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CAPÍTULO 2: EM BUSCA DE UM OLHAR TEÓRICO SOBRE O PENSAMENTO ALGÉBRICO:

2.2. Objetificação do Conhecimento

Ao nascermos, o mundo com o qual nos deparamos constitui-se como um mundo histórico, repleto de objetos concretos e conceituais, os quais vêm sendo desenvolvidos e lapidados através de séculos de atividades cognitivas. Nesse sentido, as formas culturais de raciocínio desenvolvidas e refinadas ao longo de milhares de anos estão longe de serem triviais para os estudantes.

Portanto, para alunos ‘inexperientes’– que nunca trabalharam ou trabalharam pouco com tarefas que envolvam generalizações –, perceber um traço comum (ou uma regularidade) entre os elementos de uma sequência não é algo simples, que acontece de repente ou ao acaso, mas sim, de acordo com Radford (2011), um processo gradual, sustentado por uma observação buscando semelhanças e diferenças entre os termos da sequência a ser trabalhada. Mesmo em atividades simples, existem várias características nas figuras dadas que podem ser consideradas semelhantes, assim como existem outras que podem ser consideradas diferentes.

Como exemplificado por Radford (2010a), em uma atividade aplicada para uma turma de alunos com idade igual a 13 ou 14 anos9, envolvendo a sequência de figuras abaixo,

8 Algebraic thinking does not appear in ontogeny by chance, nor does it appear as the necessary consequence of

cognitive maturation. To make algebraic thinking appear, and to make it accessible to the students, some pedagogical conditions need to be created (RADFORD, 2011, p. 308 e 309).

9 Tal turma refere-se ao grau 8 – grade 8 – do sistema escolar canadense. No presente texto, optamos por abordar

Mel – uma das alunas da turma – percebeu uma regularidade diferente daquela percebida por Doug – outro aluno da mesma turma.

Figura 1: Sequência de figuras trabalhadas na pesquisa de Radford. Fonte: Radford (2010, p. 41). De acordo com o exposto por Radford (2010), Mel percebeu a figura como dividida em duas linhas e, dessa forma, foi capaz de observar que o número de círculos da linha de cima é sempre o número da figura mais um, enquanto o número de círculos na linha de baixo é sempre o número da figura mais dois.

Já Doug percebeu e mostrou, através de gestos rítmicos, que, apesar de todas as figuras terem a mesma forma, elas são diferentes. E o que as fazem diferentes são os dois círculos a mais que cada figura tem em relação àquela imediatamente anterior e que estão dispostas na diagonal e no final de cada uma delas, como demonstrado abaixo:

Figura 2: Esquema representativo da regularidade percebida por Doug. Fonte: Radford (2010, p. 43).

Dessa forma, Doug e Mel perceberam regularidades diferentes em uma mesma sequência de figuras, visto que os traços comuns destacados pelos estudantes nem sempre são os mesmos.

Isso se deve ao fato de que a imagem de um objeto em nossa mente não é simplesmente um mapeamento de seus atributos físicos e/ou uma apreensão de todas as suas possíveis características observáveis aos nossos olhos e à nossa percepção intelectual.

Radford (2010b), ao contrário, afirma que no ato de percepção e observação de um objeto não o apreendemos em sua totalidade. Ao invés de ser completa, a percepção humana é seletiva ou intencional. Por isso, não é suficiente que os estudantes disponham de uma sequência de figuras diante de seus olhos. É interessante também que eles notem tais figuras

de um modo intencional, indo além de suas características especificamente físicas e/ou numéricas.

A atividade a seguir (RADFORD, 2010b) ilustra tais ideias. Em uma classe composta por estudantes de 7 ou 8 anos10

é apresentada a sequência de termos ilustrada na seguinte figura:

Figura 3: Primeiros quatro termos de uma sequência trabalhada em uma turma do 2º ano. Fonte: Radford, 2010b, p. 3.

