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3 RESISTÊNCIA DOS ESTUDANTES DE ENGENHARIA ÀS

3.4 PRINCIPAIS FATORES RELACIONADOS À RESISTÊNCIA DOS

3.4.1 O privilégio do conhecimento técnico-científico

Quando tivemos acesso à história da formação do conhecimento ocidental e de sua influência no processo educacional resgatamos uma série de pensamentos de nossa memória, com relação à nossa época de estudante de graduação no curso de CC. Isso aconteceu no período de 1993 a 1997.

O currículo do curso de CC, no período de nossa formação, era o convencional, estruturado a partir de três categorias de disciplinas: as obrigatórias do ciclo básico, as obrigatórias do ciclo profissionalizante e as optativas. Essas disciplinas eram agrupadas com base no conteúdo e não havia flexibilidade quanto à possibilidade de escolha de disciplinas

oferecidas por outros cursos, nem quanto à antecipação de estudo. A coordenação do curso em acordo com o Instituto de Matemática, onde era localizado, organizava a oferta de disciplinas.

As disciplinas obrigatórias do ciclo básico que cursamos, conforme constam no nosso histórico curricular, foram MAT002 Matemática básica II, MAT195 Cálculo integral diferencial I, FIS121 Física geral experimental I-E, MAT017 Ágebra linear, MAT042 Cálculo II, MAT043 Cálculo III, MAT046 Estatística III, MAT149 Álgebra I, MAT174 Cálculo numérico I, FIS122 Física geral experimental II, MAT160 Modelo probabilístico de pesquisa operacional. Essas disciplinas tinham o objetivo de proporcionar o conhecimento das ciências exatas, que servem de lastro para a compreensão da produção e aplicação tecnológica.

A formação específica do profissional que o curso desejava preparar para a sociedade era promovida por conhecimentos organizados nas disciplinas: MAT150 Introdução aos sistemas de computação, MAT 146 Introdução à lógica de programação, MAT147 Linguagens de programação I, MAT151 Organização de computadores, MAT148 Linguagens de programação II, MAT149 Linguagens de montagem, MAT155 Programação matemática, MAT158 Teoria da computação, MAT152 Estruturas de arquivos, MAT154 Arquitetura de sistemas operacionais, MAT156 Teoria dos grafos, MAT053 Análise e projeto de algoritmos, MAT161 Engenharia de programação, MAT162 Análise e projeto de sistema de informação I, MAT164 Teleprocessamento, MAT153 Construção de compiladores, MAT163 Análise e projeto de sistema da informação II e MAT165 Banco de dados.

Portanto, o conhecimento apreendido na graduação foi alicerçado na Matemática, na Lógica, na Álgebra, nos modelos de abstração da realidade, e, freqüentemente, na aprendizagem de novas linguagens de computação como Pascal, C, Cobol e Assembler, e, ainda timidamente, no estudo de linguagens orientada a objetos, como C ++ e Delphi. Ainda não estudávamos a linguagem Java, que atualmente é a linguagem lastro para o desenvolvimento de muitas tecnologias por conta dos recursos que oferece, possibilitando o desenvolvimento de produtos com características fundamentais no contexto da presente sociedade, como a portatibilidade, flexibilidade e adaptabilidade.

Apesar do predomínio de disciplinas técnico-científicas, existiam as disciplinas optativas oferecidas tanto pelo próprio colegiado do curso como aquelas oferecidas pelas faculdades de Administração, Economia, Filosofia, Psicologia, entre outras. O objetivo dessas disciplinas era apresentar ao estudante uma introdução às Ciências Humanas (Sociologia,

Antropologia, Psicologia, Economia etc.) e às Humanidades (Literatura, Dança, Música, Cinema etc.). Cursamos, então, as disciplinas: FCH162 - Psicologia das Relações Humanas, que enfatizava as relações no âmbito empresarial; MAT159 - Computadores e Sociedade, que abordava questões sociais (ainda muito tímidas) relacionadas ao uso do computador; ECO004 Contabilidade geral 1, que nos iniciava no estudo dos sistemas de controle de custos; ADM171 Introdução à administração, que apresentava uma visão geral sobre as teorias da administração; e DAN051 Prática da dança, que abordava algumas noções relacionadas à música e à dança, como ritmos, movimentos, expressões corporais etc.

Gostávamos de freqüentar e participar dos encontros dessas disciplinas, que representavam um momento em que podíamos dialogar sobre temas relacionados à vida. Entretanto, não estabelecíamos uma relação interdisciplinar entre tais disciplinas e as específicas do curso, que acabavam sendo priorizadas. E, a partir de vários relatos dos estudantes de ECOMP, tanto verbais como escritos, pudemos constatar que eles também apreciam os temas previstos no curso e quando motivados participam efetivamente das atividades propostas. Entretanto, necessitam priorizar as disciplinas de formação técnico- profissionalizantes.

