• Nenhum resultado encontrado

Parte I Ambientalismo, ONGs e Turismo Sustentável

Capítulo 2: Autoridade, legitimidade, influência e representatividade das ONGs

2.2 ONGs atores e/ou mediadores sociais?

De acordo com Deponti e Almeida (2008), a mediação social é:

“Um conjunto de saberes, idéias, valores, crenças,

mundo que são transmitidas com o objetivo de construção de novas posições e identidades. A mediação se ancora no reconhecimento de um saber-fazer por parte dos mediados e na troca de conhecimentos ou saberes técnicos e científicos com mediadores” (DEPONTI; ALMEIDA, 2008:1).

Para Deponti e Almeida (2008), a mediação social é uma via de mão dupla, na qual a via é a relação, e os mediados e mediadores são as mãos, de forma que ambos se modificam e se influenciam mutuamente. A mediação, como todo processo pacífico de intervenção, busca compor pactos, acordos ou consensos sobre o(s) tema(s) em tela, muitas vezes escolhidos pelos mediadores, fato comum quando se trata de meio ambiente e Turismo. Assim, pactos, acordos e consensos, construídos talvez sobre pontos de vista antagônicos, dificilmente serão neutros e inclusivos, podendo excluir as diversas formas de pensamento e de orientação rumo a objetivos e prioridades, estes também, nem sempre comuns.

As ONGs, assim como os dirigentes políticos dos quais fala Touraine (1989a) exercem seu poder não por causa de sua representatividade ou competência profissional, mas sim por exercerem o papel de intermediários, mediadores entre comunidades e o poder estatal, o qual configura-se como algo muito distante e inacessível às comunidades e acessado pelas ONGs.

A democracia seria para Touraine (1989, 1989a, 1996) um sistema de mediações políticas entre o Estado e os atores sociais e não um modo racional de gestão da sociedade. Esta gestão passa a ser realizada de forma descentralizada por muitas ONGs, as quais identificarão comunidades que, de acordo com alguns indicadores selecionados demonstrem necessitar de apoio e mediação das ONGs que assim justificam e legitimam suas intervenções, muitas vezes expondo a comunidade como desarticulada, frágil, desorganizada, dependente, carente aos patrocinadores de suas ações.

Sobre o que conversar, quais são as prioridades, como será realizada a mediação, sob quais regras, rumo a qual orientação, sob qual formato e conceito de participação, com quais estratégias e grau de respeito pela diversidade e pluralidade cultural, são as questões fundamentais que se apresentam no processo, nada fácil, de mediação. Qualquer um dos itens acima, quando

desconsiderado, pressupõe um uso de poder e autoritarismo que eliminaria a suposta neutralidade do processo.

Não se pode ser ingênuo. Neutralidade é algo a ser perseguido na mediação, mas improvável de se concretizar na prática. Entre lógicas diferenciadas de compreender e vivenciar o mundo, dos mediadores e mediados entre si e na relação entre as categorias no processo de diálogo, qualquer conciliação implica na transformação das partes, sempre, na medida em que se influenciam mutuamente.

“Os agentes de desenvolvimento rural geralmente estão vinculados a um projeto de desenvolvimento em que as idéias, as previsibilidades e as intenções dos mediados se expressam por um exercício de encontro e de confronto com os objetivos institucionais que os mediadores representam. Forma-se assim uma arena, que é um lugar de confrontações concretas de agentes sociais em interação. Logo, um projeto de desenvolvimento é uma arena que não é neutra, porque apresenta conflitos entre os grupos estratégicos” (DEPONTI; ALMEIDA, 2008:3).

A questão da neutralidade também pode ser questionada, pois, para ser ouvido pela comunidade, o mediador deve expor, de alguma forma, seu poder, já que, do contrário, poderá não ser recebido. Assim, o mediador deverá apresentar- se como pessoa competente para aquilo que se propõe, com poder de fazer a mediação e levá-la adiante. Além disso, deve expor a organização que representa. Isso, por si só, muitas vezes fará com que haja rejeição ou aceitação do mediador, conforme a imagem da organização na comunidade.

Difícil nessa relação é deixar de fazer promessas, e, estas quando realizadas, geralmente possuem teor de salvadoras ou de emancipadoras. Não fosse assim, por qual razão comunidades se reuniriam em torno de um projeto que não fora por elas proposto? E a perspectiva gerada por uma promessa qualquer de melhoria? Quando não cumpridas, as promessas têm o poder de desestimular as comunidades a esta e a outras experiências de mediação e de intervenção quaisquer.

Caberá ao mediador, enquanto agente externo seja ele um extensionista, membro de uma ONG, de uma empresa, governo, Igreja ou de universidade, preparado ou não para a tarefa proposta (muitos sequer conhecem códigos e especificidades do grupo a ser trabalhado), determinar o início do diálogo. Esta intervenção poderá ocorrer às vezes à revelia da comunidade, poucas vezes a convite da mesma, e, por vezes em função de uma crise e vulnerabilidade intensas, as quais por si só pressupõem desigualdade ou desnível de poder, além da falta de alternativas que não sejam as apresentadas pela ONG.

