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3. O TRABALHO: UMA CATEGORIA CENTRAL NOS ITINERÁRIOS E

3.1 O Trabalho: da origem do termo aos nossos dias

O trabalho é um termo polissêmico, que ao longo dos tempos vem assumindo diferentes significados. Se fizermos um breve retrospecto do ponto de vista da etimologia, do pensamento cristão, da história, da filosofia, da economia, do imaginário social constataremos que o trabalho não tem uma definição universal (SANTOS, 2000). É um termo, uma palavra, um conceito que comporta significações ambíguas, contraditórias, que variam conforme as sociedades e contextos históricos. Desde a antiguidade até os nossos dias, o trabalho é expressão de vida e degradação, de criação e infelicidade, emancipação e alienação, atividade vital e escravidão, martírio e salvação, dever social e realização pessoal, sofrimento e produção útil (ANTUNES, 2009; BAJOIT, 2011).

Hannah Arendt (2009), na sua clássica obra A condição humana, ao propor uma distinção entre labor e trabalho, afirma que em todas as línguas europeias, antigas e modernas, há duas palavras etimologicamente diferentes para designar o que, no mundo moderno,significa a mesma atividade, as quais compartilham a peculiaridade de serem usadas como sinônimas. Sendo assim, constata a filósofa e pensadora política alemã: “a língua grega diferencia entre ponein e ergazestahi,que tem a mesma raiz etimológica, o francês, entre

travailler e ouvrer, o alemão entre arbeiten e werkhen. Em todos estes casos, só os

equivalentes de ‘labor’ têm conotação de dor e atribulação.

De acordo com João Bosco Feitosa dos Santos (2000), etimologicamente, o termo

trabalho se origina no século XI do latim tripalium, para qual havia dois significados: (1) um

instrumento de três pés, destinado à tortura e (2) um local onde se colocava os bois para serem ferrados. Segundo Susana Albornoz (1986), tripalium era um instrumento de três paus aguçados, às vezes com pontas de ferro, utilizado pelos agricultores para bater, rasgar e esfiapar o trigo, as espigas de milhos e outros cereais. Entretanto, o significado que

prevaleceu foi o de tortura. Vale lembrar, a tripalium está relacionada com a palavra vulgar

tripalaire, que significa “torturar”. Outra versão é apresentada por Celso Leite (1994), que

aponta como origem do termo a palavra latina trabaculu, pertencente a mesma raiz que em português significa trava, travar, cujo significado em latim também se reporta a uma canga que os escravos eram obrigados a usar para trabalhar.

Na tradição judaico-cristã já havia uma imagem negativa de trabalho, na maioria das vezes, associada a castigo, sofrimento, provação. Na Bíblia, no livro do Gênesis30, o trabalho aparece pela primeira vez no imaginário cultural como castigo, condenação eterna e prova de arrependimento do pecado original. No Novo Testamento, o apóstolo Paulo já havia elevado o trabalho à categoria de obrigação moral, “quem não trabalha não deve comer!”.

No mundo antigo, o trabalho era considerado como uma atividade indigna, associada à escravidão e mais tarde como castigo divino. Curiosamente na mitologia grega não havia uma divindade para o trabalho, nem tampouco apenas uma palavra que expressasse o significado de trabalho que conhecemos hoje. Existiam três palavras: pónos – o labor forçado em contato com a matéria, ergón – obra e atividade em geral, e techné – o trabalho do artesão. A obra de Hesíodo, O trabalho e os dias, é considerada por alguns pesquisadores como texto fundante do entendimento da categoria trabalho (PORDEUS JR, 1993; AMZALAK, 1947 apud SANTOS, 2000). Nessa obra, escrita entre o Séc. VII e VI a.C., Hesíodo, através do mito de Pandora e Prometeu, justifica a importância do trabalho e da justiça. Nela, pónos e érgon são diferenciados, sendo que érgon é tarefa de Eris, deusa da emulação, mas pónos, assim como todos os males, é oriundo da caixa de Pandora e foi imposta por Zeus em resposta a traição de Prometeu (ARENDT, 2009).

