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O TRABALHO, A ESCOLA E A PERSPECTIVA OMNILATERAL DO

3 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS DA PESQUISA

3.1 O TRABALHO, A ESCOLA E A PERSPECTIVA OMNILATERAL DO

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), no artigo 39, informa que “a educação profissional e tecnológica, no cumprimento dos objetivos da educação nacional, integra-se aos diferentes níveis e modalidades de educação e às dimensões do trabalho, da ciência e da tecnologia” (BRASIL, 1996).

Conceber uma educação nacional, para o legislador, implica necessariamente admitir a coexistência e correlação entre essa e o trabalho. De fato, o trabalho, também na educação profissional e tecnológica, deve ser tema de centralidade, através do qual serão engendrados e construídos os processos de ensino.

8 Por vezes, no texto, a palavra “disciplina” será utilizada como sinônimo de “componente curricular”, conforme tradicionalmente ocorre nos contextos escolares.

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Partindo desse modo de pensar a educação, Gramsci (2001) formula o conceito de Escola Unitária. O processo da escola unitária tem por objetivo promover uma educação que rompa com o caráter marcadamente hegemônico da educação tradicional, garantindo, epistemologicamente, o florescimento de formas mais plurais, integradas, críticas e dinâmicas de educação.

Rompido o caráter hegemônico, uma educação centrada na perspectiva unitária tende a caminhar para um modelo de educação que afaste a dicotomia existente entre trabalho intelectual e trabalho manual, dotando os educandos das capacidades necessárias à vida em sociedade, ao conhecimento filosófico do ser e ao trabalho em suas múltiplas perspectivas.

Assim, a lógica da Escola Unitária gramsciana, que “significa o início de novas relações entre trabalho intelectual e trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social” (GRAMSCI, 2001, p. 40), caminha no compasso da necessidade de se eliminar a dicotomia entre os que fazem e os que dirigem, sendo preciso articular o trabalho produtivo industrial com a escola.

Especialmente em relação à Escola Unitária e ao trabalho, Gramsci (2001, p. 40) sustenta que

O princípio unitário [...] irá se refletir em todos os organismos de cultura, transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo. [...] Num novo contexto de relações entre a vida e cultura, entre trabalho intelectual e trabalho industrial as academias deveriam se tornar a organização cultural (de sistematização, expansão e criação intelectual) daqueles elementos que, após a escola unitária, passarão para o trabalho profissional, bem como um terreno de encontro entre estes e os universitários.

Esse modo de compreender a escola vem objetivar a formação de cidadãos que sejam capazes de pensar e construir suas práticas, refletir e criticizar (no sentido freireano) os processos sociais coletivos e permitir aos sujeitos aprendentes, para além do processo de formação de um profissional especializado, tornarem-se humanos na totalidade das suas faculdades.

Esta “totalidade” poderá ser garantida pela escola por meio do trabalho, contribuindo para que alunos tenham condições objetivas de criação de mundo e de exercício da cidadania, no compasso do que Freire (2002, p. 142) ensina-nos:

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[...] somente na medida em que os homens criam o seu mundo, que é mundo humano, e o criam com seu trabalho transformador se realizam. A realização dos homens, enquanto homens, está, pois, na realização deste mundo. Desta maneira, se seu estar no mundo do trabalho é um estar em dependência total, em insegurança, em ameaça permanente, enquanto seu trabalho não lhe pertence, não podem realizar-se. O trabalho não livre deixa de ser um quefazer realizador de sua pessoa, para ser um meio eficaz de sua “reificação”.

Firmar, portanto, o conceito de formação pelo trabalho foi esforço substancial de inúmeros pensadores durante os séculos. Para efeito de perspectiva, o conceito de trabalho adotado nessa pesquisa é aquele apresentado por Manacorda (2007, p. 58), segundo o qual

trabalho é, em Marx, termo historicamente determinado, que indica a condição da atividade humana no que denomina economia política, ou seja, a sociedade fundada sobre a propriedade privada dos meios de produção e a teoria ou ideologia que a expressa.

