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5 O USO DAS OFICINAS NA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

Na proposta atual da Reforma da Atenção à Saúde Mental no Brasil, a intenção é desinstitucionalizar e incluir os portadores de sofrimento psíquico nos diferentes espaços da sociedade, pois tradicionalmente, a reabilitação era compreendida como restituição a um estado anterior ou à normalidade do convívio social ou de atividades profissionais. Numa definição clássica da International Association of Psychosocial Rehabilitation Services, de 1985, a reabilitação seria:

[...] o processo de facilitar ao indivíduo com limitações, a restauração, no melhor nível possível de autonomia do exercício de suas funções na comunidade (...) o processo enfatizaria as partes mais sadias e a totalidade de potenciais do indivíduo mediante uma abordagem compreensiva e um suporte vocacional, residencial, social, recreacional, educacional, ajustados as demandas singulares de cada indivíduo e cada situação de modo personalizado (PITTA, 1996, p. 19-20).

Para Saraceno (1999), a reabilitação psicossocial precisa contemplar três vértices da vida de qualquer cidadão: casa, trabalho e lazer. A associação das oficinas terapêuticas ao trabalho e à reabilitação pode apresentar inúmeras variações na prática ou no contexto onde é operacionalizada, mas dificilmente contradiz a idéia de que o trabalho é um instrumento de reabilitação.

O Ministério da Saúde define e apresenta os objetivos das oficinas terapêuticas como: “(...) atividades grupais de socialização, expressão e inserção social” (Portaria 189, de

19/11/1991, D.O.U. de 11/12/1991) (BRASIL, 2002, p.51-55) (Anexo 1). Em 10 de Novembro de 1999 foi aprovada a Lei No 9.867 do Deputado Paulo Delgado que dispõe sobre “a criação e o funcionamento de Cooperativas Sociais, visando à integração social dos cidadãos”. As Cooperativas Sociais são constituídas “com a finalidade de inserir as pessoas em desvantagem no mercado de trabalho econômico, por meio do trabalho...”. São considerados “em desvantagem”, para efeitos da lei, “os deficientes psíquicos e mentais, as pessoas dependentes de acompanhamento psiquiátrico permanente, egresso dos hospitais psiquiátricos”, entre outros (BRASIL, 2002, p. 13-14). As oficinas terapêuticas e as cooperativas sociais, como dispositivos da atual Política Nacional de Saúde Mental, objetivam diferenciar-se das práticas antecessoras decorrentes da idéia de estabelecer o trabalho como um recurso do paradigma asilar. Nesse contexto, entende-se as oficinas não se apresentam, por si só, como uma forma inaugural de lidar com a loucura. Poder-se-ia neste momento perguntar qual seria a relação da reabilitação psicossocial com as oficinas e a que se refere a atual Reforma Psiquiátrica, ou em que sentido essas diferenças se relacionam com as práticas antecessoras deste último século?

Se trata, sobretudo de agir, de inserir socialmente indivíduos encarcerados, segregados, ociosos – recuperá-los enquanto cidadãos [...] por meio de ações que passam fundamentalmente pela inserção do paciente psiquiátrico no trabalho e/ou em atividades artísticas, artesanais, ou em dar-lhes acesso aos meios de comunicação, etc (RAUTER, 2000, p. 268).

Esse fato não é totalmente novo, como lembra Resende (2000), ao colocar que não é uma simples coincidência, o trabalho no campo, o artesanato e o trabalho artístico serem até hoje utilizados como técnicas de tratamento e ressocialização dos doentes mentais, pois estas atividades apresentam em comum a capacidade de acomodar largas variações individuais, assim como de respeitar o tempo e o ritmo psíquico de cada trabalhador.

O termo “oficina” vem sendo muito empregado para designar atividades que estão sendo desenvolvidas nos espaços substitutivos de Atenção em Saúde Mental, notando-se que

uma diversidade enorme de atividades se utilizam dessa nomenclatura para se caracterizarem. O que seria exatamente uma “oficina”?

Delgado, Leal e Venâncio (1997, p. 534-538) indicam três caminhos possíveis para se chegar à definição de uma oficina:

• Espaço de Criação: oficinas que possuem como principal característica a utilização da criação artística, como atividade e espaço, afim de propiciarem a experimentação constante;

• Espaço de Atividades Manuais: oficina que desenvolve em seu espaço atividades manuais que demandam um determinado grau de habilidade, e onde se constroem produtos úteis à sociedade, utilizados como objeto de troca material;

• Espaço de Promoção de Interação: oficina que tem como objetivo a promoção de convivência entre os clientes, técnicos, familiares e sociedade, como um todo;

Estes autores afirmam que os fatores de unificação das experiências intituladas “oficinas” não se referem aos tipos de atividades desenvolvidas nesses espaços, mas à noção que se tem desse espaço como um elemento “facilitador da comunicação e das relações interpessoais, favorecendo deste modo a interação, integração e reinserção social”.

