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1.3.2 O tsunami que invadiu as novas portas da Amazônia

“Tsunami do Portal da Amazônia, que vem derrubando tudo que encontra pela frente” (CRUZ, 2013, n. p.). Essa é a opinião de um morador da região onde é implantado esse

159 empreendimento, entrevistado pela bacharel em Serviço Social Sandra Helena Ribeiro Cruz, professora da Universidade Federal do Pará. Esse projeto prevê uma série de intervenções urbanas realizadas na orla do rio Guamá, entre o centro de Belém e a UFPA. Essas obras abrangem dois aspectos principais: 1. Drenagem e saneamento de áreas alagáveis nos bairros de Cidade Velha, Jurunas, Cremação, Condor e Guamá; 2. Construção de seis quilômetros de pista rodoviária de 70 metros de largura, paralela à orla, com área de passeio, ciclovia e estacionamento para automóveis, além da instalação de pontos de lazer variados, como quadras esportivas, restaurantes, quiosques e equipamentos para a prática de ginástica.

Agentes públicos envolvidos desconsideraram fortemente as implicações sobre a população mais pobre, inicialmente residente na região. Essa população miserável, tal como é previsto ocorrer na OU Nova BH, parece não ser incluída entre os possíveis beneficiários futuros. Igualmente como a citada OU, determinados negócios imobiliários privados, realizados por certos agentes, como incorporadores e construtores, somente se efetivam quando os mais pobres, ou seja, os não-consumidores, são excluídos literalmente desse território renovado. Exatamente quando a região se torna adequada em termos de saneamento básico, moradores pré-existentes são compulsoriamente retirados. Sua moradia, muitas vezes palafitas, é demolida e qualquer vestígio material de sua história na região é apagado. Isso explica a utilização do termo tsunami. “As áreas atingidas, tanto em sua faixa litorânea quanto em sua parte continental, estão

localizadas no centro antigo da Belém, cuja população será removida para que a obra física do projeto avance” (CRUZ, 2013, n. p.). Após a conclusão das obras, as legítimas preocupações sanitárias e paisagísticas da prefeitura local não seriam aproveitadas plenamente pelos moradores desalojados. Justamente quando as áreas não estariam mais suscetíveis a inundações e dotadas de infra-estrutura adequada, essas infortunadas pessoas teriam que mudar o local de sua moradia. Em outras palavras, os moradores puderam permanecer nessa área apenas enquanto o Governo esteve ausente com a benfeitoria mencionada.

O arquiteto Juliano Pamplona Ximenes Ponte (2007, n. p.), professor da Universidade Federal do Pará, menciona uma depreciação generalizada da ocupação precária e irregular dessas áreas, ocorrida porque elas são preferencialmente ligadas a pessoas mais pobres. À parte os evidentes problemas ambientais e urbanos, essas áreas seriam depreciadas por causa do perfil sócio-econômico de seus moradores. Ocupações como, por exemplo, aquelas em igarapés, barrancos e leitos de rios, canais ou córregos, seriam removidas, em princípio, oficialmente, por causa do dano ambiental que produzem, por causa da degradação que geram sobre a paisagem e por causa de eventuais problemas de saúde para os moradores. Contudo, além disso, a presença dessa população mais pobre seria decisiva sobre a maneira depreciada como essas ocupações normalmente são vistas. Segundo o autor, nota-se “o mecanismo de apreensão da

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enquadramento em categorias fundamentalmente marginais e, portanto, indesejáveis, a um espaço tão nobre” (PONTE, 2007, n. p.).

Essa depreciação também significa impossibilitar a valorização comercial requerida pelos agentes privados que posteriormente atuariam sobre a região renovada. Em outras palavras, não seria possível ocorrer a especulação fundiária/imobiliária, fundamental para a formação dos preços nos patamares pretendidos por esses agentes privados. A região contemplada por essas ações seria nobre, pois tem maior proximidade com a água, acesso ao rio Guamá e vista para as ilhas Cumbu e Murutucu, do outro lado do rio. A paisagem litorânea de Belém tem essa peculiaridade. Porém, nos dias de hoje, na região do Portal da Amazônia, essa peculiaridade estaria quase restrita aos olhares dos moradores pobres das imediações. Por isso, é compreensível o interesse de certas elites econômicas, a quem a região permanece inacessível, em reocupar áreas com essas visualidades naturais, principalmente após proteger as pessoas de trechos inundáveis, urbanizar corretamente as imediações e prover as edificações com infra- estrutura básica. Mais precisamente, criou-se artificialmente essa valorização da orla inicialmente, com propagandas sobre as intervenções públicas, com as próprias benfeitorias urbanas realizadas e, principalmente, através de peças publicitárias de edifícios de apartamentos construídos na região por promotores imobiliários privados. Da parte de quem incorpora esses edifícios, a orla se torna uma importante reserva de área que, antes das benfeitorias públicas, estavam inacessíveis para seus investimentos privados. Em outras palavras, esse território não poderia se verticalizar enquanto os governantes envolvidos não alterassem sua paisagem. Portanto, a valorização ocorreu grandemente por influência do marketing imobiliário, que imbuiu na mentalidade desse consumidores uma imagem de orla valorizada.

