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3 A REFORMA DA ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL NO BRASIL

Foucault, na História da Loucura (2002a), estuda o nascimento da instituição psiquiátrica e a constituição de um saber sobre a loucura e suas práticas de intervenção. E Bezerra e Amarante (1992) entendem como instituição psiquiátrica: “os conceitos, práticas, normas, estabelecimentos assistenciais, dispositivos legais e corporações profissionais”, ou seja, o modo instituído de tratar os loucos. Resende (2000), a partir de Foucault, coloca que a criação do hospício destinava-se a dois objetivos: a reclusão de um elemento indesejável para a sociedade e a realização de um tratamento, sobre a população tida como perigosa por seu comportamento desregrado.

No século XVIII surgiu a denominação doença mental, a qual permite ao médico delimitar a loucura (FOUCAULT, 2002a). Nessa época, o tratamento da loucura era baseado na vigia, julgamento e correção, feita normalmente com choques elétricos, duchas geladas; atos punitivos, como o isolamento da sociedade. Ao adquirir o status de doença mental, a loucura torna-se objeto de um novo saber surgido na prática do poder ou da internação psiquiátrica. Birman (1992, p. 79) afirma que

“a medicina ao constituir-se como clínica e ponto simbólico de articulação de um conjunto de práticas sanitárias coletivas transforma-se num dispositivo de profissionalização e constituição da instituição manicomial sob os pressupostos do isolamento, disciplina e ordem”.

No Brasil, a partir da experiência italiana fundamentada no discurso de Franco Basaglia, vem-se discutindo e implementando estratégias para a consolidação de

transformações radicais do modelo de Atenção à Saúde Mental. Para Nicácio (1994), Franco Basaglia questiona a lógica manicomial como a lógica da opressão e da violência presentes no cotidiano do hospício.

Quanto as serviços substitutivos de Saúde Mental, seus antecedentes históricos são mais distantes, vinculados a movimentos sociais de vários países que se posicionaram contra as condições de vida e a forma excludente a que estavam submetidas as pessoas com sofrimento psíquico. No Brasil, destacam-se os seguintes movimentos: I Encontro Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental (TSM) (São Paulo, 1979); III Congresso Mineiro de Psiquiatria (Belo Horizonte, 1979); o livro “Nos Porões da Loucura” de Hiram Firmino; o filme “Em Nome da Razão” de Helvécio Ratton; Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro, 1987), onde se adotou o lema “Por uma Sociedade Sem Manicômios”; II Encontro Nacional dos TSM (Bauru, SP) oportunidade que se criou o dia Nacional da Luta Antimanicomial, “18 de Maio”; entre outros (CAMPOS, 1997).

Desde 1992, aprovaram-se oito leis estaduais (Ceará - Lei n◦ 12.151; Distrito Federal - Lei n◦ 97, 975; Espírito Santo - Lei n◦ 5.267; Paraná - Lei n◦ 11.189; Pernambuco - Lei n◦ 9.716; Rio Grande do Norte - Lei n◦ 6.758; Rio Grande do Sul - Lei n◦ 9.716; Minas Gerais - Lei n◦ 11.802), todas em vigor, inspiradas no projeto de Lei Federal n◦ 3657, de 1989, as quais previam a substituição progressiva da assistência no hospital psiquiátrico por outros dispositivos ou serviços também destinou-se incentivo aos centros de atenção diária, para a disponibilização de leitos em hospitais gerais, para a notificação da internação involuntária, assim como para a definição dos direitos das pessoas com transtornos mentais (BRASIL, 2001, p. 19-50).

Apesar das abissais diferenças entre a formação social brasileira e a italiana, a experiência da Psiquiatria Democrática Italiana traz alguns indicadores de mudanças, que gerou a convicção de se realizar uma Reforma Psiquiátrica no Brasil. Segundo Castel (1978),

a Psiquiatria está estruturada sobre a tríade: classificação do espaço institucional, o arranjo nosográfico das doenças mentais e imposição de uma relação específica entre médico e doente, na forma de tratamento moral. A Reforma Psiquiátrica vem questionar essa organização e como estratégia de desmonte do paradigma asilar que começa pelo seu eixo estruturador, o manicômio. Amarante (1994, p. 91) coloca que a Reforma Psiquiátrica é o “processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivo e estratégia o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da Psiquiatria”.

Segundo Campos (1997), a leitura do que se denomina lógica manicomial constituiu uma “cultura” sustentada pelos manicômios, sendo estes dialeticamente mantidos por ela. O saber oficial e as ações técnico-profissionais, alinhados a este modelo e a assimilação na sociedade desse lugar de poder normativo, foram componentes fundamentais de suporte dessa cultura subsidiada pelo mito da periculosidade do louco, mantendo a idéia de que o manicômio trata; a visão do doente mental como um ser desrazoado e incapaz de qualquer tipo de gestão sobre si mesmo ou sobre seus bens; e que, enfim, mantém a crença que o doente mental só pode produzir quando readquirir sua razão perdida.

A proposta atual da Reforma Psiquiátrica, no Brasil, tem como objetivo a desinstitucionalização e inclusão do indivíduo com sofrimento psíquico nos diferentes espaços da sociedade. Segundo Rotelli (1990) “a desinstitucionalização não deve ser praticada só no interior da instituição fechada (manicômio) e se propõe a necessidade de ‘desinstitucionalizar – reabilitar o contexto’”. A principal função reabilitadora da Reforma Psiquiátrica seria a restituição da subjetividade do indivíduo na sua relação com as instituições sociais, ou melhor, a possibilidade de recuperação da contratualidade.

Segundo Amarante (1997), a Reforma Psiquiátrica tem produzido transformações em quatro campos bem distintos: campo teórico-assistencial, técnico-assistencial, jurídico- político e sociocultural.

No campo teórico-assistencial vem ocorrendo a desconstrução de conceitos e práticas sustentados pela Psiquiatria e Psicologia nas suas concepções acerca da doença mental-cura. Para tal, construíram-se conceitos como “existência-sofrimento” do sujeito na sua relação com o corpo social, paradigma estético, acolhimento, cuidado, emancipação e contratualidade social.

No campo técnico-assistencial está em construção uma rede de novos serviços que oferecem espaços de sociabilidade, de trocas, com ênfase na saúde como produção de subjetividades. Este campo tem proporcionado transformações na concepção de novos equipamentos (CAPS, NAPS, Oficinas Terapêuticas e de Reintegração Sociocultural e Cooperativas de Trabalho) e na sua forma de organização e gestão (instituições abertas com participação e co-gestão com os usuários e população). A ênfase está nas experiências na área de abrangência da instituição, conceituada de território.

No campo jurídico-político têm-se consolidado várias leis municipais e estaduais a favor do tratamento do portador de sofrimento mental. No entanto, no âmbito nacional aprovou-se a Portaria 336/GM que oficializa os CAPSs como dispositivos de Saúde Mental Coletiva, para efeito de financiamento de suas ações pelo SUS e mudança do modelo assistencial na perspectiva da atenção psicossocial.

No campo sociocultural têm-se construído práticas visando transformar o imaginário social relacionado à loucura, à doença mental e à anormalidade até se chegar ao conceito de existência-sofrimento. Essas transformações mostram a instituição como espaço de circulação e pólo de exercício estético, e a imagem do “louco” como cidadão que deve almejar poder de contratualidade social.

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