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CAPÍTULO I – Enquadramento Teórico Conceptual

4. A morte e os seus aspectos antropológicos

4.3. O processo de morrer

Aceitar o fim de vida tornou-se um processo complexo, isto porque vivemos a era das ciências, das tecnologias e da longevidade humana, da escassez do tempo, processo que para Pessini (2009, p. 2)tornam o “(): nosso: morrer: mais: problemático: difícil: de: prever: mais: difícil ainda de lidar, fonte de complicados dilemas éticos e escolhas dificílimas, geradoras de angústia, ambivalência e incertezas”:Observamos a despersonalização da dor e da morte nos hospitais, prolonga-se a vida, mas novas questões bioéticas se colocam: Quando cessar o uso do suporte vital artificial? Quando é que realmente se morre?

Observa-se o prolongamento do processo de morrer, através do tratamento inútil, do tratamento que propõe-se a salvar a vida, mas que promove grande sofrimento, isto porque a morte ainda é tida como um fracasso dos avanços da medicina. Mas temos que ter em conta, que: se: a: “(): morte: é: parte: do: ciclo: da: vida: humana: então: cuidar: do: corpo: que: está: morrendo deve ser parte integral dos objectivos da: medicina” (Pessini, 2005, p. 410). Sabemos que o fim da vida é irremediável, não pode ser detido pelos progressos na saúde e quando a medicina não consegue mais atingir os objectivos de preservar a saúde e curar, novos tratamentos tornam-se uma futilidade. Mas torna-se necessário aliviar o sofrimento, surge então a obrigação moral de parar o que é medicamente inútil e intensificar os esforços no sentido de amenizar o desconforto do processo de morrer (Pessini, 2009).

É neste contexto que se enquadra a perspectiva bioética que representa um processo de preocupação ético-moral voltada aos fenómenos advindos dos progressos na saúde, procurando: “(): criar: mecanismos: para: coibir: eventual: mau: uso: e: ao: mesmo: tempo: fomentar a avaliação de tais fenómenos e desafios de forma integrada às demais ciências, sobretudo: as: ciências: humanas: ()” (Pessini, 2005, p. 12). A bioética é definida por Potter como:a:“():‘ciência da sobrevivência humana’, numa perspectiva de promover e defender a dignidade humana e a qualidade de vida, ultrapassando o âmbito humano para abarcar inclusive a realidade cósmico-ecológica”: (ibidem: 2005: p15): Esta: não: trata: somente: de: acções, mas também de hábitos (virtudes) e atitudes (carácter).

Podemos, pois observar dois enfoques éticos, o europeu fortemente marcado pela ideia de virtude e de carácter, podendo complementar o enfoque norte-americano, que se desenvolveu num contexto relativista e pluralista, mas inspira-se na ciência e regula-se no

postulado científico que impõe submeter toda proposta à sua operacionalidade na vida real (Hossne, 2005, p. 65). Podemos observar que:

A perspectiva anglo-americana é mais individualista do que a europeia, privilegiando a autonomia da pessoa. Está prioritariamente voltada para micro problemas, buscando solução imediata e decisiva das questões para o indivíduo. A perspectiva europeia privilegia a dimensão social do ser humano, com prioridade para o sentido de justiça e equidade preferencialmente aos direitos individuais. A bioética de tradição filosófica anglo-americana desenvolve uma normativa de acção, caracteriza uma moral. A bioética de tradição europeia avança numa busca sobre o fundamento do agir humano. Para além da normatividade da acção, em campo de extrema complexidade, entrevê-se a exigência da sua fundamentação metafísica.

No fim da vida temos várias questões relativas ao doente incurável ou em fase terminal, cujos direitos são idênticos a todos os doentes, seguindo-se os princípios da autonomia, não- maleficência e justiça (ibidem, 2005, pp.364-365). Viu-se surgir questões bioéticas como a eutanásia, cujo conceito é o de tirar a vida ao ser humano enfermo, é um tema preocupante e levanta várias questões éticas em fim de vida. Em Portugal o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (1995) elaborou um relatório acerca de aspectos relacionados ao fim de vida, onde observamos o desenvolvimento de uma nova vertente do cuidar.

