• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 5 – A PERFORMANCE MULTI-INSTRUMENTISTA NA DOCÊNCIA

5.1. O Professor Multi-instrumentista: a pluralidade na sala de aula

Ao relatarem as suas experiências enquanto docentes em música, dois dos professores entrevistados apontaram que o desejo de ensinar estava presente desde os primeiros conhecimentos aprendidos e essa vontade caminhava junto ao interesse em aprender música. Em seus primeiros passos nos caminhos musicais esses professores procuravam auxiliar outros colegas:

Olha, essa coisa de ensinar, de ajudar, eu sempre tive comigo. E independente de pensar nessa ideia de ser professor, eu já ajudava desde a fase de adolescente, lá atrás, um ou outro colega ali no coral comigo cantando, ele errava e eu ajudava e ‘tal’. Sempre foi um presente na minha vida, mas, a partir do momento que eu vi a coisa começando a caminhar, quando eu tive a oportunidade de entrar no ‘Projeto Espiral’ e vi que aquilo poderia se tornar uma realidade também, eu fazendo ‘pra’ outras pessoas, e eu sabendo que eu já conhecia uma gama de pessoas na igreja onde eu frequentava que também gostariam e não tinham as condições pra aprender, a partir dali, eu comecei a pensar que eu poderia ajudar essas pessoas. Necessariamente eu não me vi professor, mas eu me vi um colaborador ensinando o que eu sabia. E aos poucos a coisa foi tomando todo um formato ‘pra’ essa linha do ensino, né?! (Professor Edson, março de 2018).

Essa fala do Professor Edson nos remete a pensar no contexto em que ele está inserido (eclesiástico), onde os ensinamentos muitas vezes são voltados para o amor ao próximo e para a colaboração mútua entre os que compõem esse ambiente. Entretanto, esse pensamento também estava presente no discurso do Professor Ailson, o qual faz parte de um contexto diferente do primeiro:

Aí comecei a reunir os ‘instrumentozinhos’ e comecei a formar uma banda de amigos, né, os que também tinham interesse pela música da

rua. E eu tentava passar ‘pra’ eles o que eu já tinha aprendido em casa. Aí eu passava ‘não, faça assim, melhore isso, faça assim e tal, tem essa técnica, tem esse exercício’, aí eu ficava passando para os meus colegas (Professor Ailson, abril de 2018).

Foi interessante observar que, apesar das suas inclinações para a docência, esses dois professores não possuem o curso superior em licenciatura, porém, as suas carreiras sempre foram direcionadas para além da prática de performance dos seus instrumentos. Nas suas narrativas, a presença da docência foi constante, e na vida dos dois, ela predominou/predomina as suas atividades. Essa maneira de se “formar educador” associa-se ao que diz Paulo Freire: “ninguém começa a ser educador numa certa terça- feira às quatro horas da tarde. Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática” (FREIRE P, 1991, p. 58).

Sobre o interesse em ensinar, O Professor Artur alegou que foi uma consequência da sua formação e, apesar de não preferir a docência e não ser algo que o acompanha desde o início da sua carreira com a música, ele afirmou que se sente realizado com a prática educacional: “Eu aprendi a gostar de dar aula, eu gosto, eu me divirto, eu gosto do resultado”. E mais à frente durante a entrevista ele pontuou:

O que eu mais gosto de fazer é ter o contato musical e tenho me descoberto como professor. Então, eu achei aqui um pouso e eu ‘tou’ gostando bastante de trabalhar, de conseguir com uma grande liberdade me expressar aqui dentro, deixar trabalhar com músicas que eu gosto, então, é a maneira que eu consigo ver de maior felicidade agora, por enquanto (Professor Artur, abril de 2018).

A satisfação em dar aula está relacionada à sua maneira de enxergar a música. Para o multi-instrumentista, o prazer está em fazer música em toda a sua totalidade: “Então, gosto de cantar, gosto de reger, gosto de ensinar. Tudo nessa área da música eu acho que é valido” (Professor Edson, março de 2018). Essa maneira de pensar a música reflete sobretudo na maneira de pensar a aprendizagem do aluno. Assim, esses professores passam a solucionar os problemas das aulas, trazem desafios e promovem a interação entre os alunos e a música, entre o grupo e o professor. Para o Professor Artur, as práticas em conjunto vividas na Educação Básica o levam a pensar sobre as necessidades de cada aluno e a procurar maneiras de incluir todos os presentes no fazer musical. Dessa forma, o seu planejamento visa alcançar cada particularidade encontrada nas turmas e esse discurso também esteve presente na fala dos outros professores:

Eu tinha que olhar, e aqui é o ponto crítico que eu acho mais interessante do desafio, mas eu gostei/tenho gostado, porque eu tinha que fazer um arranjo pensando no que aquele aluno tecnicamente podia responder no instrumento. Então eu tinha que encontrar, dentro do acorde, uma nota que ele já sabia tocar e eu usava aquela nota e uma outra nota que ele não sabia, mas, ele poderia aprender, que não fosse tão difícil assim, e aí era um desafio. ‘Pra’ que não ficasse numa ‘mesmisse’, nem ficava sempre tudo muito fácil. E aí eles iam desafiando a si próprios também e aceitando também os desafios que eu lançava (Professor Edson, março de 2018).

