deve ser residual

                                                                                                                          18

AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 178.

19

(22)

quando não for possível para o indivíduo em particular utilizar o que foi desenhado para todos, o “desenho universal”, o que deveria ser a regra.

Nesse sentido, também pontua:

De qualquer forma, deve-se deixar claro que a função da adaptação razoável não é substituir os padrões de acessibilidade. A acessibilidade seria a situação a que se aspira e o desenho universal uma estratégia a nível geral para alcançá-la, ao passo que a adaptação razoável seria uma estratégia a nível particular, quando não tenha sido possível prever desde o desenho universal. A necessidade de se realizar a adaptação razoável surgirá porque nem sempre será possível desenhar e fazer todos os produtos e serviços de forma que possam ser utilizados por todo mundo. Em certas ocasiões haverá pessoas que não poderão utilizar um produto ou um serviço determinado, o que demandará uma modificação ou adaptação especial no modo de realizar uma tarfa ou de receber uma informação. Nessa perspectiva, a adaptação razoável será sempre necessária [Tradução nossa].20

O desenho universal, a propósito, é igualmente conceituado pela Convenção no já mencionado artigo 2º:

[...] significa a concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou projeto específico. O ‘desenho universal’ não excluirá as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias.

Por meio do desenho universal, corolário do princípio da acessibilidade, a concepção de produtos, serviços e ambientes deve ser buscar atingir a todos os indivíduos e, quando levada a efeito, pode resultar em algo simples, mas extremamente útil, como é o caso da embalagem do xampu, projetada com a tampa na parte superior do frasco, e a do condicionador, na parte inferior.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, seu protocolo facultativo e a acessibilidade, p. 150.

20

(23)

Em rigor, vale lembrar, que todos esses importantes direitos de nada servirão se não forem efetivamente implementados pelos Estados signatários. A própria Convenção reconhece que medidas legais, sozinhas, não são suficientes para assegurar a proteção e a promoção dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência.

No texto da Convenção, reiteradas vezes, demonstra-se essa preocupação. É o caso do artigo 8, que consigna a obrigação de os Estados aumentarem a conscientização sobre a natureza da deficiência na esfera pública, particularmente para aqueles que trabalham com pessoas com deficiência, enfatizando a importância de promover uma maior consciência social em relação a elas.

Adicionalmente, o artigo 4 inclui o compromisso de “adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção”.

1.2.2 O problema da efetividade da Convenção

O problema da efetividade dos diplomas supranacionais em matéria de direitos humanos é sempre complexo, especialmente em razão das consequências que podem advir do descumprimento das garantias ali asseguradas, que podem incluir embargos comerciais aos países violadores.

No caso da Convenção em estudo, os mecanismos de monitoramento estão previstos em seu próprio corpo, como no artigo 33, cuja disposição encoraja os Estados-Partes a criar um ponto focal no âmbito do governo, com vistas a facilitar as ações correlatas nos diferentes setores e níveis, bem como manter, fortalecer, designar ou estabelecer estruturas, incluindo um ou mais mecanismos independentes.

(24)

internacionais. Esse acompanhamento é realizado por meio de relatórios periódicos, enviados pelos próprios Estados-Partes21, os quais são analisados pelo Comitê, que pode fazer sugestões e recomendações ou até mesmo solicitar informações adicionais relativas à implementação da Convenção.

Mas é no Protocolo Facultativo da Convenção22, igualmente ratificado pelo Brasil, que estão previstas as ferramentas mais democráticas para a efetividade do diploma: as comunicações individuais, denúncias ou queixas de violações aos direitos humanos, que não podem ser anônimas e devem ser bem fundamentadas e compatíveis com os dispositivos, entre outros requisitos indicados no segundo artigo23 do aludido protocolo.

