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O professor do ensino fundamental é, ou não é, não-leitor?

4. A FORMAÇÃO DO PROFESSOR: caminhos enviesados

4.1 O professor do ensino fundamental é, ou não é, não-leitor?

A precariedade retratada nas atividades que envolvem a leitura demonstra a realidade brasileira que parece alimentar um sistema educacional sem estruturas mínimas capazes de promover, pelo menos, a leitura básica dos seus alunos. Dificuldade para compreender o texto e para interpretá-lo coerente com o objetivo proposto pelo autor e pela funcionalidade que representa, demonstra o nível de analfabetismo funcional de muitos brasileiros.

Entretanto, quando a referência aos problemas de leitura está direcionada para uma outra área, que não seja a educacional, os olhares críticos e indignados com a realidade se voltam para a estrutura de ensino, culpando normalmente os professores formadores desses profissionais. A indignação se manifesta através de questionamentos que naturalmente geram, tais como: o que esses professores fizeram durante os tantos anos de estudo desses cidadãos? Como essas pessoas conseguiram o certificado que lhes conferem o nível técnico ou superior?

Mas, e quando os problemas de leitura estão relacionados às práticas dos próprios professores, a quem devemos atribuir a responsabilidade? Como resposta, o que podemos ver, habitualmente, é a atribuição de que “os professores são ‘não-leitores’.

Esta é, pelo menos, a representação social da leitura docente com que, em maior ou menor grau, defrontamo-nos hoje” (BATISTA, 1998, p. 24). Fato que parece ser considerado a “causa” das próprias inadequações na formação do professor, ou mesmo, das falhas do sistema educacional. A visão social de que o professor é um não-leitor parece ser conveniente por justificar as incoerências existentes na educação, re-direcionando o foco das análises e das reflexões, e atribuindo a esse fato a condição de

“causa” de muitos dos problemas educacionais. O que aparentemente exclui qualquer possibilidade de termos a condição de professores não-leitores, se é que pode existir de fato essa situação, como “consequência” do próprio sistema educacional em si.

Se a representação social do docente brasileiro é de ser um (não-)leitor, a leitura não faria parte das suas necessidades cotidianas, e não seria o instrumento usado por ele para construir um sentido da realidade, e nem como uma ferramenta que o auxilia na compreensão do mundo. Não a usaria também para buscar conhecimentos e informações. “Não lhe possibilitaria, por tudo isso, desempenhar, plenamente, seu papel de formador de alunos como leitores, e contribuir, de modo positivo, para a sua inserção

no mundo da cultura escrita” (BATISTA, 1998, p. 26). A questão é, quais são os critérios para julgarmos um profissional leitor ou um não-leitor?

Para BRITTO (1998, p. 61, grifo do autor), “ser leitor tem sido tomado como qualidade positiva, como algo que torna as pessoas mais críticas e conscientes, mais verdadeiras e cidadãs. Ser não-leitor seria, por sua vez, uma espécie de deficiência essencial, quase uma mutilação, no mínimo algo de que se deve envergonhar.”

A imagem criada e difundida sobre a (não)leitura dos professores parece-nos uma armadilha vertiginosa, pois, normalmente, preconiza-se o discurso de um segmento intelectualizado. Os parâmetros para analisar as condições de um “leitor” parecem ser estabelecidos a partir dos tipos de textos lidos, da complexidade dessas leituras, das listas de autores considerados imprescindíveis, das leituras intensivas e densas que o leitor deve ter como hábito, e das (re)significações que é capaz de realizar.

Nesses parâmetros, o que podemos inferir como sendo os critérios gerais para ser considerado um “leitor”, com direito a status social de reconhecimento como intelectual, são condições estabelecidas, provavelmente, a partir do “refinado” gosto pela leitura que o leitor deve possuir. Parece, também, que a avaliação social do bom leitor ainda se prevalece da visão romântica dos clássicos, em que o leitor deve ter na atividade de leitura, acima de tudo e qualquer coisa, como meio de diversão, de fruição, de usufruto. A visão sobre o bom leitor parece sair das imagens descritas na literatura clássica e em obras de arte consagradas, em que essa atividade, para ser validada como leitura ideal, deve ocorrer em lugares que nos remetam a tranqüilidade bucólica, tornando-a o mais natural e prazeroso possível. Vale advertir que, a nosso ver, a partir dessas condições pré-estabelecidas podem surgir imposições dos aspectos de uma cultura elitizada, e elitizante, que nega e exclui outros tipos de leituras possíveis, e outros padrões de se conceber a leitura.

A visão, aparentemente, imatura e superficial sobre a caracterização do homem leitor, quando comparada à atual realidade social, pode promover a análise e avaliação do mesmo a partir de conceitos indeterminados e obscuros. BRITTO (1998, p. 62) afirma que “é preciso inquirir com mais cuidado o que se quer dizer exatamente quando se afirma que um indivíduo é um não-leitor.”

A condição do professor vista como um (não-)leitor defronta-se com um conjunto de contradições que devem ser consideradas, pois, permite-nos uma série de interpretações e reflexões. A primeira dessas, é a própria conceituação do termo “leitor”, que nos parece ser “sustentado por impressões vagas, conceituações imprecisas, tácitas, que, por sua vez, se constituem a partir de representações de leitura historicamente estabelecidas”, como afirma BRITTO (1998, p. 63).