Os alunos foram apresentados aos quatro primeiros termos da sequência, conforme ilustrado, e convidados a continuá-la até o seu sexto termo. Alguns estudantes, focados apenas na relação numérica entre termos consecutivos, perceberam que em determinada posição havia dois quadrados a mais do que o termo da posição imediatamente anterior e apresentaram a seguinte resolução:

Figura 4: O momento em que um estudante (James) está desenhando o sexto termo; o quinto (linha de cima) e o sexto (linha de baixo) termos de James; oitavo termo de acordo com outra estudante (Sandra). Fonte: Radford, 2010b, p. 3.

Conforme apresentado na parte central da figura 4, os termos referentes à quinta e à sexta posições da sequência foram desenhados pelo estudante como se tivessem uma única linha. Percebemos, assim, que a característica espacial, ou seja, a forma como os quadrados estavam dispostos em cada uma das figuras da primeira até a quarta posição não foi levada em consideração no momento da resolução.

Nesse caso, os alunos focaram sua percepção apenas na quantidade de

quadradinhos presentes em cada figura e não consideraram, pelo menos em seus desenhos, as demais características de cada termo da sequência. Logo, ‘o problema para os estudantes, então, é perceber as figuras de certo modo intencional. Eles devem ir além da postura intencional focada na numerosidade, que faz com que as figuras apareçam de certa forma na consciência, para outra baseada nas linhas’11

(RADFORD, 2010b, p. 4, tradução livre das autoras).

O autor destaca que os estudantes certamente veem as duas linhas em cada figura. . Porém, eles parecem não considerar importante reconhecer cada termo da sequência a partir de sua disposição espacial. Na verdade, tais informações geométricas foram deixadas como ‘pano de fundo’, cedendo espaço apenas para a questão numérica.

Em vista disso, assim como o autor, entendemos que perceber os vários atributos de uma figura não constitui tarefa simples para nossos estudantes. Para Radford (2010b), o olhar dos matemáticos passou por um processo de domesticação, a partir do qual eles foram culturalmente educados para organizar a percepção de fatos e objetos em modos racionais particulares. Essa domesticação do olhar ‘é um longo processo no curso do qual nós chegamos a ver e reconhecer as coisas de acordo com significados culturais ‘eficientes’. É o processo que converte o olho (e outro sentido humano) em um órgão intelectual sofisticado’12 (RADFORD, 2010b, p. 4, tradução livre das autoras).

Assim, entendemos que perceber um objeto, fato ou figura sem menosprezar algum de seus atributos que seja interessante para o seu estudo requer ações intencionais específicas. Assim, muitas vezes, os estudantes devem ir além de uma percepção superficial dos termos conhecidos de uma sequência, a fim de desenvolver uma forma de raciocínio matemático em direção ao pensamento algébrico.

Na verdade, não entendemos que os alunos devam estar atentos a todos os atributos dos termos de uma sequência trabalhada, uma vez que algumas características podem ser desprezadas. Por exemplo: suponhamos que na sequência da figura 1, todos os círculos estivessem pintados da cor vermelha; considerar tal fato não traria contribuições para o estudo

11

The problem for the students, then, is to attend to the figures in a certain intentional way. They have to go beyond the intentional stance focused on numerosity, which makes the figures appear in a certain way in consciousness, to a different one, based on rows (RADFORD, 2010b, p. 4).

12

The domestication of the eye is a lengthy process in the course of which we come to see and recognize things according to “efficient” cultural means. It is the process that converts the eye (and other human senses) into a sophisticated intellectual organ (RADFORD, 2010b, p. 4).

daquela sequência da forma abordada aqui.

Nesse sentido, destacamos que a questão, então, gira em torno de quais características da sequência devem ser consideradas e quais podem ser ignoradas. Cabe ao professor o papel de auxiliar o aluno a perceber e entender quais atributos dos termos da sequência são importantes no contexto da tarefa que está sendo trabalhada.