Em obra dedicada ao tema, Eilionóir Flynn, membro do “Centro para Política e Legislação para pessoas com deficiência” da Universidade Nacional da Irlanda, erigiu oito fatores de sucesso para a implementação exitosa das estratégias nacionais para as pessoas com deficiência, baseadas na Convenção:

O primeiro fator de sucesso é a liderança, que deve ser demonstrada tanto pelo governo quanto pelas organizações da sociedade civil. [...] O segundo fator de sucesso é a existência de um processo de consulta significativo para formar a estratégia nacional para a pessoa com deficiência e os mecanismos para continuar a envolver pessoas com deficiência para determinar como a estratégia será implementada e monitorada. [...] O terceiro fator de sucesso a ser considerado é potencializar o grau de integração entre as estratégias nacionais com os processos de implementação e monitoramento da Convenção no nível doméstico [...]. O quarto fator de sucesso                                                                                                                          

21

Conferir: BRASIL. Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Relatório de Monitoramento da Convenção. Brasília, [s.d.]. Disponível em: <http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/relatorio-de-monitoramento-da-convencao>. Acesso em: 2 dez. 2014.

22

Ratificado por apenas oitenta Estados-membros. Cf. UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS. Status of ratification interactive dashborad. Disponível em: <http://indicators.ohchr.org>. Acesso em: 24 nov. 2014.

23

“Artigo 2

O Comitê considerará inadmissível a comunicação quando: a) A comunicação for anônima;

b) A comunicação constituir abuso do direito de submeter tais comunicações ou for incompatível com as disposições da Convenção;

c) A mesma matéria já tenha sido examinada pelo Comitê ou tenha sido ou estiver sendo examinada sob outro procedimento de investigação ou resolução internacional;

d) Não tenham sido esgotados todos os recursos internos disponíveis, salvo no caso em que a tramitação desses recursos se prolongue injustificadamente, ou seja improvável que se obtenha com eles solução efetiva;

(25)

se à obrigação legal de envolver as pessoas com deficiência no planejamento e tomada de decisão, bem como o estabelecimento de fundos que irão sustentar as estratégias nacionais para as pessoas com deficiência. [...] O quinto fator de sucesso relaciona-se aos níveis de transparência e de prestação de contas ao reportar o progresso das estratégias nacionais [...]. O sexto fator de sucesso está relacionado à necessidade de efetivamente centralizar os objetivos da estratégia nacional para as pessoas com deficiência por todas as áreas da política geral de desenvolvimento do país. [...] O sétimo fator de sucesso é a revisão e o monitoramento externos da estratégia nacional para as pessoas com deficiência. [...] Finalmente, o oitavo fator de sucesso é o levantamento de dados e estatísticas para demonstrar o progresso feito no desenvolvimento da estratégia nacional para a pessoa com deficiência [Tradução nossa]24

Em razão da previsão específica que atribui força constitucional aos tratados de direitos humanos, pode-se dizer que o Brasil deu um importante passo para a efetiva implementação da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.

1.2.3 A ratificação da Convenção pelo Brasil

Após a promulgação da Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, quando foram incorporados ao ordenamento jurídico interno, mediante votação com quórum qualificado nas duas Casas do Congresso, em dois turnos, ficou consignado que os tratados de direitos humanos serão equiparados a emendas constitucionais.

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, que gerou o Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, foi assinada pelo Brasil na cerimônia de assinaturas, em Nova Iorque (sede da ONU), em 30 de março de 2007. A sua ratificação, contudo, só ocorreu após o depósito do aludido instrumento na ONU, em 1º de agosto de 2008.

Alçada ao quilate de norma constitucional, a Convenção representa um avanço ainda não experimentado pelo país em matéria de tutela da pessoa com deficiência, especialmente no que tange a garantir a esse grupo de pessoas                                                                                                                          

24

(26)

ferramentas avançadas e com difícil possibilidade de retrocesso para concretizar os princípios nela contidos, aliados aos já existentes na Constituição Federal brasileira.

A partir da incorporação do referido diploma em nosso ordenamento, fez-se necessária a adequação das normas infraconstitucionais aos fez-seus ditames e até mesmo ao texto constitucional. A propósito, a terminologia “pessoa portadora de deficiência”, já teria sido alterada por força da Convenção com status de Emenda Constitucional25.

A legislação pré-existente, no entanto, ainda categoriza a deficiência de acordo com critérios médicos, o que pode ser observado no Decreto n. 5.296/2004, em deficiência física, visual, auditiva, mental e múltipla26. Desta feita, deficiência precisará ser interpretada a partir do disposto na Convenção.