Em primeiro lugar, se entendemos esse (não-)leitor como um sujeito possuidor de dificuldades em compreender e interpretar textos mais complexos, a esse respeito não podemos deixar de considerar que os professores foram, ou são, estudantes nesse mesmo sistema, portanto, são frutos das mesmas inadequações educacionais que outros profissionais. Parece que a visão, ainda cartesiana, não nos permite analisar cada professor como um ser integral, cujas vivências e experiências não se dissipam ao ingressar no curso profissionalizante, desvinculando-o de sua história de vida educativa e social anterior à faculdade, ou ao curso técnico. Mesmo porque, esses cursos não estão direcionados para corrigir os “defeitos” de uma formação de base já problemática.

Em segundo lugar, se conceituamos o (não-)leitor como aquele sujeito que não tem a leitura como uma atividade de prazer, de descontração, de uma forma intelectualizada de passar o tempo, e que não se encaixa nos padrões de leitores descritos na literatura clássica, estamos descartando e discriminando o leitor que vê na leitura, somente, a importância de seu caráter utilitário e nela estabelece e estrutura a sua atuação profissional, que é um direito que lhe cabe. Talvez esse decreto de que tais sujeitos são, por assim considerar, (não-)leitores por não encontrarem prazer e descontração na literatura, uma forma preconceituosa de considerar que o nosso gosto, os nossos sentimentos, as nossas percepções, e a nossa visão sobre as diferentes maneiras de uso da leitura devam ser o padrão de qualificação para todas as pessoas.

Por esse motivo, é preciso analisar com muita cautela essa representação social de que o professor é um (não-)leitor.

Na perspectiva que considera a formação do professor não somente na universidade ou pelas teorias com as quais entra em contato, mas também durante a sua trajetória profissional através de suas práticas pedagógicas, a leitura faz parte da vida do professor e se apresenta como um papel fundamental. CAVALLI (2006), defende a importância das práticas pedagógicas de leitura como uma ferramenta na formação continuada do professor, pois, na interação que ele tem com os textos nos momentos de preparação de aulas, ou mesmo quando as ministra entrando em contato com as muitas leituras feitas pelos alunos, ou quando reflete sobre suas práticas pedagógicas de leitura, ele amplia e reconstrói seus saberes, realizando sua autoformação. Essa concepção de formação continuada através das práticas de leitura realizadas em sala e durante o preparo das aulas, defendida pela autora, transforma o professor em um leitor em potencial.

Em terceiro lugar, não podemos esquecer que a legitimação do discurso que estabelece a condição de (não-)leitor ao professor garante a manutenção da política do livro didático e, portanto, da alienação e limitação pedagógica. O próprio discurso do livro didático justifica a sua criação e manutenção quando apresenta o professor como sendo

um profissional incapaz de elaborar suas próprias atividades e materiais pedagógicos. O fato de o professor ser visto e considerado como um (não)leitor, propicia a necessidade de elaboração de material didático específico contendo todas as informações necessárias ao seu uso, os encaminhamentos pedagógicos e, até mesmo, estabelecendo a fala e o comportamento desse profissional em sala de aula, como podemos verificar em muitos manuais de livros didáticos.

A produção do livro didático passa a ser concebida e aceita como a alternativa mais viável, uma vez que o discurso do senso comum, adotada pelas editoras, afirma que as condições de trabalho do professor não lhe permitem muito tempo para leitura e elaboração de seu próprio material. Aliada a esses argumentos, ainda contamos com afirmações de que as deficiências na sua formação, também, não lhe propiciam condições de reflexão sobre as verdadeiras necessidades dos alunos.

O caráter autoritário presente em muitos manuais de livros didáticos apresenta a imagem do professor como um ser incapaz de definir o que é necessário ou impossível de realizar. Apesar de enfatizarem a autonomia do professor, o que podemos verificar é a condição de um ser autômato, pois os autores chegam a programar as aulas, as falas, as respostas, os possíveis questionamentos, etc. Afirmam, ainda, que as respostas prontas servem apenas como sugestões para facilitar o trabalho do professor. Essa concepção de professor representado nos manuais de livros didáticos subjaz a idéia de “um leitor limitado, incapaz de ir além da decodificação imediata, incapaz de produzir intelectualmente e, portanto, incapaz de dar conta do processo de ensino” (BRITTO, 1998, p. 74-76).

Na conclusão de suas críticas, BRITTO (1998, p. 77-78) declara que “não cabe afirmar que o professor é não-leitor, uma vez que ele é produto de uma sociedade letrada e manipula informações e produtos de escrita. Mais ainda, ele lê freqüentemente diferentes tipos de textos”. Mas também não vê condições para que se tenha o professor como um leitor, porque para boa parte dos mesmos, a “prática da leitura limita-se a um nível muito pragmático, dentro do próprio universo estabelecido pela cultura escolar e pela indústria do livro didático”. Dessa forma, “mais que ser leitor ou não-leitor, o professor é um leitor interditado”.

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