Assim, pode-se afirmar que o conceito de oficina sofreu várias modificações ao longo do tempo e para exemplificar esta afirmação, Kyes e Hofling (1985) classificam o termo “terapia” sob três seguintes formas, quais sejam:

• Terapia Ocupacional: técnica que utiliza basicamente a arte e o artesanato como meios de tratamento, com o objetivo de ocupar o paciente para que ele não fique sem fazer nada;

• Terapia Recreativa: técnica que estimula a expressão dos impulsos através de atividades sociais e em grupo, como o objetivo de entreter o paciente;

• Terapia Educacional: tem como objetivo principal educar/reeducar socialmente o paciente para que este ajuste às regras sociais;

Para se entender o significado de “oficina”, faz-se necessário acessar os termos entretenimento e empowerment. Saraceno (1999) define o primeiro deles como “uma ação prazerosa para fazer o tempo passar, seja no sentido primário da etimologia, ‘ter dentro’”. Com base neste autor, entende-se que o principal paradigma da psiquiatria é a manutenção do indivíduo dentro do hospital. Porém, ainda hoje, há o risco da reprodução desta lógica de controle e contenção nos chamados espaços substitutivos de Atenção em Saúde Mental. Para Vasconcelos (2000, p. 268), o termo empowerment é de grande importância para as discussões sobre saúde mental e a construção de suas práticas no cotidiano. O referido autor define o termo como “valorização do poder contratual dos clientes nas instituições e do seu poder relacional nos contatos interpessoais na sociedade”.

As oficinas terapêuticas são atividades que permitem o encontro de portadores de sofrimento psíquico, promovendo o exercício da cidadania, a expressão de liberdade e a convivência dos diferentes. Estas oficinas surgiram ao longo do processo histórico da Psiquiatria, com um objetivo diferente do referencial do paradigma psicossocial. Atualmente, vêm-se constituindo através de princípios específicos, ou seja, a partir da reinserção das pessoas em sofrimento psíquico em seu meio social, respeitando-se a singularidade de cada um, as suas peculiaridades e regionalidades.

No atual modelo de Atenção à Saúde Mental (CERSAM, CAPS, NAPS, Centro de Convivência etc), as ocupações são oferecidas em espaços denominados Oficinas, sendo estas dirigidas por profissionais de níveis superiores e auxiliares de enfermagem. São, portanto, um suporte às propostas terapêuticas, e de fundamental importância para a manutenção da opção do paciente-cidadão. Para Pinto (1995), são “alternativas de apoio ao tratamento [...] espaço acolhedor de inventos e que pode ou não circular enquanto mercadorias [...] o objetivo

principal não é a produção que abra caminhos ao comércio ou afazeres gratuitos e destituídos de sentido, mas a base da reinserção social”. De acordo com Rodrigues (1995), a oficina:

[...] é um espaço onde o indivíduo pode redescobrir a sua capacidade produtiva e desenvolver o sentimento de pertinência ao grupo, ambos fundamentais ao processo de cura [...] transformando objetivos, criando elementos, executando tarefas, percebendo o produto final e concluindo processos os usuários das oficinas conseguem experimentar a satisfação do reconhecimento; o auto-reconhecimento, o reconhecimento do grupo, da equipe técnica e da família. O trabalho nas oficinas facilita a neutralização da forma cruel com que estes indivíduos são cerceados.

Pinto (1995) considera que a experiência de trabalho das oficinas é positiva quando possibilita intervenção no campo da cidadania. Assim, no âmbito social, contribui como possibilidade de transformação da realidade atual, no tratamento psiquiátrico. De acordo com Birmam (1992):

“o enfermo mental seria positivamente um cidadão que não foi reconhecido devidamente pelo Estado brasileiro, constituindo-se então sua privação e sua conseqüente condição negativa de cidadania, que caberia ser politicamente resgatada pelos movimentos sociais do campo da saúde mental”.