A grande concentração de pessoas que mora nessa porção sul do litoral belenense, pobres em sua imensa maioria, justificaria intervenções urbanas desse gênero, essencialmente as voltadas para o saneamento básico. Os bairros Cidade Velha, Jurunas, Cremação, Condor e Guamá, somados, tinham uma população de 245.238 habitantes em 2010227. O bairro de Guamá

é o mais denso da cidade, com 94.610 habitantes, população equivalente a Umarizal e Marco somados, dois dos bairros em que o processo de verticalização foi mais intenso na última década. Qual será a população mais beneficiada após a prefeitura executar, através da construtora Andrade Gutierrez228, todas as benfeitorias urbanas previstas para a região? Como é possível

notar na imagem seguinte, os bairros Jurunas, Condor, Cremação e Guamá, atingidos pelo empreendimento Portal da Amazônia, são considerados subnormais229. Um aglomerado

227 Disponível em: http://www.belem.pa.gov.br/app/ANUARIO_2011/2_01_Demografia.pdf. Acesso em: 24

março 2014.

228 Disponível em: http://www.agsa.com.br/Obra.aspx?CD_Menu=173. Acesso em: 24 março 2014. 229

Aglomerado subnormal “é o conjunto constituído por 51 ou mais unidades habitacionais caracterizadas

161 subnormal pressupõe, entre outras coisas, a ausência do título de propriedade, eventuais carências de serviços básicos e uma população notadamente mais pobre. Famílias com esse perfil dificilmente teriam condições financeiras de permanecer no local, se houver valorização imobiliária com as novas moradias construídas, aumento dos preços fundiários praticados na região e, consequentemente, especulação imobiliária e fundiária. Talvez o mais correto seja inverter a ordem dos acontecimentos: ações de agentes públicos geram valorização fundiária/imobiliária, especulação necessária para que agentes privados incluam seus negócios na região futuramente. A partir disso, como os moradores mais pobres não conseguem absorver os novos preços praticados, consequentemente, os novos produtos imobiliários oferecidos também lhes são inacessíveis. De uma forma ou de outra, ou seja, expulsos compulsoriamente através de desapropriações ou expulsos por causa do perfil sócio-econômico inadequado para esse consumo, os moradores pobres terão que viver em outras regiões. A ausência de título de propriedade facilitaria, inclusive, o acesso da terra urbana aos grandes investidores do mercado imobiliário envolvidos nessa operação.

Figura 18: Aglomerados sub-normais no litoral sul da cidade de Belém. (Fonte: RODRIGUES, Carmem

Izabel; BORGES, Marcos Trindade. Economia informal no bairro de Jurunas, Belém, PA. 28ᵃ Reunião Brasileira de Antropologia. São Paulo: ABA, 2012, p. 8. Disponível em: http://www.abant.org.br/conteudo/ANAIS/CD_Virtual_28_RBA/programacao/grupos_trabalho/artigos/gt02/Ca rmem%20Izabel%20Rodrigues.pdf. Acesso em: 24 março 2014).

- irregularidade das vias de circulação e do tamanho e forma dos lotes e/ou

- carência de serviços públicos essenciais (como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica e iluminação pública)”. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/imprensa/ppts/00000015164811202013480105748802.pdf . Acesso em: 24 março 2014.

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Figura 19: Palafita localizada próximo do Porto Conceição, no trecho sul da orla de Belém. Essa é uma

região onde chegam e saem barcos com açaí, vindo das ilhas, com destino ao comércio da cidade. Ao avançar sobre essa área, o projeto Portal da Amazônia terá de desalojar milhares de famílias moradores da região (fonte: autor).

