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O quarto de dormir: usos, tempos e signifi cados

No documento Educações no Alentejo (páginas 65-69)

À medida que avançamos na análise dos dados ganha força a constatação de como os modos de apropriação do quarto de dormir da criança, nomeadamente os usos, tempos e signifi cados que lhe são atribuídos, são co-construídos na relação imediata com os outros membros do agregado familiar. Desde logo com os adultos – pais e outros co-residentes – mas também com as crianças presentes, sobretudo nos casos em que existem irmãos.

Manuel [E4] tem 7 anos e co-reside em Évora com a mãe, uma técnica de telecomunicações com o 9.º ano de escolaridade, e uma a materna. Detalhou na entrevista que nha um quarto “só” para si, mas que apenas u lizava para brincar. Porque tem “medo de dormir sozinho”, Manuel dorme geralmen- te no quarto da mãe (divorciada), e estuda na cozinha, “quase sempre com a a”. É esta, aliás, quem mais o acompanha do ponto de vista escolar e par cularmente nos exercícios de matemá ca, como relatou quando nos disse “gosto de matemá ca porque sei fazer uma conta muito grande. A conta é

498+498 e o resultado 996!”. É quando recebe amigos em casa que o quarto de Manuel “ganha vida”,

pois nessas alturas é para aí que vão brincar ou jogar computador.

Num outro caso, o do Miguel [E5], assumem relevo par cular as dinâmicas que se criam entre a fratria. Miguel tem 7 anos e vive com os pais em Quintal (Mafra). O pai tem o 9.º ano de escolaridade, é electricista e proprietário de uma pequena empresa do ramo; a mãe tem o 12.º ano e é técnica na Câmara Municipal. São quatro irmãos ao todo e o seu quarto, em par cular, é par lhado com um irmão de 20 anos. No desenho que nos devolveu desenhou um quarto sem brinquedos12. Relatou-nos, mais

tarde, que tem a televisão e o computador portá l na sala, onde também joga xadrez, tanto no tabulei- ro como no computador, on-line. Pra ca judo e “de vez em quando brinca com os amigos”, acrescentou no fi nal.

Uma análise mais detalhada dos dados obriga-nos, assim, a romper com as pré-noções do senso co- mum. Como vimos, as ac vidades de “dormir”, “estudar” ou “brincar” não são necessariamente levadas a cabo no espaço do quarto, e este facto não é, por si só, necessariamente “bom” ou “mau”, “posi vo” ou “nega vo”, “benéfi co” ou “prejudicial” para as crianças. É, aliás, por contraponto a uma abordagem norma va, linear e monocromá ca que o pluralismo subjacente à ideia de infâncias deve estender-se também à análise dos seus espaços, tempos e culturas.

Em suma, o quarto de dormir é uma representação do mundo atravessada pelas culturas da infância, tanto no que concerne às formas culturais produzidas e dirigidas pelos adultos para as crianças (e.g. as

12. Entregámos-lhe uma folha branca mas disse-nos que “não”, e foi buscar uma das suas. No fi nal, Miguel devolveu-nos uma folha de cor verde. A aceitação, por parte das inves gadoras, desta “excepção” é expressão da negociação na entrada do campo e da necessária fl exibilidade tendo em vista o objec vo maior que é o de captar a voz (neste caso o gesto) da criança e com isso “descobrir” os seus mundos e as suas culturas (Graue & Walsh, 2003).

que derivam da forte presença da escola nos quo dianos das crianças, da relação com as tecnologias da informação e comunicação, com a cultura popular mais ampla e a indústria cultural especifi camente desenvolvida para a infância), quer das formas culturais produzidas pelas crianças nas interacções que mantém entre si (e.g. sociabilidades e brincadeiras). Tal como refere Sarmento (2003), é observável uma expansão de produtos culturais des nados à infância, nomeadamente programas e séries televisi- vas, fi lmes, espectáculos e performances diversas, jogos informá cos ou literatura de carácter infan l, entre outros. Esta expansão é paralela à existente rela va a outros produtos de consumo, sejam eles brinquedos, material escolar, vestuário e acessórios ou até mesmo serviços de lazer (e.g. Disneyland ou

McDonalds’s). Tal como afi rma este autor, esta difusão contribui para a “globalização da infância”, na

medida em que proporciona a iden fi cação e par lha do universo imaginário, narra vas e consumos da infância a nível global.

Vejamos o caso de Ana [E6], cujo desenho é, desde logo, paradigmá co no que diz respeito à in- terrelação entre “culturas escolares”, “culturas da infância” e “culturas familiares” (Barbosa, 2007). Ana é uma aluna de “5 a Desenho”. Quando recolhemos o desenho disse-nos: “fi z tudo a régua, com

a perspec va que aprendi a Desenho”. Tem 13 anos e vive em Évora com a mãe, uma operária fabril

ex-casada com um mecânico. Quando lhe perguntámos se brincava no quarto respondeu-nos: “brinco

não, divirto-me!”. No elenco dos objectos que tem no quarto destaca o MP4 e o computador portá l,

que u liza tanto para estudar como para jogar, sobretudo “jogos de ves r, de pintar e de maquilhar” (on-line, na Internet).