Para a manutenção da forma ativa do movimento da Reforma, isto é, de oposição ao modelo organicista e excludente do homem-cidadão, aconselha-se a utilização de atividades que favoreçam ao paciente participar da construção da sua própria imagem, do mundo e das relações de ambos. Há de se manter o cuidado para que as ocupações não sejam usadas simplesmente para sublimar ou ocupar o tempo ocioso e a situação concreta de vida do paciente excluída (HAMDAN, 1997). Além disso, há uma dimensão da prática das oficinas, devendo tomá-las, muito simplesmente, como uma atividade coletiva que remete seus participantes, através da produção, à convivência com o outro (LOBOSQUE, 1997).

A Psiquiatria Democrática Italiana inovou ao criar cooperativas que admitiam entre seus associados 30% de indivíduos que tivessem históricos psiquiátricos. Na Itália, a Lei n◦ 180, de 1978, criou essas cooperativas, que tiveram boa aceitação não apenas por estarem inseridas no contexto da Reforma Psiquiátrica, mas também pelo fato de a cultura cooperativista ter sido difundida neste país desde o início do século, período de elevada taxa de desemprego (WANDERLEY et al., 1997).

A cooperativa se constitui num espaço que acolhe, de maneira apropriada, pessoas com dificuldades de inserção no mercado, para que se tornem associadas. Dessa forma, um lugar social diferente vai se constituindo, onde há divisão social do trabalho, ao invés de exclusão, como nos manicômios. Segundo Amarante (1997, p. 176):

[...] as cooperativas sociais são constituídas com o objetivo, não mais ‘terapêutico’, isto é, rompendo com a tradição da terapia ocupacional, mas de construção efetiva de autonomias e possibilidades sociais e subjetivas. Por um lado, o trabalho nas Cooperativas surge como construção real de oferta de trabalho para pessoas em desvantagem social para as quais o mercado não facilita oportunidades. Por outro, surge como espaço de construção de possibilidades subjetivas e objetivas, de validação e reprodução social dos sujeitos envolvidos em seus projetos.

Amarante (1997) refere que as Cooperativas passam a envolver os usuários como sujeitos sociais ativos, e estes, rompendo com as noções de ergoterapia, arteterapia e terapia ocupacional, agem como um sujeito em sua possibilidade plena de produzir, criar e consumir. Além disso, as cooperativas são uma possibilidade estratégica para o campo da saúde mental quando propiciam a produção de recursos que podem ser parcialmente convertidos em recursos assistenciais, como construção de moradias abrigadas, de espaços de lazer; enfim, permitem a construção de novas possibilidades sociais e subjetivas. Saraceno (1999, p. 126) afirma que:

O trabalho para os pacientes psiquiátricos gravemente desabilitados, não deve ser entendido como o simples desenvolver de determinadas tarefas, pode ser na realidade uma forma ulterior de norma e contenção, de restrição do campo existencial. O trabalho, entendido como “inserção laborativa”, pode, ao invés disso, promover um processo de articulação do campo dos interesses, das necessidades, dos desejos [...] Neste momento as cooperativas integradas são ao mesmo tempo serviços (de tratamento) e lugares de produção (no mercado), e esses dois aspectos são mediados pela sua função formativa [...] lugares de promoção da autonomia bem como de proteção: funções que deveriam ser próprias de um bom serviço de saúde mental (SARACENO, 1999, p. 126).

Segundo Deleuze e Guatarri45 (1976), (apud RAUTER , 2000, p. 269), o trabalho e a arte podem ser grandes “vetores de existencialização”. Rauter (2000, p. 268) retoma Marx46 (1945) para se referir às condições do trabalho no Capitalismo – trabalho alienado – mencionando que as condições pelas quais o trabalho pode se constituir como vetor de

45 DELEUZE, G. & GUATARRI, F. O Anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro : Imago, 1976. 46

existencialização estão bastante reduzidas ou inexistentes. Contrapondo-se a esta idéia, coloca que as “oficinas serão terapêuticas ou funcionarão como vetores de existencialização caso consigam estabelecer outras e melhores conexões que as habitualmente existentes entre produção desejante e produção da vida material”.

Assim, questiona-se qual seria o sentido das Oficinas Terapêuticas na proposta da Reforma Psiquiátrica. A esse respeito, Rauter (2000) esboça uma resposta quando coloca que

[...] as oficinas, o trabalho e a arte possam funcionar como catalisadores da construção de territórios existenciais (inserir ou reinserir socialmente os ”usuários”, torná-los cidadãos ...), ou de “mundos” nos quais os usuários possam reconquistar ou conquistar seu cotidiano ... de crer que está se falando não de adaptação à ordem estabelecida, mas de fazer com que trabalho e arte se reconectem com o primado da criação, ou com o desejo ou com o plano de produção da vida (RAUTER, 2000, p. 271).

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