A incorporação da Convenção no ordenamento jurídico pátrio, com força constitucional, sedimenta a já ampla construção possível do direito à informação                                                                                                                          

25

ARAUJO, Luiz Alberto David. Proteção constitucional das pessoas com deficiência. 4. ed. Brasília: CORDE, 2011, p. 6.

26

“Art. 5º Os órgãos da administração pública direta, indireta e fundacional, as empresas prestadoras de serviços públicos e as instituições financeiras deverão dispensar atendimento prioritário às pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida.

§ 1o Considera-se, para os efeitos deste Decreto:

I - pessoa portadora de deficiência, além daquelas previstas na Lei no 10.690, de 16 de junho de 2003, a que possui limitação ou incapacidade para o desempenho de atividade e se enquadra nas seguintes categorias:

a) deficiência física: alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções;

b) deficiência auditiva: perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz;

c) deficiência visual: cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores;

d) deficiência mental: funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais;

4. utilização dos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança;

6. habilidades acadêmicas; 7. lazer; e

8. trabalho;

(27)
(28)

2 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E A PROTEÇÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

E DO CONSUMIDOR

2.1 ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA PROTEÇÃO À PESSOA COM DEFICIÊNCIA

No Brasil, muito embora o princípio da igualdade já constasse em todas as constituições anteriores, a primeira manifestação específica de tutela da pessoa com deficiência ocorreu apenas na Carta Magna de 1934, nos seguintes termos:

Art 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas:

a) assegurar amparo aos desvalidos, criando serviços especializados e animando os serviços sociais, cuja orientação procurarão coordenar;

[...]

e) proteger a juventude contra toda exploração, bem como contra o abandono físico, moral e intelectual;

[...]

f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a moralidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis; [...].

A solução programática trazida pela Constituição de 1937, em seu artigo 127, ficou muito próxima da adotada na Carta anterior. A Constituição de 1946 tangencia o tema ao tratar do auxílio em razão de invalidez (art. 157, inc. XVI).

O texto da Constituição de 1967, alterado pela Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, é mais assertivo, ao dispor, em seu artigo 175, § 4º, que: “Lei especial disporá sôbre a assistência à maternidade, à infância e à adolescência e sôbre a educação de excepcionais”.

Acompanhando o movimento mundial da tutela das pessoas com deficiência, como anteriormente descrito, o maior avanço até a Constituição Federal de 1988 ocorreu na Emenda Constitucional n. 12, de 17 de outubro de 1978, que assim dispunha:

Artigo único - É assegurado aos deficientes a melhoria de sua condição social e econômica especialmente mediante:

(29)

II - assistência, reabilitação e reinserção na vida econômica e social do país;

III- proibição de discriminação, inclusive quanto à admissão ao trabalho ou ao serviço público e a salários;

IV - possibilidade de acesso a edifícios e logradouros públicos.

Contudo, foi só em 1988 que plenamente se operou a tutela da pessoa com deficiência no plano constitucional.

Ainda que de forma repetitiva, a Constituição Cidadã tratou do tema por diversos prismas, que Lauro Luiz Gomes Ribeiro27 destaca como principais:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

XXXI - proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência;

[...]

Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:

[...]II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;

[...]

Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

[...]

XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;

[...] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...]

VIII - a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão;

[...]

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

[...]

IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

[...]

                                                                                                                          27

(30)

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

[...]

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;

[...]

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:

[...]

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.

§ 2º - A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

[...]

(31)

2.2 O PAPEL FUNDAMENTAL DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO ALICERCE DA PROTEÇÃO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E DOS CONSUMIDORES

Na atual fase vivenciada, usualmente denominada de “pós-modernidade”, caracterizada, segundo o filósofo Lipovetski28, pelo individualismo exacerbado (hedonismo), em que a satisfação do indivíduo se sobrepõe à importância da coletividade, a preocupação em conciliar a eficácia dos valores reconhecidamente existentes na ordem jurídica com as leis escritas, no caminho que aponta para a reaproximação da ética com o direito, ganha peso o movimento pós-positivista.

