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Os discursos neoliberais, em Portugal, relativos à oferta pública de educação

A Escola em Portugal: na encruzilhada do debate sobre a regulação das políticas

2. Os discursos neoliberais, em Portugal, relativos à oferta pública de educação

Esta temática em Portugal tem sido objecto de estudos vários no último decénio, notando-se, todavia, duas posições contrárias no que concerne à aplicação da ideologia educativa que sopra do estrangeiro.

Assim, existe aquela que se baseia na informação internacional e nas movimentações neoliberais dos países principais e mais influentes da Europa nos anos 80, e logo procuram importar tais ideias e programas e aplicá-los à realidade portuguesa, sobretudo a partir da década de oitenta. Desta forma, esta corrente revela-se incapaz de atender às especificidades nacionais e preocupam-se principalmente com a modernização e racionalização do sistema educativo numa linha de submissão aos ditames do mercado e da liberalização em curso.

Uma outra posição, contrária, não reconhecia quaisquer influências das políticas neoliberais em Portugal, não identificando os múltiplos sinais que revelavam a sua presença, mais ou menos difusa e perceptível, seja no desenvolvimento do ensino superior privado, na instrumentalização da educação como factor de suporte de empregabilidade, seja nas novas teorias da avaliação do ensino e do crescente gerencialismo na administração do sistema educativo e das escolas. O novo vocabulário usado - modernização/racionalização - o recurso à inspiração neotayloriana e aos paradigmas positivistas e contabilísticas da avaliação, entre outros instrumentos e soluções de índole neoliberal, ficavam por reconhecer e interpretar, fingindo que não se sabia ou simplesmente resistindo aos novos tempos.

Dez anos mais tarde, com medo que os sectores sociais mais conservadores se tornassem muito activos, e agora sem complexos ou inibições, mas com muito atraso em relação ao que se passou no

centro da Europa, o poder político de então começa a usar a semântica apropriada à sua ideologia naquilo que diz ser a:

"(...) defesa pública das políticas de livre escolha educacional e de mercado na educação, da privatização da escola pública, do sistema de vouchers ou cheques- educação, dos rankings das escolas, da gestão escolar por resultados e performance, do recurso à nomeação de gestores, da promoção de professores ou dos seus salários em função dos resultados obtidos pelos seus alunos em exames nacionais estandardizados e, finalmente, no ataque ideológico sem precedentes aos educadores/professores, ao pensamento pedagógico, às teorias e à investigação em educação" (Lima e ai, 2002,

pág.13).

Segundo Licínio Lima e Almerindo Afonso, estes sectores que se manifestam activos na década de 80 em Portugal, propõem, para a educação, as políticas públicas e de livre escolha, que nos países de referência já tinham sido mudadas ou abandonadas.

Em Portugal, a questão da privatização assume contornos específicos e até contraditórios dadas as características da sociedade.

O Estado tem, em Portugal, uma enorme relevância na sociedade, mercê de singularidades como:

a) - O peso institucional da Igreja;

b) - Ausência de fracturas sociais e culturais pronunciadas no seio da mesma sociedade, permitindo ao elemento político tornar-se relevante pelas clivagens que acaba por introduzir em benefício próprio;

c) - Debilidades financeiras do país que tendem a forçarem os apelos à intervenção reguladora do Estado, sobretudo em tempos de crise económica.

É neste contexto que o Estado encontra condições propícias para se impor em nome da governabilidade, da conciliação de interesses e das decisões privadas com as necessidades colectivas, tomando-se, consequentemente, hegemónico (J. Aguiar, 1994, pág.205).

Com efeito, em Portugal, as políticas de liberalização e de privatização não se impuseram com a mesma intensidade que nos outros países economicamente mais desenvolvidos, não capitalizando, portanto, alguns avanços que o contexto permitia.

O ensino privado, em Portugal, parece que não chegou a compreender as possibilidades que se abriram com a nova conjuntura económica. Porquê? Talvez porque as entidades privadas nunca assumiram o verdadeiro risco de investimento no sector, preferindo assumir um papel de parceria subordinada ao Estado (Cotovio, 2004).

Também a escolha da escola pelos pais, em Portugal, é uma reivindicação social tímida e recente, divulgada por alguma comunicação social e apoiada em algumas correntes de opinião, sejam de natureza ideológica sejam de natureza religiosa, mais em função de interesses vocacionados para a criação de mercados educativos e menos pela defesa da qualidade da escola pública.