No final do século V a. C., Plantão e Aristóteles consideravam que o trabalho era fadiga do corpo, escravidão do espírito, privação do tempo para se dedicar a polis (SANTOS, 2000; BAJOIT, 2011, MÉDA, 2007). Na Idade Média, São Tomás de Aquino radicaliza a máxima paulina e eleva o trabalho como ato moral, digno de honra e respeito. Entretanto, a posição ocupada através do trabalho era fundamentada numa divisão gradativa de importância social: oradores (eclesiásticos), defensores (guerreiros) e lavradores (agricultores). Com o advento da Reforma Protestante, Lutero (1483-1546) propõe uma ética do trabalho e dá os primeiros passos em direção a uma concepção ascética da vida religiosa, conferindo ao trabalho um sinal de salvação, caminho celeste, uma vocação. Um pouco depois, Calvino

30 No livro do Gênese, capítulo II, versículo 19, encontra-se o trecho bíblico que dá origem esta visão negativa

do trabalho, no qual está escrito: “ Comerás o teu pão com o suor de teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado, porque és pó, e em pó te hás de tornar”.

(1509-1654) maximiza a ascese religiosa e converte definitivamente o trabalho em vocação31, contribuindo para o desenvolvimento do espírito do capitalismo, nos termos formulados por Max Weber32.

No final do Séc. XVIII e do Séc. XIX, com o advento da Revolução Industrial, o trabalho se seculariza, desvincula-se do discurso religioso, torna-se um fim em si mesmo, converte-se em mercadoria, valor de troca, assume a forma histórica de trabalho assalariado e passa a ocupar um lugar central no sistema de produção de riqueza da sociedade capitalista. Transforma-se em objeto do discurso econômico, ganha centralidade no pensamento econômico clássico, a exemplo de Adam Smith (1776) e a sua teoria do valor-trabalho.

De acordo com Gui Bajoit (2011) ao longo da história das sociedades ocidentais, o trabalho assumiu quatro dimensões diferenciadas, e por conseguinte, com significações específicas que coexistem até os nossos dias, embora haja predominância de uma sobre outra conforme as configurações socioculturais que orientam as condutas dos indivíduos em determinado contexto histórico, numa dada sociedade33. Dessa forma, o trabalho assume os seguintes sentidos na cultura ocidental: 1) trabalho penoso: um sofrimento, uma tortura física (tripalium), um constrangimento, uma punição, um castigo e até mesmo uma expiação (trabalho forçado); 2) uma produção útil: a transformação de um objeto ou uma ideia cujo produto é útil à sociedade, que possibilita o progresso humano e o controle sobre o ambiente natural e social; 3) um dever social: uma contribuição que responde a uma necessidade social e que é retribuída socialmente pelo reconhecimento de uma competência, de um mérito, por uma recompensa moral e por um salário; 4) e por fim, uma realização pessoal: permite a realização de si, de sentir-se orgulhoso, a realização dos dons e talentos, e, portanto, evita que os indivíduos tenham uma vida ociosa, de tédio, de preguiça etc.

31 Sobre o trabalho como vocação afirmava Calvino: “se seguirmos fielmente nosso chamamento divino,

receberemos o consolo de saber que não há trabalho insignificante ou nojento que não seja verdadeiramente respeitado e importante ante os olhos de Deus” (CALVINO, 2000, p. 77).

32“A avaliação religiosa do instigável, constante e sistemático labor vocacional secular, como o mais alto

instrumento de ascese, e, ao mesmo tempo, como o mais seguro meio de preservação da redenção da fé e do homem, deve ter sido presumivelmente a mais poderosa alavanca da expressão dessa concepção de vida, que aqui apontamos como ‘espírito do capitalismo’ (WEBER, 1967, p. 123).

