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ORÇAMENTO PÚBLICO E CONTROLE DEMOCRÁTICO NA REALIDADE BRASILEIRA

2. CRISE DO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO E SEUS REBATIMENTOS NO CONTROLE DEMOCRÁTICO BRASILEIRO

2.4. ORÇAMENTO PÚBLICO E CONTROLE DEMOCRÁTICO NA REALIDADE BRASILEIRA

Na conjuntura atual, o controle democrático das políticas sociais não pode ser analisado sem referência ao orçamento público, uma vez que a canalização de recursos para o financiamento dessas politicas públicas vem, atualmente, sofrendo regressão e submissão à política econômica. Com essa direção, o Estado não consegue enfrentar as raízes das expressões da questão social, mas restringir sua intervenção nas áreas sociais mais gritantes.

Sabe-se que o orçamento público agrega e institucionaliza numa lei os distintos interesses que perpassam os poderes instituídos (executivo, legislativo, judiciário), além de diferentes sujeitos sociais. No nosso país, ele sempre foi apropriado pelo capital, pela elite brasileira, numa transferência dos recursos da seguridade social para a esfera financeira num processo de manter e garantir a acumulação capitalista. Por isso o conhecimento deste instrumento é uma estratégia para a efetivação de direitos e para o exercício do controle social democrático, como bem reflete Correia (2002, p.127):

Para que o controle social exista de fato, é necessário controlar os recursos, pois é na elaboração destes que se define a referida política, principalmente numa conjuntura em que o fundo público brasileiro vem

sendo utilizado, cada vez mais, para favorecer os interesses da classe dominante por meio do financiamento da acumulação do capital, em detrimento do financiamento de serviços públicos, interesses das classes subalternas.

Para se compreender o orçamento das políticas sociais públicas, se faz necessário o entendimento da carga tributária brasileira que são recursos socialmente criados e administrados pelo Estado por meio da extração de tributos da sociedade para o financiamento das políticas sociais públicas e para garantia e defesa dos direitos de cidadania.

A partir da Constituição Federal de 1988, o financiamento das políticas sociais faz parte de um ciclo orçamentário que compreende o plano plurianual (PPA); a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)12, definidora de regras, limites e prioridades, e, finalmente, a Lei Orçamentária Anual (LOA), com a função de prever o volume e definir como serão distribuídos os recursos que o Estado arrecada junto à sociedade a cada ano” (BARBOSA, 2007).

Em sua forma mais restrita, o ciclo orçamentário brasileiro13 pode ser assim entendido: o poder executivo elabora o PPA e apresenta ao poder legislativo para apreciação e alterações por parte dos parlamentares. Entidades que disputam hegemonia na sociedade civil tem o papel de se munir de informações para poder participar dos debates e apresentar sugestões que modifiquem as propostas no sentido de atender suas reivindicações.

A carga tributária do Brasil já é mais alta que a de muitos países desenvolvidos, saltou de 29% para 36% do PIB (BOSCHETTI e SALVADOR, 2006), no período de 1994 a 2003. No entanto esses recursos do fundo público não são investidos de forma

12 A LDO é uma das etapas para se chegar à versão final do orçamento. Sua importância está

entrelaçada às próprias dimensões múltiplas que o orçamento assume, a saber, peça política, instrumento de planejamento, referência jurídica, engrenagem econômica, mecanismo de prestação de contas e, também, meio de controle da sociedade sobre o Estado. (Barbosa, 2007)

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Ciclo orçamentário ampliado: 1- formulação e apresentação do PPA pelo executivo; 2- apreciação e adequação do PPA pelo legislativo; 3- executivo apresenta a LDO com as metas e prioridades; 4- apreciação da LDO pelo legislativo; 5- elaboração e apresentação da LOA pelo executivo; 6- apreciação e adequação do orçamento pelo legislativo; 7- execução do orçamento aprovado; 8- controle pela avaliação de execução e controle das contas. Este ciclo foi apresentado por Evilásio Salvador no Seminário Nacional: o Controle social e a consolidação do Estado Democrático de Direito em Brasília- 2008.

substancial nas políticas de seguridade social14 e nem nas demais políticas sociais como educação, reforma agrária e outras, que não foram inclusas no conceito limitado de seguridade social da Constituição Federal.