É preciso entender que a ocupação das margens do rio está consolidada há décadas. A própria configuração urbana e o desenvolvimento territorial da cidade ao longo do século XX sugerem isso. As próprias ações públicas voltadas para a benfeitoria material da região deveriam considerar esse diagnóstico. Sempre existiu a presença humana nessas áreas de fronteira entre o continente e as ilhas mais próximas, principalmente através de populações mais pobres como, por exemplo, as residentes em palafitas, que utilizam esses interstícios para sua sobrevivência. Porém, atualmente, o mercado imobiliário, em geral, tem mostrado interesse cada vez maior pela orla e a presença de edifícios de apartamentos nessas regiões é cada vez mais marcante. Ressalte-se que o interesse é comercial, posto que a região da orla era uma imensa área inacessível para a construção de edifícios de apartamentos, principalmente, antes das benfeitorias públicas realizadas. Uma forma de colocar a questão é definir o território da orla como uma nova fronteira geográfica de atuação dos principais incorporadores imobiliários atuantes na cidade, que ocuparam esses vazios, agora disponíveis, com seus produtos. A intensidade dessa verticalização urbana é proporcional ao interesse desses promotores imobiliários privados em ocupar esse território com seus negócios. Portanto, atualmente, a novidade é o interesse na região de determinados grupos sociais, mais ricos, evidentemente, atendidos estritamente por certos empresários atuantes na região, como incorporadores, consumidores dos produtos oferecidos no mercado formal que produz habitações. Como a valorização dessa paisagem somada aos novos empreendimentos imobiliários construídos pressupõem, juntos, a valorização comercial dos bens

163 imóveis, os apartamentos dos novos edifícios se concentram em classes de renda média e principalmente alta. Dessa forma, os agentes privados que praticamente têm monopólio sobre a produção de bens com essas características são os principais incorporadores imobiliários. Essas novas tipologias habitacionais têm custos muito superiores aos rendimentos médios da população mais pobre que ocupava a área inicialmente, ribeirinha por exemplo. Uma manifestação concreta dessas modificações da paisagem e substituição de população é a verticalização recente ocorrida nos bairros de Umarizal e Doca. Por analogia, supõe-se que, provavelmente, o mesmo processo ocorrerá na região onde o empreendimento Portal da Amazônia se implantou.

No âmbito dessa pesquisa de doutorado, um morador do bairro de Jurunas, atingido pessoalmente pelo Portal da Amazônia, foi entrevistado informalmente230. Essa é uma valiosa

forma de compreensão desse projeto, a partir da opinião de pessoas não envolvidas diretamente com os gestores públicos competentes e não beneficiadas com os possíveis produtos imobiliários construídos posteriormente por certos agentes privados. Muitas das questões pontuadas por esse morador são equivalentes aos problemas já relatados sobre a OU Nova BH, especialmente a maneira como o negócio imobiliário foi encaminhado e a forma como certos agentes, públicos e privados, influenciam ou são influenciados pelas circunstâncias criadas nesse processo. Várias das angústias e das dúvidas apontadas por esse morador poderiam ser minimizadas ou evitadas a partir da redefinição da noção de desenvolvimento urbano e da institucionalização de populações atingidas como sujeitos ativos dos processos decisórios:

● Segundo o entrevistado, a prefeitura não ofereceu alternativas objetivas e razoáveis para os moradores que seriam desalojados e teriam suas moradias demolidas. À época, ainda não se tinha, oficialmente, segundo ele, garantias e comprometimentos dos gestores públicos envolvidos de como, quando ou para onde eles seriam encaminhados quando suas casas fossem demolidas. O morador comentou também a angustia que sua família vivia havia meses, gerada pela incerteza sobre seu futuro habitar. A prefeitura incluiu os moradores da região nas discussões sobre o projeto Portal da Amazônia? Resposta do morador: “não”. A partir desse depoimento, é possível entrever diversas etapas do processo em que esse morador não foi consultado: a concepção de suas principais características, debates sobre a pertinência de um projeto nessas características, a definição da área de intervenção, o acompanhamento efetivo do cronograma de desenvolvimento do projeto e da obra, além de decidir se prefere permanecer na região e em que condições. A partir da definição de Maricato (2002), é visível que os agentes públicos competentes consideraram esses residentes como objeto de uma ação e não como sujeitos ativos dessa ação. Aqui, acredita-se que cidadãos com esse perfil sócio-econômico, considerados como sujeitos de qualquer política urbana, atribuiriam à construção de materialidades urbanas outros parâmetros. Com isso, os resultados dessas intervenções seriam ampliados pois abrangeriam interesses de grupos sociais mais variados. Uma das razões que estimulam gestores públicos