Trata-se de uma reivindicação que coloca como enfoque principal os pais na qualidade de consumidores. Segundo esta perspectiva, os pais são quem sabem melhor o que convém aos seus filhos, quer no que respeita à qualidade da escola, quer no que respeita às companhias dos próprios filhos. Assim, na Inglaterra, por exemplo, os pais foram sujeitos a enormes campanhas de marketing que visavam sensibilizar os consumidores para as "virtudes" dos seus "produtos".

Uma das ideias principais deste movimento, parte do princípio que o mercado possibilita a competição e que esta melhora a qualidade educacional, logo os mais fortes vencem e os mais fracos ou sucumbem ou se adaptam. Isto é, as boas escolas reforçar-se-ão enquanto que as más tenderão a desaparecer, se não fizerem um esforço de melhoria.

Ora, aqui existem dois pressupostos questionáveis. Por um lado, se os pais são consumidores, isso não significa que estejam em condições de fazer a melhor escolha para os seus filhos, uma vez que os pais não são todos iguais e, portanto, não têm a mesma capacidade de opção perante propostas diversas. Logo, parece provado, que perante esta dificuldade, os alunos da classe média vão para as melhores escolas, e os alunos desfavorecidos vão para as escolas com menos recursos. Como afirma Stephen Ball (1993), o mercado funciona como uma "estratégia de classe". Por outro lado e como segundo pressuposto, existe a ideia que o mercado é natural e funciona livremente, assegurando uma concorrência perfeita. Geoff Whitty (1996) demonstra como o mercado é uma construção social e política, e como a implantação de um modelo "puro" de mercado na educação origina um aumento das desigualdades sociais e escolares.

Segundo Whitty (1996), os efeitos perversos do mercado educacional são diversos. Por exemplo:

o Tende a igualizar as escolas, justamente porque há a tendência para a imitação, ou seja, em vez da diversificação da oferta, o que se obterá é mais do mesmo;

o Nivelaram-se as escolas por baixo, dado que não há verdadeiramente melhor qualidade educativa;

o As escolas que obtêm melhores resultados devem-no, não às suas qualidades intrínsecas, mas à qualidade dos seus alunos que são portadores de um currículo

oculto elevado, propiciador de sucesso. Como num regime de mercado, estas escolas tenderão a ser muito procuradas, elas deixam de ter capacidade de resposta e deixam de aceitar todas candidaturas. Desta forma passarão a seleccionar os candidatos de acordo com os seus próprios interesses, isto é, as famílias deixarão de ser escolhedoras para passarem a ser escolhidas.

Estas são algumas das consequências de uma mercadorização da educação e da escolha de escola. Não tendo de ser, necessariamente, negativa, a verdade é que ela revela ser produtora de desigualdades sociais, correspondendo a uma crescente desresponsabilização do Estado e a uma aposta na dimensão individual da actividade parental conservadora e atomista. Assim, quando as coisas não correrem bem as responsabilidades deixam de ser do Estado e do mercado para serem só do consumidor, que não soube escolher ou foi mal orientado. As boas ou más escolhas e opções dos pais para os filhos são da sua inteira competência, culpabilizando-se, então, a vítima.

A actuação dos últimos governos portugueses tem demonstrado uma tendência clara para a aplicação das fórmulas neoliberais e neoconservadoras, já experimentadas em outros países, numa divergência acentuada da construção da escola democrática dos anos 80.

Assumem claramente querer instalar a garantia da liberdade de aprender e ensinar (como se tal não estivesse conseguido), num contexto que assegure a proeminência das liberdades fundamentais de educação perante os direitos dos cidadãos.

Esta fórmula de garantir a liberdade de aprender e ensinar, constitucionalmente consagrada, revela a secundarização do direito fundamental à educação que o Estado deve garantir a todos os

portugueses, face à prioritária liberdade de ensinar, e significa que a preocupação com o todo-poderoso mercado é o traço dominante do desígnio destes últimos governos.

De facto, os discursos oficiais vão fazendo a apologia das virtudes do ensino particular. Foi no governo do Prof. Cavaco Silva, em que o ministro da Educação era Roberto Carneiro, que se assistiu à aceleração da «desestatização do ensino».