Esse movimento, completa Thaís Novaes Cavalcanti29, é marcado pela construção de uma “ciência jurídica estruturada positivamente, que tenha como finalidade a realização de Justiça por meio de princípios éticos”.

Os princípios éticos, com a finalidade de regular a vida em sociedade para aproximá-la do ideal de justiça, passam a ser reconhecidos como normas jurídicas30, gênero do qual também fazem parte as regras jurídicas, ambas expressas na lei na maior parte das vezes.

Essa assertiva, contudo, embute o problema de como fazer a necessária distinção entre princípios e regras. Sobre esse tema já se debruçaram grandes estudiosos do Direito, como o norte-americano Ronald Dworkin e o alemão Robert Alexy.

Ronald Dworkin31 sustenta que os princípios não se revestem de uma forma que permite a clara identificação de todas as hipóteses nas quais será aplicado, como é o caso do princípio da dignidade da pessoa humana, ao passo que as regras são enunciadas no modelo do “ou tudo, ou nada”, ou seja, ou determinado fato está sujeito à regra ou não está, razão pela qual inclusive as exceções a ela também devem ser enunciadas como se fossem regras. Além disso, aponta outra                                                                                                                          

28

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

29

CAVALCANTI, Thaís Novaes (Org.). Princípios humanistas constitucionais - Reflexões sobre o humanismo do Século XXI. São Paulo: Letras Jurídicas, 2010, p. 385.

30

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 2.6 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 232-238.

31

(32)

diferença entre regras e princípios, só que no campo da importância, ante o argumento de que os princípios a possuem com muito mais vigor e peso, o que falta às regras. Dessa forma, em um eventual conflito entre princípios, a solução do problema passará pela ponderação do peso que cada um tem naquele caso concreto, enquanto que em um conflito entre regras isso não acontecerá.

Robert Alexy32, em linha muito próxima a Dworkin, também atesta que o critério da generalidade é o que diferencia regras de princípios, sendo impossível determinar todas as possibilidades de aplicação destes. Ademais, traz como importante distinção a qualidade dessas normas, pois os princípios expõem seu conteúdo valorativo mais claramente do que as regras, sendo alçados a uma posição de destaque no ordenamento jurídico.

Essa importância maior e a fluidez são características essenciais dos princípios jurídicos no sentido de que possam ser o verdadeiro alicerce de todo o sistema jurídico33

, “normas fundamentais”, como sustenta Ricardo Luis Lorenzetti34, aptas a preencher eventuais lacunas, orientar o intérprete para os valores fundamentais, limitar a atuação do Estado e dos particulares e, ademais, garantir a efetiva aplicação do ordenamento jurídico.

Na condição de alicerce do sistema jurídico, os princípios jurídicos não devem ser aplicados de forma isolada sobre os casos particulares, salvo exceção, tampouco se pode deixá-los em segundo plano, como algo que só será importante na ausência de uma regra específica para o caso (lacuna).

                                                                                                                          32

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Traduzido por Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 98-111.

33

Com maestria, definiu Celso Antonio Bandeira de Mello: “Princípio - já averbamos alhures - é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustém e alui-se toda a estrutura neles esforçada”.(Elementos de direito administrativo. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 230).

34

(33)

Ainda, sobre as funções dos princípios jurídicos, Alexandre David Malfatti35 é enfático:

Uma das funções dos princípios jurídicos é dar conexão lógica ao sistema jurídico, possibilitando a interação e a efetivação das diversas normas. A conexão lógica deve ser bem compreendida pelos criadores, executores e aplicadores do direito. Não se trata simplesmente de explicar a noção de conjunto do sistema, mas isto sim exigir que todos - o criador, o executor, o aplicador do direito e a sociedade - fiquem atentos e respeitem as normas do sistema.

Contudo, essa fluidez, que marca os princípios jurídicos e é necessária para que haja a realização da justiça por meio da sua aplicação, acaba por agregar críticas sobre a insegurança jurídica decorrente da incerteza sobre qual solução será adotada em determinado caso36, dado o grau de indeterminação que naturalmente os caracteriza.