De acordo com Salvador (2009, p. 01),

Nos últimos doze anos a despeito das dificuldades de crescimento econômico do país, da elevação do desemprego e da queda da renda dos trabalhadores, a arrecadação de impostos continua quebrando todos os recordes históricos e reforça a injusta estrutura tributária brasileira. O aumento dos tributos no Brasil foi oriundo, basicamente, de contribuições sobre o consumo, como a COFINS (contribuição para o financiamento da seguridade social) e a CPMF (contribuição provisória sobre movimentação financeira), além do aumento do imposto de renda das pessoas físicas.

Além de elevada, a carga tributária é regressiva, na medida em que incide mais fortemente nas menores rendas, ou seja, os que possuem uma renda menor pagam mais tributos que os ricos com altas rendas, reforçando assim uma concentração de renda e riqueza em detrimento da redistribuição. No Brasil, os tributos recaem em mais de 60% sobre o trabalho (SALVADOR, 2010).

Na história do país, o fundo público sempre foi utilizado para garantir a acumulação do capital, ademais e, gravemente, pois são recursos provenientes mais do trabalhador e da classe média do que da classe capitalista. Na composição da receita tributária, 63% recaem sobre o consumo, 4% sobre o patrimônio e sobre a renda não ultrapassa 25% do total dos tributos arrecadados (BEHRING, 2008); (SALVADOR, 2009).

Coaduna-se a esta realidade a concentração e a centralidade dos recursos na esfera nacional, 60% da carga tributária permanece como receita do governo federal, uma contradição ao princípio constitucional da descentralização/municipalização. A união não partilha as contribuições com os Estados e Municípios, ocasionando nos

14Conforme prevê a Constituição o orçamento fiscal é o resultado dos impostos arrecadados pela União

e o orçamento da seguridade social é a soma do que se arrecada em contribuições específicas para financiar a saúde, a assistência social e a previdência social.

últimos anos uma redução da participação dessas esferas na receita tributária total

(BOSCHETTI e SALVADOR, 2006).

A questão da descentralização/municipalização remete à articulação do governo local em prestar os serviços à população, considerando que este governo possui melhor apreensão da realidade local, podendo, assim, desenvolver ações que correspondam às reais necessidades da população, além de oferecer condições ao surgimento de espaços ou instâncias, que possibilitem a articulação entre o Estado e a sociedade civil nos processos de decisão concernentes às políticas sociais.

Tal aspecto descentralizador evidencia-se no parágrafo VII e no artigo 204, parágrafo I da Constituição Federal de 1988 referentes a área da seguridade social:

Art. 194

VII– caráter democrático descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos públicos. Art.204

I- descentralização político administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social”.

Entretanto, Soares (2002) analisa que a ampla divulgação do processo de descentralização político-administrativa na constituição de 1988 tem se mostrado como meio de transferência da responsabilidade do governo Federal para as instâncias menores, como é o caso da municipalização, em que nesta há um menor nível de arrecadação para o financiamento das políticas sociais que são transferidas, acarretando na precariedade dos serviços.

Portanto, a descentralização apresenta-se como transferência de problemas do âmbito Federal para os níveis estaduais e municipais. Soares (2002, p. 77) afirma que, “na realidade, a descentralização tem se caracterizado pela mera transferência da responsabilidade sobre serviços completamente deteriorados e sem financiamento para os níveis locais de governo”.

Stein (1997) reflete que o processo de descentralização/municipalização tende a deslocar de um setor para outroa responsabilidade de providenciar os serviços sociais básicos, ficando, o Estado desresponsabilizado de prover os bens e serviços necessários à população e com isso estimulam setores da sociedade para responder a tais questões.

Tal cenário revela o descompromisso do Estado no financiamento de políticas sociais universalizantes e na garantia de recursos para redistribuir a riqueza socialmente produzida, a exemplo 10% dos mais ricos que se apropriam de 75% da riqueza nacional. Contra qualquer tendência redistributiva, a política tributária continua a alimentar o capital com a amortização e pagamento de juros da dívida pública15, numa tendência perversa de transferência de recursos públicos para o mercado financeiro, como pagamento da dívida externa.