Investido de certo poder emanado do seu vínculo direto com alguma organização, ou uma rede de relações, o mediador tem status e uma suposta legitimidade, a qual, segundo Oliveira (2004) está associada aos capitais simbólicos, culturais, políticos e sociais. Os mediadores selecionarão os temas, estratégias, prazos e as principais metas, investidos que estão de poder. Este poder baseia-se em conhecimentos técnicos e científicos, mas também, pode ser derivado do poder advindo das organizações representadas por eles.

Assim observa-se uma contradição entre o que se propõe e o que se sabe serem os objetivos não explicitados das organizações representadas (às vezes de todos os lados, quando mediados possuem também interesses ocultos ou não suficientemente divulgados), com boas ou más intenções, muitas vezes urgentes, sem tempo suficiente para o amadurecimento dos envolvidos.

Outra contradição comum é que, embora seja proposto um diálogo, por vezes as comunidades são desqualificadas pelos proponentes. Isso ocorre até para justificar aos financiadores ou para as próprias organizações por traz da mediação, a necessidade da intervenção.

Todos parecem esquecer que as ONGs assim como os partidos políticos devem estar a serviço de interesses sociais e não de si mesmos (TOURAINE, 1996). Ao pretenderem uma intervenção em troca da necessidade da ONG pautada em uma agenda por ela estabelecida, com ações de marketing, metas a alcançar e uma série de metodologias por elas utilizadas, muitas vezes atravessam processos comunitários de empoderamento já iniciados desqualificando-os em seu alcance, estratégias, competência.

Em outros casos a própria formação dos mediadores será insuficiente para a função, visto que normalmente os mesmos são formados sob racionalidades distintas, as quais valorizam um tipo de saber e de conhecimento, muitas vezes em detrimento de outros. Quando estas questões são percebidas pela comunidade, ou ainda, quando interpretadas por elas de forma diferente, sob o seu ponto de vista, o diálogo é desfeito, não somente com este mediador, mas também com os próximos que poderão vir, em uma negação, desconfiança e até desqualificação definitiva dos interventores de fora, gerando uma resistência imprevisível aos que vierem depois.

Quando o mediador participa de uma arena, ele passa a ser também um ator específico e contraditório. Sua posição na arena deve ser observada e sua influência, questionada, visto que possivelmente será origem de novos conflitos, na medida de sua força, seu projeto e estratégias geralmente predefinidas.

A presença das ONGs, assim como argumenta Touraine (1989a: 280) com relação aos partidos políticos, pode revelar “os limites ou as crises do sistema

político e não a presença de atores coletivos desejosos e capazes de por em causa a organização social”.

Outras questões propostas por Deponti e Almeida (2008:11) são relativas à origem da intervenção: o fato de se escolher quem será empoderado, a questão da imposição de “projetos, práticas, estratégias, ações, identidades, motivações”; e de “limites claros no tempo e no espaço, com objetivos pré-definidos”.

Embora a mediação social pressuponha a emancipação dos mediados, a politização deles e de suas arenas, de fato ocorrerá a partir dos novos movimentos sociais, responsáveis pela democratização. Segundo Laclau (1986) será nas características que definem os novos movimentos, que se abrirá espaço para a articulação e para a mediação, sendo a primeira, a maior responsável pela formação de atores (ou agentes) políticos que farão parte dos novos movimentos.

Segundo Ayres e Irving (2006):

“A construção de um modelo de gestão participativa para

áreas protegidas (...) pressupõe um conjunto de princípios e processos, que permita o envolvimento sistemático e

pesquisador), no processo de tomada de decisões, numa relação de responsabilidade e interdependência. A partir desta leitura, o conflito pode ser interpretado como 'espaço dinâmico de movimento', na interlocução entre os diferentes atores sociais” (AYRES; IRVING, 2006:80).

Laclau (1986) afirma que a partir do final do século XX, quando começou a haver uma multiplicação de pontos de ruptura, com uma crescente burocratização da vida social e acomodação das sociedades industriais ocorreu uma proliferação dos antagonismos sociais, com isso, cada qual criou o seu próprio espaço, politizando as relações sociais. É nesse cenário que o ambientalismo e outros novos movimentos sociais se inserem. Estes, ao invés de assumirem seus interesses específicos em uma determinada esfera política, tratarão de politizar, cada um diretamente o espaço específico no qual foram constituídos. Para o autor:

“O potencial radicalmente democrático dos novos

movimentos sociais reside precisamente nisto ─ em suas exigências implícitas de uma visão indeterminada e radicalmente aberta da sociedade, na medida em que cada arranjo social 'global' representa somente o resultado contingente de operações de barganha entre uma pluralidade de espaços, e não uma categoria básica, a qual determinaria o significado e os limites de cada um destes espaços” (LACLAU, 1986:6).