Trabalho, então, é força constitutiva dos processos não apenas de produção, mas políticos e ideológicos, e aos poucos constitui os sujeitos. Esse método, do ensino pelo trabalho, é demonstrado por Freire (1967, p. 124) quando afirma que o homem é

[...] um ser criador e recriador que, através do trabalho, vai alterando a realidade. Com perguntas simples, tais como: quem fez o poço? por que o fez? como o fez? quando? que se repetem com relação aos demais “elementos” da situação, emergem dois conceitos básicos: o de necessidade e o de trabalho e a cultura se explicita num primeiro nível, o de subsistência. O homem fez o poço porque teve necessidade de água. E o fez na medida em que, relacionando-se com o mundo fez dele objeto de seu conhecimento. Submetendo-o, pelo trabalho, a um processo de transformação. Assim, fez a casa, sua roupa, seus instrumentos de trabalho. A partir daí, se discute com o grupo, em termos evidentemente simples, mas criticamente objetivos, as relações entre os homens, que não podem ser de dominação nem de transformação, como as anteriores, mas de sujeitos.

Considerando a escola como ambiente de produção e compartilhamento de conhecimentos, e a formulação marxiana de trabalho e freiriana de “educação pelo trabalho”, é possível perceber estreita vinculação entre esses mundos – escola e trabalho – e as inúmeras inter-relações que se fazem possíveis. Isto porque, em se tratando de uma educação profissional e tecnológica, os aspectos da produção necessariamente perpassam pelos processos pedagógicos.

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Do mesmo modo, a educação profissional e tecnológica, ancorada nos processos existentes no mundo do trabalho, ascende-se como ambiente crítico à noção de trabalho expropriado, contrapondo-se não apenas à lógica da divisão social do trabalho, mas à própria divisão da oferta do conhecimento historicamente construído para cada indivíduo de acordo com sua classe social.

Tomando-se como base os estudos marxistas, é possível afirmar que também é função da escola afastar a subsunção criada pela divisão entre o trabalho manual e o trabalho mental, haja vista que o papel pedagógico da escola exerce função exponencial na mudança dos processos de alienação. Daí se concluiu que

[...] exatamente no momento em que a atividade vital humana, do homem como ser genérico, do gênero humano em seu conjunto, se apresenta dividida e dominada pela espontaneidade, pela naturalidade e pela casualidade, todo homem, subsumido pela divisão do trabalho, aparece unilateral e incompleto. Essa divisão se torna real quando se apresenta como divisão entre o trabalho manual e o trabalho mental, porque aí se dá a possibilidade, ou melhor, a realidade de que a atividade espiritual e a atividade material, o prazer e o trabalho, a produção e o consumo se apliquem a indivíduos distintos (MANACORDA, 2007, p. 60).

Mais que genericamente à escola, analisar, discutir e tratar com criticidade estes processos é condição embrionária para o ensino integrado, pois concebe a educação como itinerário formativo capaz de abarcar a pluralidade de funções humanamente construídas. Por isso, não apenas uma educação integrada, com foco na perspectiva inicial marxista do panorama do trabalho manual e do trabalho mental, mas, ainda, numa perspectiva que vise à confluência dos inúmeros saberes que num determinado momento histórico tenham se distanciado.

Esta confluência possível, resguardadas as especificidades científicas naturais, torna-se viável porque, grosso modo, as ciências são, em suma, criação humana, fruto, antes de qualquer coisa, do trabalho das sociedades ao longo da história. Por isso mesmo, a formação integral, atrelada à dialética marxista e ao seu método, tem por objetivo, a partir do trabalho, um estado de formação do indivíduo que ultrapasse os mecanismos capitais do trabalho por meio da educação.

Não se trata, portanto, apenas de discutir a união entre trabalho e escola, ou entre escola e trabalho como querem alguns, mas considerar que a educação profissional

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de nível médio caminha no sentido de ofertar um ensino cujos campos escola e trabalho sejam indissociáveis, dada a natureza orgânica que esta modalidade educacional requer. Antes de uma abordagem que preconize um eixo em detrimento de outro, deve a educação profissional primar pela fusão dessas vertentes, unificando-as. Nesse sentido, é válido considerar a defesa enfática de Manacorda (2007, p. 66) da abordagem marxista de trabalho, qual seja:

Quem ainda quiser considerar óbvia e não-nova essa sua hipótese de unir ensino e trabalho, que outros desejaram ou praticaram antes e depois dele, considere, pelo contrário, como nele o trabalho transcende, exata e necessariamente, toda caracterização pedagógico-didática para identificar-se com a própria essência do homem. É uma concepção que exclui toda possível identificação ou redução da tese marxiana da união de ensino e trabalho produtivo no âmbito da costumeira hipótese de um trabalho, seja com objetivos meramente profissionais, seja com função didática como instrumento de aquisição e verificação das noções teóricas, seja com fins morais de educação do caráter e da formação de uma atitude de respeito em relação ao trabalho e ao trabalhador. Compreende, acima de tudo, todos esses momentos, mas também os transcende.