Em 1999, através de pacto firmado com o FMI, o Brasil comprometeu-se a elevar o superávit primário; assim, para cumprir essa meta, o governo federal lançou um “pacote fiscal” que tinha como objetivo ampliar a arrecadação e assegurar o superávit de R$ 31 bilhões (3,1 % PIB). Essas medidas demonstram o compromisso do Brasil com o capital financeiro internacional.

A política de compromisso do Estado com a esfera financeira é notória em detrimento da alocação dos gastos públicos para políticas que efetivem direitos consagrados na Constituição Federal. Essa política é efetivada através da DRU (desvinculação das receitas da união)16, que permite a utilização de recursos sem controle para o superávit primário17 e o pagamento de juros, em vez de investir na área

15

Alguns dados mais recentes (2009) acerca do pagamento da dívida externa estão disponível no site

www.inesc.org.br

16

A DRU criada em 1994/1995 e prorrogada no governo Lula, garante desvinculação de 20% da arrecadação de impostos e contribuições.

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O resultado primário é a diferença, podendo ser positiva ou negativa, entre as receitas não financeiras arrecadadas no exercício fiscal e as despesas não-financeiras, arrecadadas no mesmo período. As receitas não-financeiras incluem, principalmente, os tributos, as contribuições sociais e econômicas, as receitas diretamente arrecadadas por órgãos e entidades da administração direta, as receitas patrimoniais etc. As despesas não-financeiras referem-se ao conjunto de gastos pessoal, previdência, politicas sociais, manutenção da máquina administrativa e investimentos. Se a diferença for positiva, ocorre um superávit primário; se negativa, haverá um déficit primário. Portanto, no lado das receitas estão excluídas as receitas de juros; no lado das despesas, não são computados os encargos da dívida pública. (Boschetti e Salvador, 2006, p. 26).

social. “Em 2007, o governo gastou R$ 160,3 bilhões em juros, valor correspondente a 6,3% do PIB (produto interno bruto), que representa quatro vezes o investimento nas áreas sociais” (INESC, 2008). Esses dados evidenciam que recursos existem, porém são desviados para fins econômicos como observam Boschetti e Salvador (2006, p. 34),

[...] o orçamento da seguridade social, conforme definido na CF/1988, é superavitário e suficiente não só para cobrir as despesas com os direitos previstos, como para permitir sua ampliação. Se isto não ocorre, é porque o orçamento da seguridade social é parte da âncora de sustentação da politica econômica, que suga recursos sociais para pagamento e amortização da dívida pública.

Com a crise contemporânea capitalista, o Estado, também, cumpre seu papel com o capital, pois, utiliza os recursos do fundo público para salvar os bancos falidos afetados pela crise econômica, quer dizer, uso do dinheiro público canalizado para as

instituições financeiras não se traduz em retorno algum ao campo da proteção social. Como revela dados da OIT (Organização Internacional do Trabalho), 93% dos desempregados brasileiros não são beneficiados com as medidas anticrise, apesar de serem os mais afetados pela crise, com a redução dos postos de trabalho, desemprego massivo e aumento dos subempregos. Isso mostra com quem, realmente, dentro das contradições dessa sociedade, o Estado brasileiro está preocupado, ou seja, com as classes dominantes.

Essa realidade, como também outras, configuram limites ao exercício pleno do controle democrático e democratização da sociedade brasileira, já que o governo não prioriza o uso dos tributos e dos impostos na garantia de ações de caráter universais, mas sim à manutenção de privilégios da classe dominante (como o pagamento de juros da dívida do governo), para investimentos (diminuindo o custo para a reprodução do capital) e em muitos casos, para políticas sociais compensatórias, focalizadas, restritivas.

É um grande desafio fazer com que o Estado, quando da elaboração da proposta orçamentária, priorize políticas sociais que efetivem direitos já assegurados em nossa legislação para a população. A sociedade dispõe de espaços políticos como os

conselhos, os Fóruns, as câmaras setoriais, orçamentos participativos, ministério público, a imprensa e os movimentos sociais que possibilitam a interferência no destino que é dado aos recursos públicos, bem como fortalecem o exercício do controle social democrático e o papel do Estado sobre os gastos públicos.