Desta forma, segundo Laclau (1986), com o fim da identidade dos agentes e dos espaços políticos unificados, a pluralidade de exigências concretas atuais conduzirá a uma proliferação de espaços políticos, reduzindo a distância entre representantes e representados.

Laclau afirma que na contemporaneidade, nos denominados novos movimentos sociais, torna-se cada vez mais difícil identificar um grupo no qual haja um sistema organizado e lógico de posições de sujeitos. Tal constatação resulta na autonomia das posições dos agentes sociais e na indeterminação do tipo de articulação entre as diferentes posições, as quais, não podem mais ser derivadas automaticamente da unidade do grupo ao qual o agente se filia. Este

agente pode assumir diversas posições, nem sempre coerentes e racionais entre si:

“Por último, se a identidade dos agentes sociais não é mais

concebida como constituída num único nível da sociedade, a presença desses agentes em outros 'níveis' também não pode mais ser concebida como uma 'representação de interesses'. O modelo de 'representação de interesses' perde assim sua validade. Porém, pela mesma razão, o político deixa de ser um nível do social, tornando-se uma dimensão presente, em maior ou menor escala, ao longo de toda a prática social. O político é uma das formas possíveis de existência social (...). Os novos movimentos sociais têm sido caracterizados por uma crescente politização da vida social (lembrem-se do slogan feminista: 'o fator pessoal é fator político'); mas também é precisamente esse ponto que fez ruir a visão do político como um espaço fechado e homogêneo” (LACLAU, 1986:2).

O ator social, a partir do fim da ideia de subjetividade homogeneamente constituída, não é uma entidade unificada, homogênea e coerente e, sim, deve ser visto como uma pluralidade, constituída por várias posições de sujeito e diversas formações discursivas. Esta nova definição de atores sociais conduz, segundo Laclau (1986), a uma característica que é central para se compreender os novos movimentos sociais. Estes serão caracterizados por ser um conjunto de posições dos sujeitos referentes a vários dos aspectos de sua sociedade, coletividade e cultura que formará o ideário sob o qual o sujeito elaborará suas posições, seus discursos, agendas e lutas, de certa forma autonomamente, sendo ele considerado um agente descentralizado, no qual cada uma de suas posições influenciará a outra, provocando conexões únicas e imprevisíveis.

O esforço para conectar as diferentes posições dos sujeitos se dará por meio do conceito de articulação, que invariavelmente atingirá todas as posições de sujeitos.

“Toda posição de sujeito é assim organizada no âmbito de

uma estrutura discursiva essencialmente instável, já que está sujeita a práticas articulatórias as quais, de pontos diferentes de partida, a subvertem e a transformam. Se a conexão

trabalhadores atingisse o ponto onde cada um implicasse necessariamente no outro, eles teriam ambos se tornado parte de mesma formação discursiva e não representariam mais, portanto, posições diferentes de sujeito, mas, sim, momentos diferenciais de uma posição unificada de sujeito. Neste caso, não haveria espaço para nenhuma prática articulatória. Como não é isto o que ocorre, já que a realidade social nunca atinge tal ponto de fechamento, as posições de sujeito sempre denotam um certo grau de abertura e ambiguidade (em termos técnicos, elas sempre mantêm, em alguma medida, o caráter de 'significantes flutuantes')” (LACLAU, 1986:4).

Articulação e mediação social são conceitos (e práticas) diferentes, visto que articular implica promover novas e por vezes inesperadas sínteses, a partir dos arranjos realizados por sujeitos, identidades e conceitos diversos. O ponto de partida e o de chegada não estão dados, mas serão formados no e durante o processo. Há geralmente um novo resultado ditado por meio de acordos, pactos e negociações realizados nas diversas arenas. A mediação, por sua vez, busca uma síntese lógica, de certa forma, previsível, entre mediados e mediadores. Para Laclau (1986), a identidade criada pela articulação é chamada de discurso.

A arena seria o espaço da mediação. ONGs por vezes serão as mediadoras, noutras serão atores do processo, às vezes ocuparão as duas posições.

Na construção de pactos e acordos entre ONGs e comunidades precisa estar clara a posição a ser ocupada pelos que negociam, para assim poder situar os envolvidos para dialogar com algum grau de representação e de previsibilidade perante os demais atores, e, em torno de temas sobre os quais, a seu modo, têm o que dizer. Assim, estaria de alguma forma, garantido o mínimo de representatividade e de consenso necessários para dialogar.

Isso por si só não é tarefa simples, o que dizer de pactos, articulações que ocorrem na esfera internacional? Como serão formados estes atores? A quem pode ser atribuída a função de mediar? Há qualquer possibilidade de se fazer representar? Ter legitimidade? Vejamos a seguir.

2.3 A competência tecnocientífica, o aprendizado social e as redes