Eu vou fazendo porque eu vejo a coisa mais importante ‘pra’ mim é o aluno, né. O aluno ele tem necessidades. Aí eu tenho aquele compromisso com o aluno de realizar aquilo que ele deseja. Então, ele vai me mostrar onde é que ele quer trabalhar com a música, ou sei lá, o desejo dele, o que é que ele quer conseguir através da música, né. Então eu mostro ‘pra’ ele os valores da música, e vou tentando fazer com que ele siga o caminho dele (Professor Ailson, abril de 2018).

Graças ao conhecimento prévio sobre outros instrumentos, sobre harmonia, ritmo e melodia, esses professores conseguem relacionar cada um desses parâmetros com o conteúdo que será dado em sala de aula. Apoiados em sua característica multi- instrumentista, esses professores conseguem ter uma visão mais ampla das necessidades dos alunos e podem ir além delas, estabelecendo metas e objetivos a serem cumpridos por eles, procurando sempre conquistar a alegria e satisfação desses alunos ao realizarem as atividades propostas.

Além disso, mesmo em contextos e situações diferentes, a narrativa desses professores mostrou que eles sempre buscam uma maneira de integrar esses alunos, independentemente dos níveis de habilidades encontrados nas turmas.

Aí eu vou percebendo quem é que tem, vou fazendo testes, né, apresentando os instrumentos, noções rítmicas e vendo como é que ‘tá’. Vejo que uma menina se adapta mais ao teclado e coloco ela ‘pra’ fazer só tônica e terça de um acorde, [...] depois coloco alguém que tenha uma aptidão rítmica um pouco melhor, coloco na bateria pra fazer “tum tá, tum tum tá”. [...] Aí já tenho essa base e vou encaixando alguns que eu percebo que não ‘tão’ conseguindo ainda nem contar tempo, aí eu coloco algum efeito, alguma coisa. Mas, basicamente, eu consigo com quatro dos sete alunos colocar ‘pra’ contar compasso, marcar e fazer acordes diferentes. E essa minha característica de multi-instrumentista e ter participado de bandas fazendo papeis diferentes faz com que eu tenha uma noção por cima do arranjo da música, olhe de cima e perceba de acordo com a limitação e a capacidade dos alunos o que ele vai poder fazer ‘pra’ integrar uma música (Professor Artur, abril de 2018). Eu fico muito preocupado sempre em atender e contemplar todos que estão naquele ambiente. Seja no coral, seja na ONG, seja numa aula. Os

alunos que estão ali, os coristas que estão ali, de alguma maneira eu preciso incluir todos eles. E aí eu vejo que uns tem um pouco mais de conhecimento, o outro tem menos. Então eu fico tentando, de alguma maneira, passar aquilo que eu ‘tou’ fazendo, seja um ensaio, seja uma aula, de uma maneira que contemple ‘pra’ todos. [...] Então eu fico tentando colocar todos esses dentro do mesmo plano ‘pra’ gente caminhar. Cada um com sua limitação, mas com suas virtudes, cada um com suas experiências e conhecimento (Professor Edson, março de 2018).

Assumir-se multi-instrumentista é considerar que cada pequeno aprendizado em um instrumento é válido e torna-se parte da sua bagagem musical. Desta forma, ao pensar seus alunos e considerar suas habilidades, esse professor consegue determinar múltiplas funções em uma mesma aula, integrando e dando significado a todos os níveis de aprendizado. Essa preocupação em atender ao aluno a partir dos seus conhecimentos prévios está diretamente relacionada ao segundo princípio apontado por Swanwick (2003) sobre propostas para o ensino de música, que diz respeito a considerar o ‘discurso musical dos alunos’. Dessa forma, a partir do que cada sujeito traz para a sala de aula esses professores podem fundamentar os seus planejamentos e a inclusão desses alunos passar a ocorrer de forma natural corroborando com o que diz Arroyo:

As práticas de educação musical, escolares ou não-escolares, são espaços de criação e recriação de significados e, portanto, de cultura. Nesse sentido, educação musical deve ser muito mais do que aquisição de competência técnica; ela deve ser considerada como prática cultural que cria e recria significados, que conferem sentido à realidade. (ARROYO, 2000, p. 19)

Outro ponto importante encontrado na fala dos professores analisados é a necessidade de atualização dos seus conhecimentos. Inicialmente essa necessidade surge por interesse na performance musical, entretanto, ela se estende à sua prática docente.