Pretende-se desenclausurar o ensino privado e colocá-lo em pé de igualdade com o ensino público, apostando na cooperação da iniciativa e responsabilidade pública, particular e cooperativa na definição daquilo a que chamam de "rede de ofertas educativas", e que mais não significa que a substituição da responsabilidade do Estado, perante uma rede pública de educação, pela preocupação de apoiar financeiramente o ensino privado na mesma medida em que apoia o ensino público. Esta é uma consequência directa do conceito de liberdade de aprender e ensinar que foi construída nos últimos anos, dirigida a que as famílias escolham livremente a escola onde colocar os seus filhos, independentemente de se tratar de uma escola privada ou pública, pois tudo agora se passaria a chamar de "rede de ofertas educativas", numa clara incorporação do conceito de mercado no nosso sistema educativo.

Os arautos desta abordagem defendem que, para que o mercado funcione regularmente é necessário que haja competição ao nível das respostas a dar, para que as famílias, no âmbito da liberdade de escolha, possam optar pela escola que lhes pareça oferecer os melhores serviços educativos. Neste sentido, quer as escolas públicas quer as escolas particulares e cooperativas deveriam estar em pé de igualdade, do ponto de vista da oferta educativa, no respeito pelas orientações curriculares nacionais, e padrões crescentes de autonomia de funcionamento.

É com base nisso que Almerindo J. Afonso (2002) aponta algumas contradições nas políticas neoliberais e neoconservadoras

levadas a cabo em países como Estados Unidos da América e na Inglaterra, e que, com muito atraso se pretende transplantar para Portugal. Uma dessas contradições consiste na tentativa de conciliar hierarquia e subordinação com a liberdade de escolha. O autor salienta que é esta combinação específica de regulação do Estado e de elementos de mercado no domínio público, que explica o facto de governos da nova direita tenham aumentado o controlo sobre as escolas - através da introdução dos currículos e dos exames nacionais - e, ao mesmo tempo, tenham promovido a criação de mecanismos como a publicitação dos resultados escolares - rankings - , abrindo espaço para a realização de pressões competitivas no sistema educativo.

Quando o governo do PSD liderado pelo Dr. Santana Lopes (2004), no seu projecto de nova Lei de Bases da Educação37, anuncia

que a contrapartida da autonomia das escolas reside numa maior responsabilização pela prossecução de objectivos pedagógicos e administrativos, está a deixar claro que a prevalência de critérios pedagógicos na gestão das escolas, sobre quaisquer outros, é para ser ultrapassada por uma nova lógica a que as escolas se têm de subordinar, que tem a ver com critérios de eficiências e de eficácia, dada a sujeição à avaliação pública dos seus resultados.

Não admira, portanto, que as referências a projectos educativos próprios das escolas sejam explicitadas numa nova lei, pela premissa de que a responsabilidade de formulação desses projectos caiba à direcção executiva, tendencialmente unipessoal e não eleita, escolhida em processo público, no qual a apresentação de tal projecto educativo é já elemento essencial de selecção.

É evidente que este procedimento tem objectivos claros de entregar as escolas a gestores profissionais que tenham por preocupação fundamental a apresentação de resultados, medidos pelos produtos finais em cada fim de ano lectivo, e resultantes da

avaliação dos alunos, a partir de um número crescente de exames nacionais que se pretende serem realizados em todos os anos finais de ciclo.

Trata-se da transposição para o sistema educativo português de fórmulas usadas em outros sistemas, só que sem serem avaliados os resultados obtidos, ou seja, sem equacionar os fracassos obtidos por estas soluções nesses países. Aliás, é nesta sequência que Licínio Lima (2002) apelida de educação contábil aos processos de privatização e de desregulação, bem como ao mercado educacional e às políticas de livre escolha, à avaliação institucional, controlo da qualidade e a aferição da eficácia e da eficiência nas organizações educativas. Este paradigma gerencialista tem uma obsessão pela eficácia e eficiência das organizações, verificáveis através dos resultados avaliativos, que é orientada por objectivos precisos e contáveis, numa lógica de gestão e controlo da qualidade. Por isso se recorre a pedagogias e avaliações objectivas e mensuráveis que são transformados em meios de controlo político, administrativo, científico e pedagógico. Esta pedagogia contábil centra-se mais no cálculo e mensuração dos resultados que nos processos educativos, apoiando-se na estandardização de comportamentos e atitudes, na burocracia, na rotina, na simplificação dos processos educativos passíveis de serem transformados em mercadoria.