É preciso, no entanto, atentar que, na contemporaneidade, o capital se apropria dos ganhos e dos avanços democráticos e coloca-os sob sua direção social,- conforme reflete Coutinho (2008) imbuído das ideias de Gramsci -, através de uma perspectiva transformista, ou seja, reivindicações históricas das classes subalternas são apropriadas pelo capital e submetidas à sua direção política. Ademais “elemento decisivo e sempre reatualizado é a difusão do mito de que somos um povo pacífico e ordeiro e que vive numa terra abençoada por deus e pela natureza” (BEHRING; BOSCHETTI, 2008, p.181).

Somando-se a isso a dificuldade de acesso da população às informações do orçamento público que é, ainda, um desafio a ser vencido no âmbito dos conselhos, como também em outros espaços, na medida em que para o exercício pleno do controle democrático é necessário o conhecimento do planejamento, execução e resultados das políticas sociais. Existem portais de informações, contudo não muito precisos e transparentes para serem compreendidos a quem interessar.

As emendas parlamentares são também um desafio para o exercício do controle democrático, pois durante sua tramitação no parlamento, vereadores, deputados e senadores podem alterar partes do orçamento por meio de emendas parlamentares com o objetivo de beneficiar suas bases eleitorais, caracterizando, assim, a correlação de forças existente em torno do orçamento público brasileiro.

Um exemplo recente foi a articulação dos parlamentares do senado que votaram a favor da derrubada da CPMF (contribuição provisória sobre movimentação financeira), pois esse imposto taxava principalmente os mais ricos, favorecendo, assim, mais uma vez a classe dominante.

Com essa derrubada da CPMF, o governo viabilizou formas de manter a arrecadação, aumentou o IOF (imposto sobre operações financeiras) e a CSLL (contribuição social sobre o lucro liquido), taxando sobretudo os bancos, o sistema financeiro e as empresas estrangeiras. Só que mais uma vez a classe hegemônica se

uniu e, tendo a frente à Fiesp (Federação das indústrias do estado de São Paulo) e a Febraban (Federação Brasileira de Bancos), aliados aos democratas e ao PSDB, trataram de manipular com o apoio da mídia a população, fazendo-a acreditar que essas contribuições iriam afetá-los diretamente. Escondem os seus reais objetivos, que é a proteção aos interesses dominantes.

Esse cenário revela uma tendência histórico-concreta da política do Brasil, os jogos em favor dos interesses particularistas e a aliança com o grande capital, reforçando a cultura política do país, que contribui para a permanência da classe hegemônica nos espaços de poder do Estado e numa radical perda de direitos como afirma Paz (2006, p.119):

A cultura política brasileira, em sua trajetória histórica, é marcada pelo forte enraizamento do patrimonialismo, do autoritarismo e da desigualdade e exclusão social, presente no cotidiano das pessoas, das cidades e também nas esferas governamentais. Em linhas gerais, podemos dizer que o patrimonialismo refere-se ao uso privado da coisa publica, que se expressa na apropriação privada dos bens públicos, na corrupção e no clientelismo. O autoritarismo politico manifesta-se na ausência de democracia, transparência, participação e controle social, que, apesar das conquistas da sociedade civil no final dos anos 1980, ainda estão presentes nas praticas politicas institucionais.

Diante desta análise, é preciso que os recursos orçamentários, tanto na sua forma de arrecadação quanto de redistribuição, observem as desigualdades existentes na sociedade e sejam aplicados para a garantia e defesa dos direitos e da promoção da cidadania.

Além desse aspecto, é necessário desmistificar formas históricas de dominação e exploração, ter “uma grande capacidade de imaginação e invenção” para suplantar essa sociabilidade, “não podemos nos entregar à lógica do capital, temos que prosseguir produzindo uma luta anticapitalista, e ela só pode ser feita pelas massas. Portanto, nós precisamos organizar uma nova vértebra dos movimentos sociais [...]” (MENEGAT, 2006, p. 37)

3. CONTROLE DA POLÍTICA PÚBLICA NO BRASIL: DIFÍCIL EFETIVAÇÃO SOB A