Entretanto não é permitido em Portugal, sendo punível por lei, as várias perspectivas de pôr termo à vida, como: aceder ao pedido do doente terminal, fornecendo-lhe os meios para que se mate, auxilia no suicídio; se o médico (ou outra pessoa) aceder ao pedido do doente terminal e matá-lo a seu pedido, pratica a eutanásia voluntária activa; e se o médico (ou outra pessoa) mata o doente terminal incapaz e que não manifestou a sua vontade provoca o ato de eutanásia activa, involuntária. No caso de o médico decidir acatar a vontade do doente, não iniciando ou suspendendo medidas terapêuticas, cujo único efeito é alongar o processo de morte, que o doente expressamente recusou por documento anterior ou recusou antes de ficar inconsciente (em coma irreversível, por exemplo), passa a ser uma decisão eticamente sustentável se for acompanhada de todas as medidas necessárias a assegurar o conforto e bem-estar da pessoa em processo de morte e mesmo que estas medidas possam, presumivelmente, e não havendo alternativa, reduzir a duração do processo de morte. A medicina curativa vem gradualmente a ser substituída pela medicina de acompanhamento, em que não é só o técnico decide sobre o que fazer com um corpo cuja vida biológica está a extinguir-se, mas sim a pessoa humana com todo o seu percurso histórico, cultural e social que acompanha o seu semelhante por um tempo breve até à sua morte. Daniel Serrão no Parecer 11/CNECV/95 (Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida [CNECV], 1995, p. 5), refere que é

necessário, na perspectiva ética, traçar uma linha clara de distinção entre decisões médicas que constituem formas activas de produzir a morte dos doentes – a:“morte: médica”: como: lhe: chama: Siegler: – e as decisões de manter ou suspender meios artificiais de manutenção de vida, quando esteja medicamente indicado, bem como a decisão de aplicar todas as técnicas que atenuem as dores e produzam conforto e bem estar nos doentes moribundos.

Na Holanda e Bélgica a eutanásia foi legalizada em 2002, no Luxemburgo. As questões do fim de vida foram divididas em distintas áreas, como: decisões de não tratar, que resultam em morte; o alívio da dor e sofrimento, que resulta na abreviação da vida; eutanásia e suicídio assistido; acções que abreviam a vida da pessoa sem pedido explícito. Abriu-se assim a

discussão sobre as decisões médicas em final de vida, incluindo a vontade do doente em todo processo (Pessini, 2005).

Gallha (2013) apresenta-nos: o: caso: de: ‘Maria’: a: primeira portuguesa a solicitar ajuda para morrer. Portadora de doença incurável, o seu desespero perante a sua sentença, o sofrimento e a degradação progressivos levaram-na a procurar ajuda para morrer conforme as suas convicções, lúcida e consciente. Pelo que solicitou ajuda a uma associação de apoio à morte assistida em Zurique, Dignitas, falecendo a 24 de Junho de 2009. A mesma autora refere um estudo efectuado pelo: ‘Economist Intelligence Unit’ que avaliou recentemente a ‘qualidade:de:morte’:em:40:países, estando Portugal no 31º lugar. O estudo levou em conta quatro categorias: o ambiente de cuidados de saúde básicos em fim de vida, a disponibilidade de cuidados em fim de vida, o custo dos cuidados em fim de vida e a qualidade dos cuidados em fim de vida:Será:este:o:reflexo:do:desespero:de:‘Maria’?:Como:se:acompanha:o:doente:em: fim de vida?

Actualmente observa-se um novo paradigma no acompanhamento à pessoa em fim de vida, como refere Hennezel (2006, p. 124), “Todos: sabemos: como: os: moribundos: têm: o: sentimento de estar sós e abandonados. Procura-se hoje restaurar uma cultura do acompanhamento:no:sentido:de:atenuar:o:sentimento:de:solidão:que:preside:ao:fim:da:vida”: É verdade que anteriormente o acompanhamento em fim de vida foi tradicionalmente dirigido à morte, era mais importante ocupar-se da alma do que dos cuidados ao corpo. A concepção de cuidar:do:‘moribundo’:foi:dando:lugar:ao:cuidar:‘da:pessoa:em:fim:de:vida’:isto: é, acompanhar enquanto há vida, dar importância a tudo o que possa alterar ou perturbar a qualidade de vida que lhe resta (Sociedade Francesa de Acompanhamento e de Cuidados Paliativos [SFAP], 1999).