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Estratégias narrativas de legitimação do porfirismo: um olhar através dos Discursos do presidente ao Congresso Nacional

1. O tempo histórico nacional como estratégia política

Desde seu discurso de posse, em abril de 1877, Porfirio Díaz elaborou uma lógica específica do tempo histórico nacional, que legitimava as medidas governamentais e fundamentava sua autoridade. Nos documentos, o passado, o presente e o futuro nacionais

39 Relembrando Foucault: “O ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo de um diálogo, da interrogação, da recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinados tipos de enunciados); define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias, e todo conjunto de signos que devem acompanhar o discurso; fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles os quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção. Os discursos religiosos, judiciários, terapêuticos e, em parte também, políticos não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis preestabelecidos.” (FOUCAULT, 1996, p. 39).

foram mobilizados de forma dissimétrica, ou seja: expandia-se o passado, enfatizando os conflitos nacionais e internacionais para, ao fazer uma comparação entre os tempos, comprovar que o presente se tornara pacífico sob a presidência de Díaz. Por conseguinte, diante deste presente pacífico, o futuro já era dado como certo: feliz e próspero. Nessa lógica temporal oficial, o presente não era interpretado como um instante, um momento passageiro que logo se tornava passado; e sim como o período de governo de Díaz. O presente era o tempo político do porfirismo.

Nessa estrutura temporal, o passado era dilatado e distante do presente. Já o futuro, tornava-se um tempo mais curto e próximo, um período já quase tangível. Uma esfera específica do passado, o pretérito nacional, qualificada de caótica/anárquica nos documentos, foi recuperada como clima histórico para se agir no presente e dar autoridade/validade aos atos porfiristas. O objetivo era deflagrar no interlocutor a sensação de que o México havia mudado a partir de 1876. Vemos que em seu primeiro discurso como presidente, o general logo atestou a paz nacional, citamos:

Ciudadanos Diputados: la breve reseña que acabáis de oír [sobre a situação nacional em cada ramo do país], no manifestaría por completo, aunque ella se extendiera más, cuál es el estado que guarda el país, si no os anunciara, como lo hago con grande satisfacción, que toda la República se encuentra en paz. Este hecho de grande importancia siempre, tiene hoy una significación cuyo valor no se puede desconocer.40

Para Díaz, já em seu primeiro ano de mandato, toda a República estava em paz. Ou seja, em abril de 1877, o presidente afirmou a pacificação completa do México. Essa afirmação pode passar desapercebida pelo leitor, mas se torna valiosa se voltarmos os olhos para os eventos políticos no oitocentos. O conceito “paz” teve grande peso discursivo. Se o México sofreu muitos problemas sociais, políticos e econômicos desde sua independência, a estratégia porfirista foi mostrar que, em 1877, esta conjuntura turbulenta não mais fazia parte do país; fato que, para Díaz, tinha um significado de “valor desconhecido”, tamanho o ineditismo do episódio. Para ele, os conflitos foram tão recorrentes ao longo do século XIX, que a paz era um fato de grande importância sempre, mas nunca alcançada pelos governos anteriores.

40 Discurso Porfirio Díaz, pronunciado con motivo de la apertura de sesiones del Congreso, informando el estado en que se encuentran los diferentes ramos de la administración pública. Abril, 1877, s/p.

A afirmação da paz foi destaque em seu pronunciamento, sendo enfatizada no parágrafo de conclusão do discurso. Em todos os documentos, o primeiro magistrado mencionou a paz, a estabilidade e a ordem que o país, pela primeira vez, havia alcançado. A paz, para o porfirismo, era a base e o pressuposto para a modernidade e o progresso nacional. Ela significava uma situação de boa governabilidade, base para o desenvolvimento da modernidade e civilização do país. Para ele, o presente, pacífico, era diametralmente oposto ao passado (caótico, desajustado e ingovernável). Os discursos políticos de Díaz possuíam uma estratégia narrativa basilar: a República está em paz e ordenada, todas as medidas governamentais são tomadas para manter esta atmosfera normal e o apoio do povo e do Congresso corroboram com essa situação. Mas, antes de continuarmos a desenvolver o assunto, se o presente era diferente do passado, sobre qual passado especificamente o governo estava falando? Veremos no subtópico 1.1 que se tratava, como mencionamos na introdução, do passado nacional, pós-independência. Outras camadas do passado não foram mobilizadas pela administração de Díaz. Nosso objetivo não é fazer uma narrativa hiper detalhada da história do México entre 1821 e 1876, mas achamos importante trazer elementos e informações que iluminem sobre quais episódios e conjunturas históricas o porfirismo estava se referindo e resgatando para legitimar suas medidas políticas.

1.1 O peso do passado nacional nos discursos de Porfirio Díaz

Em 27 de setembro de 1821, o México tornou-se, oficialmente, um país independente. Com a desintegração do Vice-reino da Nova Espanha, depois de onze anos de conflito, a antiga colônia castelhana foi organizada na forma de um Império, centrada na figura de Agustín Itúrbide. A monarquia constitucional de Agustín I, como ele ficou conhecido, durou poucos meses e, em 17 de março de 1823, diante de várias sublevações no país e de projetos republicanos, o monarca abdicou da coroa e se exilou na Europa.