O computador assume também centralidade no quo diano de Diana [E7]. Tem 12 anos e um quarto de dormir individual em Vila Nova de Azeitão, onde reside com o pai, a mãe e uma irmã de 23 anos. A mãe é domés ca, tem o 9.º ano de escolaridade; o pai é construtor civil e tem o 12.º ano. Normalmen- te estuda na cozinha, que é também onde a mãe passa mais tempo. Tem brinquedos no quarto mas disse-nos que não brinca muito. Ao contrário, habitualmente está mais “agarrada ao computador”. Isto apesar de este não estar no quarto, mas na sala, já que “existe apenas um computador para todos”. Pode u lizá-lo mas as regras, essas são defi nidas pelos adultos (pais): não pode “ir a qualquer hora”, usualmente “apenas depois dos TPC”; tem cuidado para não “estragar e para não apanhar vírus” e, no

Facebook tem pessoas que não conhece mas só fala “com conhecidos”.

O caso de Hannah [E8], uma menina de 7 anos que entrevistámos em Évora, aprofunda ainda mais a discussão em torno das culturas da infância na contemporaneidade. Hannah vive com os pais, uma mé- dica den sta e um comerciante, a irmã gémea – Leonor [E9] – e ainda um irmão de 14 anos. As paredes do quarto (par lhado) estão repletas de autocolantes da sua ídolo, e de quem tomou de emprés mo o pseudónimo que escolheu para si: Hannah Montana13. A apropriação da imagem de Hannah Montana

encontra-se ainda na maioria de outros objetos que existem no quarto, nomeadamente, em material escolar, vestuário, produtos de higiene e brinquedos. Já Leonor “detesta” a Hannah Montana e “deseja-

va muito” ter um quarto só para si. Como isso não acontece, tem de “aceitar os autocolantes” da irmã.

Para estas meninas gémeas, o quarto é por excelência o espaço de brincadeira e diversão. Nas entrevis- tas que nos concederam relatam que brincam “na”, “sobre” e “por debaixo” da cama. Nos desenhos que nos entregaram (coincidentemente muito semelhantes) a cama ocupa, aliás, uma centralidade como a que parece ocupar nos seus quo dianos. A observação directa e o registo de fotografi as levado a cabo ajuda ainda a consolidar a ideia de como a leitura sociológica do quarto destas duas meninas, apesar de cons tuir um espaço eminentemente privado e geografi camente reme do a um território específi co (Évora, Alentejo, Portugal, Europa), não pode ser feita à margem da produção cultural para a infância que é realizada à escala global. E é esta que, em úl ma instância nos permite compreender não apenas os mundos que o quarto de dormir encerra, como também aqueles que abre e perspec va.

13. Hannah Montana é uma série de televisão norte-americana criada por Barry O’Brien, Michael Poryes e Richard Correll, estreada a 24 de Março de 2006 pelo Disney Channel. A série mostra a vida de uma rapariga “comum” que à noite é a popstar Hannah Montana (representada pela actriz Miley Cyrus).

Refl exões fi nais

No intercruzamento entre mundos da vida e culturas da infância, o quarto de dormir das crianças é, como vimos, um espaço plural, tanto em termos de sub-espaços e objectos, como de usos, tempos e signifi cados que lhe estão associados. Da análise e discussão dos resultados é possível extrair diversas conclusões que de um modo transversal contribuem para uma leitura menos norma va e mais diversi- fi cada em torno das culturas da infância na contemporaneidade.

A leitura sociológica em torno do quarto de dormir das crianças, um espaço quo diano aparente- mente familiar e anódino, permite a constatação clara, intui va e sensorial da diversidade dos mundos da criança e da infância. Por um lado, obriga à desconstrução de ideias feitas sobre o quarto de dormir como espaço das crianças, quando ele é, afi nal de contas, o resultado das múl plas relações, tensões e contradições que essas crianças estabelecem com as condições estruturais de par da, os adultos que têm – ou não têm – em seu redor, dos seus próprios perfi s sócio-culturais e respec vas famílias de ori- gem, mas também da cultura mais ampla em que estão inseridos. Por outro lado, e se dúvidas houves- se, este trabalho revela de modo ímpar como o quarto de dormir das crianças é simultaneamente um produto, isto é, um resultado, mas também um produtor ou construtor de realidade social, sobretudo, e em úl ma instância, para as crianças, qualquer e onde quer que elas estejam.

In tulámos este texto com um verso extraído da letra da canção “Voar” do músico português Tim14.

“O meu quarto é o meu mundo” foi a metáfora que encontrámos para dar conta da cumplicidade inextri- cável que existe entre mundos da vida e culturas da infância na contemporaneidade. Se é certo que para todas as crianças que estudámos o seu quarto é o seu mundo, esta constatação não deve senão servir de es mulo para ver nesse espaço uma janela aberta para “outros mundos” também. E, do mesmo modo que a análise da sua diversidade interna e externa serviu para dar cor, textura e profundidade ao olhar do fotógrafo; assim também deve incen var a imaginação do sociólogo preocupado em estudar e refl ec r não apenas sobre mas com as crianças, as suas vozes, olhares e experiências em contextos sócio-culturais específi cos da vida real e com base em referenciais teórico-metodológicos inovadores e desafi adores.

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