Desta transcendência nascem princípios gerais que em muito vem contribuindo para o pensamento de uma escolarização aperfeiçoada e humana. E mais, não apenas uma escolarização em que figurem como pólos de um mesmo processo aluno, escola e conhecimento, mas os mecanismos gerais que forjam a sociedade atual e a delineiam. Por outro lado, o trabalho, em sua abstração, dentro do processo de ensino, pode ser tomado nas suas formas de intercâmbio, o que permite à escola caracterizá-lo quanto a suas dimensões individuais e coletivas, situando-o histórica e socialmente.

A partir de então, situado o contexto do trabalho na educação, baseado na dialética marxista, temos que a educação integrada – abstraída como vinculação teórico- prática ou manual-mental, à qual Manacorda denomina “ensino-produção” – deve considerar a existência humana em suas inúmeras dimensões.

Essas dimensões em conjunto permitem à educação tratar o processo de ensino vinculado aos contextos reais, permitindo ao sujeito inteirar-se dos conhecimentos históricos e socialmente produzidos, o que afasta do processo e, por conseguinte, dos educandos, a obrigatoriedade de uma posição unilateral. A partir daí, por meio da educação integral, os sujeitos imersos em processos de ensino com experiências não fragmentadas, pela via do ensino que não se ocupe de particularidades

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desconexas, tendem a reconhecer – e alcançar –, por meio do trabalho como princípio educativo, a omnilateralidade do ser.

O princípio omnilateral, em Marx, apresenta-se como contraponto à noção de unilateralidade. Esta última deriva da imagem humana, expropriada da sua força produtiva pelo modo de produção capitalista, tal como o fracionamento das suas potencialidades e possibilidades mentais e manuais. Já a perspectiva omnilateral refere-se à educação que se contrapõe ao princípio unilateral, ao trabalho alienado e à divisão social do trabalho que, em última instância, efetiva a separação entre trabalho manual e trabalho intelectual.

Nesse cenário, considerando a educação como mecanismo de mudança, e as perspectivas antagônicas de trabalho versus alienação, unilateralidade versus omnilateralidade, a educação politécnica ou tecnológica tem a seu favor os aparatos necessários à formação integral do homem, em contraposição à dualidade criada pelos mecanismos de expropriação do trabalho que geram, por cadeia, novos mecanismos de expropriação do conhecimento, haja vista, em última instância, a divisão de classes.

Manacorda (2007, p. 93) afirma, ao tratar da questão omnilateral em Marx, que havia “necessidade de se oferecer, também nas escolas dos operários, um ensino tecnológico que fosse, ao mesmo tempo, teórico e prático”. Isto corrobora a ideia de um “homem completo, que trabalha não apenas com as mãos, mas também com o cérebro e que, consciente do processo que desenvolve, domina-o e não é por ele dominado” (Idem, 2007, p. 101).

Esta exploração pormenorizada delineia de maneira pontual as possibilidades e horizontes de uma educação omnilateral. Da mesma forma, atrela à noção omnilateral questões que envolvem o trabalho e a educação como mecanismos de um mesmo sistema e, portanto, a necessidade de coexistirem num mesmo processo. O entendimento que Manacorda (2007) faz do processo marxista entre escolarização, omnilateralidade e trabalho nada mais é que a afirmação do homem real, completo, composto por variados conhecimentos, necessidades e interesses, no qual ainda habita um ser social e historicamente construído.

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Por tratar-se então do ser, é preciso uma forma educacional que, atrelada às questões tradicionais de ensino – linguagens, matemática, ciências naturais e ciências sociais – tenha enxertado temas e problemáticas vinculados ao mundo moderno. A esses o marxismo chama de tecnologia, como vemos:

Expondo, de maneira esquemática, o resultado da pesquisa marxiana sobre os temas de formação do homem – que nada mais são que um aspecto dos temas da sua emancipação como indivíduo social, isto é, como ser singular inserido na sociedade de que participa – pode-se enunciá-lo como método da associação do trabalho em fábrica e de ensino numa escola essencialmente tecnológica, com a finalidade de criar o homem onilateral (MANACORDA, 2007, p. 117).