33O caráter polissêmico do trabalho além de ser uma questão de debate acadêmico, também encontra pregnância

no imaginário social dos trabalhadores que em suas experiências concretas vivenciam as diferentes dimensões do trabalho propostas por Gui Bajoit; pois ... “algumas expressões utilizadas pelo senso comum[...] concebem o trabalho como negação, como sofrimento, por exemplo: dar trabalho, no sentido de exigir esforço ou atenção; causar transtorno ou preocupação; uma coisa trabalhosa, algo fatigante, difícil, demorado; trabalhar a cabeça de

alguém, contribuir para mudar o modo de pensar e agir de alguém. De fato, transtorno, preocupação, fadiga e dificuldade, prazer, sofrimento, realização e transformação e independência são palavras utilizadas pelos estudiosos do mundo do trabalho, assim como pelo trabalhador, para denotar este ato de demonstração de utilidade, de aquisição de um estatuto social e de possibilidade de produção e consumo” (BOSCO, 2000, p. 48).

Para o referido autor, o ato de trabalhar combina duas finalidades essenciais que podem assumir duas modalidades diferentes se considerarmos essas quatro dimensões significativas. Por um lado, o trabalho é uma ação para transformar a matéria ou as ideias que sempre implicam um sofrimento (trabalho penoso) e uma realização (produção útil); e por outro, é uma ação para responder a uma necessidade social que produz outro tipo de sofrimento (dever social) e de realização (a realização pessoal). A hipótese sustentada por Bajoit (idem) é que ao longo do desenvolvimento das sociedades ocidentais se observa a construção de modelos culturais do trabalho que legitimaram a apropriação do excedente de trabalho de determinada categoria de indivíduos (a classe produtora/ trabalhadora) por outro grupo (classe dirigente), cuja tarefa é justamente decidir sobre os usos sociais do trabalho. Dessa maneira, em cada modo de produção (escravo, feudal, capitalista, socialista etc.) é necessária uma legitimação do sobretrabalho, de um modelo dominante de trabalho, inscrito num quadro geral do modelo cultural vigente. Essa concepção cultural do trabalho sempre é um desafio para luta de classes, é objeto de disputa, de interpretações conflitantes, uma vez que a classe dirigente elabora e difunde uma ideologia do trabalho que convém aos seus interesses; e a classe trabalhadora que elabora e difunde uma utopia do trabalho como um contra modelo à ideia dominante de trabalho e da sociedade. Portanto, nas sociedades cuja característica central é a produção e a acumulação de riquezas, o sentido cultural do trabalho é dado pela legitimação do uso social do sobretrabalho.

Na sociedade moderna, a concepção de trabalho será modificada radicalmente. Sob a égide de um novo regime de produção – capitalista, haverá um intenso movimento de inovação tecnológica, de crescimento da população e acumulação de riquezas, assim como um novo modelo cultural fundamentado na crença da razão, do progresso, da igualdade, que se difundirão nos países sob ritmos diferenciados, através das revoluções políticas. Paralelamente, ocorre uma legitimação cultural do trabalho que se generaliza, e, aos poucos a equação tempo=dinheiro=trabalho se torna hegemônica, o trabalho se converte em fonte de riqueza, objeto de troca, mercadoria como as outras.

A partir de então, a burguesia e o Estado liberal buscam impor a todos a sua concepção de trabalho, ou seja, a ideologia da glorificação do trabalho como produtor de utilidades e dever social. Entretanto, essa concepção encontra resistência de um conjunto de atores políticos, especialmente nos sindicatos e partidos vinculados à classe trabalhadora, que no campo da disputa política apresentam e defendem outras concepções de sociedade e do trabalho, dentre as quais se destaca a corrente romântica que defende o direito dos indivíduos ao trabalho como meio de subsistência; a corrente do socialismo radical, defensora da utopia

do trabalho liberado (da alienação) e de uma sociedade sem classes; e a corrente da social- democracia, preconizadora do ideário de um capitalismo humanizado, do trabalho suportável, com o Estado-Providência (Idem).