Tenho uma boa relação com matérias de formação humanística [...] nos faz fugir um pouco do pensamento “exato” bastante trabalhado no curso. Com a disciplina TFH, pôde-se realizar atividades que não trabalhavam esse lado objetivo e até meio mecanicista do curso. Por outro lado, mais uma vez voltando á questão de tempo, o cursar TFH pode ter se tornado algo um pouco menos produtivo, na medida em que tínhamos pouco tempo para dedicar a esta matéria (prioridade das exatas e das matérias de computação, ao menos eu penso assim) Daí, algumas vezes as discussões se tornavam repetitivas e até fugiam um pouco de seu real foco, mas, em maior parte do tempo, as mesmas se mostravam muito interessantes (ESTUDANTE 18).

A desmotivação quanto à freqüência e participação às disciplinas humanísticas, relaciona-se especialmente à prioridade que têm que estabelecer entre as disciplinas de formação técnico-profissionalizantes (já que são disciplinas que demandam muitas atividades e, por isso, muita pesquisa e estudo) e as disciplinas obrigatórias, segundo eles, “menos importantes” como EXA 829 – TFH e as optativas. No caso de ECOMP essa demanda está atrelada à necessidade de elaboração dos artefatos que devem ser entregues ao final da discussão dos problemas, como por exemplo: códigos executáveis de programas, relatórios técnicos, artigos científicos; e as listas de atividades solicitadas por disciplinas como Cálculo.

O que aparentava inicialmente ser um simples relatório de pesquisa, do tipo que eu levaria no máximo três horas para fazer na época do colégio, se

transformou repentinamente numa tarefa extremamente difícil e cansativa, requisitando todo um feriado prolongado e mais uma noite perdida para a conclusão do trabalho. O entendimento da parte técnica de três videogames de última geração exigia uma gama de conhecimentos muito extensa para alguém que nunca tivera muito contato com a área de tecnologia além do papel de usuário comum. A maioria (como eu) chegou exausta na UEFS no mesmo dia, sem dormir, para entregar o tão suado relatório e receber imediatamente outro problema cuja primeira etapa deveria ser resolvida em uma semana. Logo começou também o PBL de programação, e a coisa toda começou a sair do controle. Para mim, que não sabia sequer o que era um algoritmo (“não seria ‘logaritmo’??”), a carga de conteúdo que tinha de ser estudada era praticamente inviável. O assunto inicial de fluxograma e pseudocódigo foi dado todo em duas semanas, e sem que eu percebesse já estávamos vendo uma tal de linguagem “C” da qual eu nada entendia. As aulas de programação eram ininteligíveis (principalmente porque em quase todas eu estava “de virote” em função de algum relatório do PBL de hardware, cujos problemas deveriam ser entregues no mesmo dia da aula de programação), as matérias de cálculo estavam cada vez mais complexas e eu simplesmente não tinha tempo para estudá-las em função dos dois PBL, e para completar, alguns professores eram tão confusos (para não dizer ruins) que as suas aulas eram simplesmente o mesmo que nada. No fim das contas, acabávamos por ser completamente autodidatas no curso (ESTUDANTE 3).

Assim, verificamos que, embora existam cursos que apresentem uma proposta curricular integradora e inovadora, como é o caso do curso de ECOMP, o conhecimento internalizado ao longo da vivência dos professores e estudantes foi influenciado pela disciplinarização do saber e do privilégio dos saberes relacionados à técnica e à ciência. O privilégio pelo conhecimento técnico-científico emerge durante a formação dos engenheiros, durante o ato pedagógico.

Constatamos, então, que a formação da subjetividade humana considerando, além do específico, o todo, torna-se, simultaneamente, necessidade e desafio, para todos aqueles que participam do processo educacional. Porque fragmentamos o saber, demarcamos e privatizamos espaços de produção e difusão, criamos identidades coletivas para explorá-los, bifurcamos a cultura, grosso modo, na dos cientistas e na dos humanistas. Além disso, especializamos a força de trabalho humana e separamos a razão da percepção, priorizamos o conhecimento científico ao conhecimento comum, à sabedoria popular. Dicotomizamos o pensar e o fazer, o pesquisar e o apreender, o ensino e a aprendizagem, o corpo e a mente etc. E essa cultura está tão entranhada em nosso corpo-mente-espírito que, ao nos permitirmos fazer algo diferente, que possui outra linguagem, encontramo-nos em um embate com nós mesmos, com a força do nosso Superego.

O conhecimento que foi internalizado ao longo da nossa formação, pelo convívio com os nossos pais, professores, religiosos, grupos musicais prediletos etc. selecionam o que

deveremos sentir, fazer e pensar. E, nesse percurso, quando afrouxamos a amarra da verdade absoluta, que nos foi dita/dada, passamos a enfrentar estados de incertezas e dilemas, porque tocamos nas referências de base.