Assim, a escola que considera o mundo do trabalho como via de processo de ensino corrobora a capacidade de formar sujeitos na sua integralidade. Isso porque a escola reconhece a integralidade desse ser e ainda o reconhece indissociável das inúmeras perspectivas que porventura venham a ser adotadas no âmbito educacional. Diante disso, é preciso aceitar o trabalho como processo pujante de ensino, por meio do qual e para o qual a escola se coloca como parceira. Por isso, afirma Manacorda (2007, p. 119) que se tem falado muito

[...] da oposição entre a escola do trabalho e a escola do doutor, entre escola desinteressada e escola profissional – e, nesse contexto, é oportuno e tem sentido o discurso sobre duas culturas – mas, na realidade, por milênios, a oposição tem-se dado não entre escola e escola, mas sim entre escola e não-escola. Ou, para usar uma expressão quase marxiana, a escola se coloca frente ao trabalho como não-trabalho e o trabalho se coloca frente à escola como não-escola.

De fato, partindo de um movimento de aproximação entre escola e trabalho, pensar numa possível trégua entre a divisão conhecida entre trabalho manual e trabalho intelectual, e entre escola e trabalho, é, a nosso ver, mera questão temporal. Concebida a relação intrínseca entre escola e trabalho, é preciso considerar as formas como esse processo vem a ser construído e posto em prática.

De toda sorte, é preciso reafirmar ideais importantes para a educação, considerando que os processos de luta e conquista de direitos precisam ser ratificados dia após dia sob o risco de, caindo no esquecimento, serem subtraídos da esfera social. Nesse sentido, Frigotto (2018, p. 57) afirma que

[...] o consenso a ser construído é a luta prioritária pelo ensino médio universal, na perspectiva da escola unitária, omnilateral, tecnológica ou politécnica como direito social e subjetivo. Um ensino que não separa e

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sim integra, numa totalidade concreta, as dimensões humanísticas, técnicas, culturais e políticas e que também não estabelece dicotomia entre os conhecimentos gerais e específicos. É isto, na realidade, que as forças sociais interessadas num projeto social nacional popular defenderam na Constituinte e na LDB. Por isso o ensino médio constitui-se na última etapa da educação básica.

Partindo dessa forma de conceber a educação nacional é possível inferir que o ensino médio integrado, vez que se apresenta como última etapa da educação básica, carrega consigo desafios que, ante o modelo de escola tradicional, são impossíveis de ser alcançados, haja vista que a “integração entre as ciências humanas e as da natureza, as dimensões gerais e específicas, as dimensões técnicas, culturais e políticas no processo de ensino” (FRIGOTTO, 2018, p. 129) só acontecem mediante “[...] uma materialidade de condições objetivas: espaço, laboratórios, pessoal docente, pessoal de apoio, tempo docente e discente” (Idem, 2018, p. 129).

Por isso mesmo, o ensino médio integrado, no entendimento do autor

[...] envolve um desafio triplo, retirado do embate de concepções antagônicas de educação básica: o de não separar a educação básica da técnica em turnos estanques e tendo como eixos o conhecimento, o trabalho e a cultura (RAMOS, 2010); fazer esta integração no plano ontológico, mediante uma formação integral, omnilateral e politécnica; e, no plano epistemológico, que noção de ciência da natureza (sociedade das coisas) e de ciências sociais (sociedade dos seres humanos) relaciona-se e se integra no plano curricular (FRIGOTTO, 2018, p. 129).

Para além de entender o homem como um ser histórico cujo trabalho lhe foi expropriado e, por conseguinte, dividido entre trabalho manual e trabalho intelectual, o sucesso do processo educativo depende de um retorno ao ser enquanto unidade múltipla e indivisível. Assim também, o processo de escolarização necessita, como no homem, apresentar reciprocidade e relação com o todo, motivo pelo qual pensar o ensino médio integrado através do trabalho e da omnilateralidade do ser é, certamente, pensar um currículo múltiplo e correspondente aos seus inúmeros campos científicos.