Nesse sentido, cabe destacar a importância da concepção de trabalho defendida por Karl Marx (2001) e sua crítica à forma histórica que o trabalho assumiu na modernidade. Na formulação marxiana, o trabalho é a categoria fundante da sociabilidade humana, fundamento das diversas formas, através das quais os homens produzem a materialidade da vida social, organizam a produção e a distribuição da riqueza social. Confere ao trabalho um duplo conteúdo, ontológico e histórico: é atividade vital da existência humana, necessidade perene para manter o metabolismo social entre humanidade e natureza, elemento constitutivo do ser social, mas assume formas históricas, e sob a égide da sociedade produtora de mercadorias converte-se em trabalho imposto, alienado, estranhado, compulsório. Portanto, Marx inaugurou uma leitura crítica ao caráter estranhado e des-efetivador do trabalho, e consequentemente, os efeitos deletérios da mercantilização das relações sociais na modernidade. Sendo assim, atribuiu ao trabalho uma função social central na construção de outro modelo de organização societal.

De acordo com Santos (2000), a partir da concepção de Marx sobre o trabalho e suas especificidades históricas assumidas na sociedade capitalista, inaugura-se um longo debate sobre a essência e a autonomia do trabalho que será abordada em perspectivas diferenciadas. Dentre as quais, se destacam uma perspectiva de entendimento do trabalho no sentido restrito de emprego, trabalho assalariado. Submetido à lógica da racionalização econômica do capitalismo, o trabalho não teria como assumir outro sentido, senão o da maximização e eficácia produtiva. No âmbito desta perspectiva há um conjunto de autores que tentam atualizar a discussão de Paul Lafargue (1983) sobre a importância de outros aspectos da vida das pessoas para além do trabalho, e para tanto, irão questionar se o trabalho não seria “um valor em via de desaparição” na sociedade contemporânea (HABERMAS,1998; OFFE, 1989; GORZ,2004; MEDÁ,1995; KURZ,1992). Todavia, há uma segunda perspectiva que reúne um conjunto de autores que defendem que o trabalho assalariado não esgota o conceito de trabalho, de modo que não haveria único sentido. Portanto, haveria uma essência antropológica do trabalho, constituída de realização pessoal e contradições com o mundo exterior aos indivíduos, que se alterou conforme os contextos históricos e não assume único sentido. Autores como Antunes (1995), Richard SENNETT (1999); Robert Castel (1998); Christophe Dejours (1987, 1999), Graça Druck (1999, 2000) entre outros, se aproximam mais dessa segunda perspectiva.

Frente a este debate, também concordamos com Santos (2000) quando afirma que os inúmeros estudos e pesquisas realizadas no campo da sociologia do trabalho não nos autorizam a falar em fim do trabalho e nem da perda de sua centralidade na sociabilidade humana. A nossa experiência de pesquisa e a escuta sensível dos jovens trabalhadores, herdeiros das inúmeras transformações no mundo do trabalho, nos credenciam a afirmar que o trabalho é o principal de suporte de inscrição social, dimensão central na estruturação das trajetórias e biografias, dos projetos de vida e aspirações juvenis. Parafraseando o cantor e compositor Gonzaguinha, diríamos que os jovens carregam “a barra de seu tempo por sobre seus ombros”, e nas contingências de mundo do trabalho reconfigurado, “gritam” e “berram” a dor que têm no peito, pois “um homem se humilha, se castram seu sonho, seu sonho é sua vida, e vida é trabalho”. Logo é muito mais do que um valor a ser cultivado, é a própria vida concretizada no tempo e no espaço histórico, síntese da mediação homem e natureza, plataforma do ser social. Decerto, é preciso apreender as mutações do trabalho a partir da sua historicidade no esquadro da formação social do capitalismo e suas configurações específicas no processo de produção e reprodução social, que alteram os seus sentidos socialmente construídos.

3.2 Revisitando o debate sobre a crise e o fim do trabalho: Qual trabalho? Qual