Provisoriamente, o jovem país passou a ser governado por um triunvirato. Foram nomeados para o Supremo Poder Executivo Nicolás Bravo, Guadalupe Victoria e Pedro Celestino Negrete41. Em 1824, a primeira República Federalista teve como presidente

Guadalupe Victoria, simpatizante do heterogêneo setor liberal42. Entre 1824 e 1856, quarenta e um presidentes ocuparam a presidência do México. Neste período, o país experimentou várias formas políticas: de 1829 a 1830, por exemplo, foi formado um triunvirato, composto por Pedro Vélez, Lucas Alamán e Luis de Quintanar, que havia desconhecido a presidência de Vicente Guerrero (este governou por oito meses, entre abril e dezembro de 1829). A partir de 1854, os conservadores perderam, por alguns anos, a hegemonia da governatura no país, devido à Revolução de Ayutla contra o então ditador Antonio Lopez de Santa Anna43. Com a renúncia e o exílio de Santa Anna, a nação passou a ser conduzida por um presidente interino, adepto do setor liberal: Martín Carrera. Carrera renunciou um mês depois e passou o cargo à Rómulo Díaz de la Vega, que, permanecendo na primeira magistratura por apenas três semanas, foi substituído por Juan Álvarez44. A partir de 1850, por muitos anos os principais cargos da política mexicana foram disputados por dois grandes e heterogêneos setores: o liberal e o conservador. Uma das grandes querelas da heterogênea elite política foi: que Estado-nação construir?45

Em meados de 1857, o liberal moderado Ignácio Comonfort foi eleito presidente do país, mesmo ano em que a Constituição Política da República Mexicana foi expedida. Entretanto, o próprio Don Ignácio não seguiu a Carta Magna e, em dezembro, aceitou o desconhecimento do documento nacional pelo “Plano de Tacubaya”. Este foi proclamado em 17 de dezembro pelos conservadores, representados na figura de Félix Zuloaga. Os conflitos entre os dois setores rivais ficaram ainda mais candentes, desembocando na chamada “Guerra da Reforma” (também nomeada como a “Guerra dos Três Anos”)46.

42 É importante destacar que os liberais não representavam um grupo unido. Havia facções e dissensos em seu interior.

43 Antonio López de Santa Anna (1794-1876) foi um militar do México e presidente do país em onze mandatos. É conhecido na historiografia mexicana por participar tanto de facções liberais, quanto conservadoras e investir em incursões militares que desencadearam muitos prejuízos ao México, como, por exemplo, o conflito texano de 1836.

44 Como explicou González, “el nuevo presidente [Álvarez] se propuso emprender con prudencia las reformas reclamadas por la opinión liberal, pero no hubo día de su gobierno sin revueltas de signo conservador, motivadas por la ‘ley Juárez’, quien restringía fueros eclesiásticos, la ‘ley Lerdo’, que desamortizaba los bienes inmuebles en poder de corporaciones civiles y eclesiásticas, y la ‘ley Iglesias’, que prohibía a la Iglesia el control de los cementerios y el cobro de derechos parroquiales a los pobres. Entretanto se había expedido la convocatoria para el Congreso Constituyente, y hechas las elecciones, la asamblea constitutiva había empezado a trabajar en 1856.” (GONZÁLEZ, 1994, p. 113).

45 É importante matizar que uma pureza ideológica dos setores não foi sempre observada, tendo os ideais moderados um maior número de seguidores. Contudo, embora os moderados fossem em maior número no país, analisar a dicotomia – liberais versus conservadores – existente e mobilizada na literatura política da época foi importante na análise das fontes.

46 Para maiores detalhes sobre a conjuntura em destaque ver: DÍAZ, Lilia. “El liberalismo militante”. In: COSÍO VILLEGAS et al. Historia general de México. Cidade do México: El Colegio de México, ed. 2000.

À época, o ministro da Suprema Corte de Justiça, Benito Juárez, assumiu a primeira magistratura no lugar de Comonfort. A conjuntura era de quase ingovernabilidade, afirmava. O país estava cindido por guerras civis e a atmosfera era de insegurança nacional. Comonfort abdicara da presidência, acreditando ser impossível governar com a constituição. Com tantos problemas internos, em 19 de janeiro de 1858 Juárez mudou-se da capital e estabeleceu seu governo presidencial em Guanajuato, estado central do país. Três dias depois Félix Zuloaga foi designado, na própria capital, por respaldo conservador, também presidente do México. O país estava dividido e possuía dois presidentes em ação. Os estados de Jalisco, Guanajuato, Querétaro, Michoacán, Nuevo León, Coahuila, Tamaulipas, Colima e Veracruz ficaram ao lado do governo liberal, centrado na figura de Juárez. Já a capital, Puebla, San Luis Potosí, Chihuahua, Durango, Tabasco, Tlaxcala, Chiapas, Sonora, Sinaloa, Oaxaca e Yucatán defenderam os conservadores e o Plano de Tacubaya. Segundo L. Díaz, a guerra afligia todo o território nacional.

Por conseguinte, no primeiro governo de Juárez, entre meados de 1859 e finais de 1860, foram promulgadas cinco leis – chamadas de “Leis da Reforma” –, que propunham a separação definitiva entre Igreja e Estado. Tais leis fizeram com que a Igreja Católica perdesse muita força no México: as leis afirmavam a nacionalização dos bens eclesiásticos; o fechamento dos conventos existentes no país; o estabelecimento do matrimônio e registros civis; a secularização dos cemitérios e a supressão de determinadas festas religiosas. Houve tanta repercussão no México que várias charges foram publicadas em jornais da época mostrando a figura do presidente Juárez com a referida legislação em mãos. Em 22 de dezembro do mesmo ano, os liberais ganharam a Batalha de Calpulalpan contra os conservadores. Em 1861, ocorreu uma nova eleição para presidente da República e novamente Juárez saíra vitorioso. A Guerra da Reforma havia chegado ao fim, mas não o fim da guerra civil.