Certamente que Portugal não está imune à penetração das ideias neoliberais e neoconservadoras, traduzidas em medidas que significam um crescimento em espiral da oferta privada em educação. Só que, com a chegada daquele governo ao poder, permitiu-se que, na opinião de Licínio Lima (2002), se passasse a actuar já sem inibições ou conveniências discursivas, sem qualquer originalidade e com muitíssimo atraso face aposições idênticas expressas por elites e forças políticas congéneres, na defesa pública das políticas de livre escolha educacional e de mercado na educação, da privatização da escola pública, do sistema de vouchers ou cheques-educação, dos

rankings de escolas, da gestão escolar por resultados e performance,

do recurso à nomeação de gestores, da promoção de professores ou dos seus salários em função dos resultados obtidos pelos seus alunos em exames nacionais estandardizados e, finalmente, no ataque ideológico sem precedentes aos educadores/professores, ao pensamento pedagógico, às teorias e à investigação em educação.

É com base na introdução destes mecanismos de mercado em Portugal, que muitos estudiosos entendem ser esta a solução para os problemas da educação pública. Trata-se do caso de Ramiro Marques (Diário de Notícias, 1992, pág.14) que afirma:

"A introdução de uma cultura empresarial e da competição no sistema público de educação origina, por si só, um maior empenhamento profissional da direcção das escolas e dos professores que nelas leccionam e permite que as escolas se ajustem, mais rapidamente, às

necessidades das famílias. Quando as famílias portuguesas forem livres para escolher a futura escola dos filhos, seja qual for a área de residência, verificaremos um movimento espontâneo de deslocação dos alunos para as melhores escolas da cidade e, em consequência, o reajustamento das escolas preteridas pelos alunos, caso queiram manter-se no sistema, ou seja, caso queiram continuar a ter alunos. "

Na mesma linha de pensamento, António Barreto, citado por Almerindo J. Afonso (2002, pág.58), é de opinião que:

"Não parece razoável que não se confie nos efeitos multiplicadores que poderão ter as melhores escolas sobre as outras, beneficiando todas das consequências de uma permanente emulação".

Mas, e como afirma Vital Moreira (Jornal Público, 2004), o financiamento público das escolas privadas, bem como a liberdade de escolha da escola, sempre em nome da liberdade de ensino, tem gerado uma confusão propositada. Em Portugal, é livre a criação de escolas privadas, cuja frequência é igualmente livre, sendo o seu ensino publicamente reconhecido. Mas, o Estado não tem o dever de financiar as escolas privadas, seja por razões de natureza confessional ou de prestígio social ou outras, nem deve fazê-lo à custa do financiamento das escolas públicas que são uma responsabilidade sua. Da mesma forma que o Estado não tem de pagar, por exemplo, a quem tem direito a serviços públicos de saúde gratuitos, prefira uma clínica privada; ou, ainda, a quem, tendo transportes públicos subsidiados pelo Estado, prefira viajar em transportes particulares. O financiamento público das escolas privadas, para além de desviar recursos públicos do que deve ser público, traduzir-se-ia em subsidiar um privilégio dos mais ricos.

O Estado deve garantir, a todos, o acesso à escola pública, plural, não confessional, em igualdade de circunstâncias.

Em jeito de remate, diríamos como Vital Moreira num artigo de opinião publicado no jornal diário Público, (2004): "Em Portugal,

o ensino público é um direito, o ensino privado uma liberdade".38

Como se constata, o debate sobre o contributo dos pais e encarregados de educação como elementos incontornáveis da reflexão sobre o modo de regulação das políticas públicas de educação é um debate complexo e, de algum modo, indeterminado, no sentido em que,

"a realidade é mais complexa (...) e existem outras

alternativas na educação pública, entre o «centralismo estatal» e «a livre concorrência do mercado», entre a

«fatal burocracia do sector público» e o «mito da gestão empresarial», entre o «súbdito» e o «cliente» " (Barroso,

1998, pág.35).

Trata-se de um debate que, como se constata, nos obriga a equacionar o(s) sentido(s) da dicotomia Estado/Sociedade Civil, para discutir, em primeiro lugar, as possibilidades da escola pública como um espaço que presta um serviço público, e, em segundo lugar, o papel que cabe ao movimento associativo de pais, neste âmbito.

3. A construção da escola como um espaço