As questões dos arranjos, das estruturas musicais, como eles não tinham orientação, eu ia passando o que eu aprendia e cada vez eu fui me interessando em pesquisar mais sobre música, né. Na música erudita era a minha base e eu conseguia fazer um mix com a música popular. Eu viajava nos dois universos, na música popular e na música erudita (Professor Ailson, abril de 2018).

Sobre esse processo de atualização, o Professor Artur exemplificou com momentos em que precisou estudar técnica vocal e harmonização voltada para a prática coral. Segundo ele, apesar de saber sobre harmonia e canto, essa função de reger coro e dividir vozes ele não dominava, para tanto, fez e ainda faz pesquisas sobre essa prática.

Do mesmo modo, o Professor Edson alegou que já precisou por diversas vezes levar algum instrumento musical para casa e dedicar um pouco do seu tempo ao estudo de métodos e técnicas para poder responder as dúvidas de seus alunos.

É a motivação em entender e fazer música com todas as suas formas que desperta a disposição em se adaptar às circunstâncias que surgem nos diversos contextos em que atuam. Essa característica faz com que percebam a necessidade de estudar e compreender um pouco mais sobre o fazer musical. Nas palavras do professor:

“Então, ‘pra’ mim foi também, todos esses questionamentos, essas dificuldades que apareceram, foram estímulos para mim procurar mesmo desenvolver a música e fazer com que ela seja uma coisa democrática, né, uma coisa cidadã” (Professor Ailson, abril de 2018). O Educador Multi-Instrumentista vive numa espécie de ciclo de aprendizagem e ensino, no qual, a partir das dificuldades encontradas ele busca um novo conhecimento, coloca-o em sua prática, ensina a seus alunos até chegar o momento onde se depara com uma nova dificuldade, dessa forma ele recomeça todo o processo. Como podemos observar na figura:

Figura 1: Ciclo de ensino-aprendizagem do Professor Multi-Instrumentista. Fonte: a autora (2018).

Eles sentem a necessidade em viver na prática tudo aquilo que estão ensinando, portanto, ao se depararem com uma situação desconhecida ou uma nova meta desejada, esses profissionais procurarão experimentar e executar o novo conhecimento para depois repassá-lo aos seus alunos. Para esses professores, há uma necessidade de compreensão e internalização da música em toda a sua multiplicidade:

Mas essa matriz é mais importante e é o que eu ‘tou’ tentando mais desenvolver ultimamente. Deixar livre assim, tocar qualquer

Novo

conhecimento

Execução

Ensino

Desafio

instrumento, mas perceber antes de tudo a intenção. Eu calado, só pensando, eu posso imaginar perfeitamente como a música pode se comportar e como cada instrumento pode se comportar. Então eu acho que é isso, de musicalidade matriz assim de saber o som que você quer, tipo, tentar antecipar um pouco o som e depois aprender a tocar o que você ‘tá’ tentando antecipar (Professor Artur, abril de 2018).

Importante frisar que essa maneira diferente de ver a música é propagada em suas aulas, em sua maneira de tocar, em sua forma de falar sobre música, bem como, no seu dia a dia. Eles procuram mostrar para todos como a música é grandiosa e cheia de possibilidades.

Olhe, eu acho que a música é como se fosse um quadro... um quadro onde você pinta ele, mas você tem que ter cores. Você não pode pintar um quadro de uma cor só. Ninguém vai entender nada. Vai pensar que é uma cor num quadrado lá. Agora se você tiver várias tonalidades de uma cor? Você já dá ‘pra’ entender alguma coisa. E se você tiver cores variadas? Né? Então eu colocava ‘pra’ eles como se os instrumentos fossem cores. [...] Eu ‘num’ achava que eu tinha que só pintar com uma cor só. Então a minha visão primordial é essa condição de você ver a música dessa forma (Professor Ailson, abril de 2018).

Desta maneira, o professor Multi-instrumentista busca unir a realidade de cada aluno, com o contexto onde está inserido, com os conhecimentos prévios trazidos pela turma e com toda a pluralidade encontrada no seu próprio fazer musical. Como afirma Maura Penna (2006):

Esta necessidade de o educador compreender, respeitar e interagir com a especificidade do grupo implica uma postura de aceitação da diversidade – e queremos enfocar, particularmente, a diversidade cultural. Lidar com a pluralidade evita, portanto, o etnocentrismo de tomar como referência a nossa própria música (inclusive considerando- a “redentora”), desconsiderando as produções artísticas, culturais e musicais dos grupos com que se trabalha. (PENNA, 2006, p. 38-39) É válido salientar que algumas das características aqui encontradas não são exclusividade do professor multi-instrumentista, muitas delas são atributos que todo Educador Musical pode ou deve construir ao longo do seu percurso enquanto docente e que apareceram na fala dos colaboradores durante as entrevistas.