164 competentes a excluir tais participações populares é que elas poderiam, eventualmente, contrariar interesses econômicos de importantes agentes privados influentes politicamente. Esses agentes privados seriam capazes de interferir sobre os processos imobiliários que originam tais intervenções urbanas. São capazes de interferir, inclusive, na exclusão tácita dessa populações mais pobres.

● Segundo o morador, apesar de ainda não confirmada pela prefeitura, uma opção seria realocar a população desalojada em regiões mais periféricas da cidade, longe da áreas das intervenções previstas. Tanto o morador quanto sua esposa trabalham na região central, nas proximidades do bairro Jurunas, onde também moram. Ele trabalha no comércio fluvial entre as ilhas vizinhas e Belém: transporta açaí e ancora sua pequena embarcação em portos existentes na região. De acordo com as características do empreendimento Portal da Amazônia, esse portos serão demolidos e substituídos por outras edificações ou atividades. Já a esposa trabalha nas proximidades do mercado Ver-o-peso: prepara e vende comida caseira típica da região nordestina. Se o casal for obrigado a morar na periferia, distante do centro, é possível que perca também seus respectivos trabalhos pois a distância, o transporte público precário e a falta de rendimentos suficientes podem inviabilizar os deslocamentos diários. Com isso, não é apenas a moradia que é perdida, mas as próprias relações sociais construídas ao longo do tempo se perdem. Cruz (2013, n. p.) aponta as mesmas consequências imaginadas pelo morador entrevistado:

Há um processo de desorganização das famílias residentes nessas áreas, que antes conviviam sob o mesmo domicílio, e que agora estão sendo dispersas; são trabalhadores que se encontram sem ocupação porque seus pontos de atividade comercial foram desmontados; são famílias que, pelo valor recebido na indenização, não conseguem comprar outro imóvel naquela área.

O autor também expõe uma série de fatores que desequilibram ainda mais a disputa social por territórios valorizados de Belém: fraco mercado de trabalho formal, forte concentração de renda, baixa qualidade de trabalho, baixa renda salarial, etc.. Essa realidade socioeconômica incidiria sobre o processo de segregação, “especialmente na metrópole de Belém que tem as

faixas de terra nas áreas centrais esgotadas, em decorrência ao alto índice de especulação imobiliária e em função da implantação de projetos de infraestrutura urbana”. Isso tenderia a expulsar moradores mais pobres de áreas valorizadas por ações imobiliárias significativas, públicas ou privadas. Áreas que, inclusive, anteriormente a essas ações, eram consideradas inadequadas para moradia, apesar da grande quantidade de famílias pobres que há gerações vivem nelas. Esse seria o caso das „baixadas‟, regiões próximas da orla do rio Guamá, da baia do Guajará e diversos igarapés. O resultado é que essa população teria que “abrir mão de suas

residências para dar lugar a ambientes infraestruturados e valorizados economicamente, favorecendo mais uma vez o mercado de terras em Belém”. Dentro dos interesses desse capítulo,

165 conclui-se que os agentes privados mais favorecidos são os principais incorporadores e construtores atuantes na cidade, sejam eles locais ou com atuação nacional. O autor não tem dúvidas sobre os objetivos da municipalidade: “a intenção do poder público municipal é mudar a

fisionomia da cidade, tornando-a mais atrativa para os investimentos empresariais de turismo, lazer e moradia” (CRUZ, 2013, n. p.).

Se os agentes imobiliários privados que atuarem, futuramente, na região do Portal da Amazônia forem os mesmos que alteraram profundamente os bairros de Umarizal e de Docas e, além disso, se esses agentes implantarem empreendimentos imobiliários similares aos construídos nesses dois bairros, na mesma intensidade, a paisagem da região e a população residente será completamente alterada. As habitações sub-normais e a respectiva população pobre serão substituídas por famílias da elite econômica belenense, moradores de edifícios de apartamentos.

1.3.3 - Os lagos dos parques goianos não refletem só os edifícios à sua volta