Nesse sentido, o professor assume uma responsabilidade complexa, visto que ganhar fluência em formas de raciocínio matemático mais complexas não consiste em uma mera transmissão de conhecimento. (...) Uma forma sofisticada de generalização alcançada pelos estudantes durante uma atividade exige a emergência de certas sensibilidades, tais como perceber as figuras de modo que facilite responder a questões sobre os termos 12, 25, 100, ou outras figuras que estão além do campo sensorial da percepção13 (RADFORD, 2010b, p. 6, tradução livre das autoras).

Logo, entendemos que o docente tem o papel de criar oportunidades e condições que possibilitem aos alunos transformarem o objeto do conhecimento em um objeto arraigado a sua consciência. Para tal, existe uma variedade de recursos semióticos que podem auxiliar professores e estudantes na tarefa de notar traços comuns ou observar uma regularidade em uma sequência.

Para Radford (2010a), essa ação perceptual desdobra-se em um processo mediado por uma atividade que o autor chamou de multi-semiótica, que envolve palavras, gestos, fórmulas, desenhos, entre outros. Tal processo, dentro do qual o objeto a ser visto emerge progressivamente, foi denominado processo de objetificação (RADFORD, 2010a). Nas palavras do autor, ‘objetificação do conhecimento é um construto teórico que leva em conta o modo como os estudantes se engajam a fim de perceber e dar sentido a algo’14 (RADFORD, 2010a, p. 45, tradução livre das autoras).

Apoiado na ideia de que o pensamento é uma atividade ligada ao contexto e à cultura dentro dos quais ele ocorre, o autor afirma que os processos de objetificação são ‘aqueles através dos quais os estudantes apreendem a lógica cultural em que os objetos do

13

Gaining fluency in complex mathematical forms of reasoning does not, of course, consist of a mere transmission of knowledge. It would be a mistake to see in the previous passages the teacher merely “transmitting” a generalizing method. The sophisticated form of generalization reached by the students during the activity required the emergence of certain sensibilities, such as perceiving the figures in certain ways that facilitate the calculations required to answer questions about Terms 12, 25, 100, or other figures beyond the perceptual sensorial realm (RADFORD, 2010b, p. 6).

14(…)

the objectification of knowledge is a theoretical construct to account for the way in which the students engage with something in order to notice and make sense of it (RADFORD, 2010a, p. 45).

conhecimento têm sido dotados e tornam-se familiarizados com formas de ação e pensamento historicamente constituídas s’15

(RADFORD, 2009, p. 5 e 6, tradução livre das autoras). Dessa forma, para se comunicar matematicamente, os professores e os alunos recorrem a signos e artefatos de diferentes tipos – palavras, gestos, fórmulas, calculadora, gráficos, etc. Estes e outros recursos semióticos usados para objetificar o conhecimento o autor denominou como meios semióticos de objetificação.

Radford (2010a), apoiando-se no princípio da não redundância de Émile Benveniste, afirma que os sistemas semióticos não são ‘sinônimos’. Devemos estar atentos para refutar a crença da traduzibilidade, isto é, a crença de que uma fórmula indica a mesma coisa que um gráfico ou um problema escrito em linguagem natural. Porém, isso também não significa que um sistema semiótico seja completamente independente de outro. ‘A objetificação da estrutura matemática por trás de um padrão que foi mediado através de palavras e gestos pode ser aprofundada por uma atividade mediada por outros tipos de signos’16

(RADFORD, 2010a, p. 45, tradução livre das autoras).

Nessa perspectiva, reforçamos a ideia de que, ainda que o pensamento algébrico possa ser inicialmente desenvolvido a partir de sistemas semióticos baseados em gestos, palavras ou desenhos, a linguagem algébrica é fundamental para o aprofundamento do estudo da Álgebra.

Dentro desse desenvolvimento inicial do pensamento algébrico, o autor apresenta alguns trabalhos com tarefas que envolvem processos de generalizações, a fim de perceber os procedimentos dos alunos e os tipos de generalizações realizadas. No próximo tópico abordamos tais ideias.