Fato é que ignorar os princípios jurídicos ante tal argumento, especialmente aqueles inseridos na Constituição Federal, é desrespeitar a vontade da sociedade, que optou por deixar bem claro quais eram os alicerces que sustentariam todo o sistema jurídico, na busca incansável dos objetivos ali consagrados: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

Segundo o magistério de Norberto Bobbio37, a Constituição deve desempenhar o importante papel de norma superior e que dá fundamento de validade e eficácia a todo o ordenamento jurídico. Sendo assim, nada mais adequado do que nela se consagrar direitos humanos delineados há séculos, sob a roupagem de “direitos fundamentais” e clara influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Acrescente-se que a previsão constitucional dos direitos fundamentais (positivação) enfraquece o argumento de que os direitos do homem não passariam

                                                                                                                          35

MALFATTI, Alexandre David. O direito de informação no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Alfabeto Jurídico, 2003, p. 50.

36

STRECK. Lenio Luiz. E a professora disse: “Você é um positivista”. 23 ago. 2012. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-ago-23/senso-incomum-professora-disse-voce-positivista>. Acesso em: 6 dez. 2013.

37

(34)

de meros ideais, aspirações, sem a forma de normas jurídicas e, portanto, de discutível aplicabilidade prática38.

O primeiro e mais fundamental dos direitos humanos reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, consagrado na Constituição Federal pátria, é justamente o direito ao respeito à dignidade da pessoa humana, tema abordado na seção seguinte.

2.2.1 O princípio da dignidade da pessoa humana

Vander Ferreira de Andrade39, em dissertação dedicada ao tema, conclui que “a dignidade humana, assim como os direitos fundamentais, representam uma conquista da humanidade em seu perpétuo devir [Grifo do autor]”.

Construção de longa data da cultura ocidental, a ideia de “dignidade da pessoa humana” pode ser concebida como a convergência de diversas concepções de mundo e de doutrina que vêm sendo construídas há séculos, desde o pensamento grego (concepção cosmológica de responsabilidade ética dos estóicos) até seu aprofundamento no decorrer do desenvolvimento do pensamento cristão, marcado pela noção da igualdade de todos perante a criação de Deus40.

Contudo, foi a partir do pensamento de Kant que a discussão em torno do tema dignidade humana foi aprofundada, tornando-se ponto de partida e de grande influência para a maior parte dos pensadores modernos. A ética kantiana é baseada nas noções de razão e dever, na característica própria dos seres humanos de poderem dominar suas paixões e interesses próprios, e construírem, dentro de si,

                                                                                                                          38

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 356-363.

39

ANDRADE, Vander Ferreira de. A dignidade da pessoa humana como valor-fonte da ordem jurídica. Dissertação (Mestrado em Direito)-Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo-SP, 2002, p. 176.

40

(35)

uma lei moral para orientar a sua conduta, sempre colocando o homem como um fim em si mesmo.41

O padrão de racionalidade em Kant é mais bem compreendido a partir do imperativo categórico por ele formulado: “age de tal modo que a máxima da tua vontade possa se transformar numa lei universal”.42

As palavras de Kant, a toda evidência, inspiraram a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em resposta à crise do positivismo jurídico no período das Grandes Guerras e dos regimes totalitários, que dele se aproveitavam para ascender ao poder e aterrorizar o mundo, marcando um ordenamento jurídico eminentemente formal e desprovido de conteúdo ético, como se depreende da leitura da parte inicial do preâmbulo e do seu primeiro artigo:

Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, [...]

Artigo I

Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Na mesma linha de raciocínio, Flávia Piovesan43 assevera que:

[...] o ser humano é concebido como um fim em si mesmo e jamais como um meio, como já explicava Kant. É um ser essencialmente moral, dotado de unicidade e de integridade, sob o manto da dignidade humana, valor fonte da experiência jurídica. Conclui-se que a Declaração Universal de 1948, ao introduzir a concepção contemporânea de direitos humanos, acolhe a dignidade humana como valor a iluminar o universo dos direitos. A condição humana é requisito único e exclusivo, reitere-se, para a titularidade de direitos. Isso porque todo ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano. O valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção. Todos os tratados                                                                                                                          

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BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 70.

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BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial, p. 70.

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Referências

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