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Os entraves atuais à garantia do território quilombola

CAPITULO I COMUNIDADES NEGRAS RURAIS E COMUNIDADES

4. Os entraves atuais à garantia do território quilombola

No Brasil, estamos vivenciando, hoje, um período de consolidação do movimento quilombola, no qual a luta pela titulação dos territórios ocupados tradicionalmente comparece em primeira ordem na pauta de lutas. Isso por que os quilombolas vêm enfrentando mecanismos expropriatórios dos locais onde escolheram para viver (LEITE, 2010). Assim, resultante das lutas dos movimentos negros e quilombolas pela garantia das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas foi criado pelo Estado um arcabouço jurídico para regulamentar o Art.68 e, por conseguinte, o procedimento de regularização fundiária.

A partir dos anos 2000, registram-se significativas mudanças nas legislações que regem a delimitação e titulação dos territórios quilombolas como evidencia o Quadro 02 (p.49). Ao passo que o principal Decreto (Nº 4.887 de 2003), que regulamenta o Art.68 vem sofrendo oposição de partidos políticos da direita, que representam os interesses de grandes latifundiários, e a criminalização e descredibilização veiculada na grande imprensa nacional16. Ainda segundo Leite (2010) a criminalização das lutas camponesas foi e é uma constante no Brasil e resultaram e ainda resultam em repressões violentas, assim não constitui nenhuma novidade que na luta pela titulação das terras quilombolas venham a ser utilizados os mesmos métodos.

16 A partir do ano de 2007 são veiculadas diversas reportagens em jornais e telejornais de grande visibilidade nacional como o Globo, o Estado de São Paulo e o Jornal Nacional divulgando que “falsos” quilombos estavam reivindicando terra (www.koinonia.org.br/oq).

49

Fonte: Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/PB

Org. Monteiro (2013)

Em consonância com o Quadro 02 no ano de 2001, Fernando Henrique Cardoso cria o Decreto Nº. 3.912 que regulamenta o Art.68, permanecendo a FCP como único órgão competente pela questão quilombola e destituindo o INCRA de qualquer responsabilidade. O referido decreto somente poderia reconhecer as terras ocupadas pelas comunidades quilombolas se tivessem sido ocupadas por quilombos até 1888 e ainda estivessem sendo ocupadas por estes até outubro de 1988, ano da promulgação da Constituição Federal. Estabelecia-se, portanto, a exigência de um século de ocupação da terra para que fossem regularizadas, bem como um prazo máximo para que os pedidos de reconhecimento e titulação fossem encaminhados pelas comunidades quilombolas. As terras ocupadas pelos remanescentes de quilombos também não eram consideradas passíveis de desapropriação. Entendia-se por outro lado que o Art.68 se referia aos remanescentes de quilombos como sujeitos individuais e não coletivos. Como resultado desse Decreto houve a paralisação de processos de regularização fundiária, que já estavam em andamento sendo conduzidos ou pelo INCRA ou por órgãos de terras estaduais.

QUADRO 02: LEGISLAÇOES SOBRE A TITULAÇÃO DOS TERRITÓRIOS REMANESCENTES DE QUILOMBOS NO BRASIL (2012)

ANO LEGISLAÇÃO

1988 Constituição Federal de 1988: Artigos 215 e 216; Artigo 68 da ADCT 2001 Decreto 3.912/2001 /Revogado

2003 Decreto 4.887/2003

2004 Instrução Normativa nº16 INCRA/Revogada 2005 Instrução Normativa nº 20 INCRA/Revogada 2008 Instrução Normativa nº 49 INCRA/Revogada 2009 Instrução Normativa nº 56 INCRA/Revogada 2009 Instrução Normativa nº 57 INCRA/Vigente

50 Em 2003 em consonância com a Convenção 169 da OIT17 e com a noção de grupo étnico-racial, foi promulgado pelo Governo Lula o Decreto 4.887 que retirou a responsabilidade pela competência da demarcação e titulação das terras quilombolas da FCP e a restituiu ao INCRA, sinalizando para uma ação mais efetiva na titulação das terras quilombolas, algo que não ocorreu na mesma medida das expectativas do movimento quilombola. O Decreto estabeleceu como prerrogativa o critério de autorreconhecimento e/ou auto-atribuição para iniciar o processo de demarcação e titulação das terras pleiteadas pelas comunidades quilombolas. Instituiu a possibilidade da desapropriação e estabeleceu que o título de propriedade das terras quilombolas deveria ser emitido em nome das associações devidamente constituídas das comunidades, estabelecendo ainda o caráter inalienável da terra titulada. Reconheceu que as terras ocupadas pelas comunidades quilombolas são aquelas utilizadas para manutenção das suas condições materiais e imateriais de existência. Estabeleceu a compreensão de território e não mais de terra, por que abrange e coaduna outras dimensões sociais.

A FCP ficou responsabilizada, mediante Portaria Nº. 06 de 01 de março de 2004, pelo reconhecimento das comunidades quilombolas e pela inclusão dessas em um cadastro geral. As iniciativas do INCRA em torno da regularização das terras quilombolas começaram a ter um avanço mais efetivo com a criação pelo órgão em 2004 da Instrução Normativa Nº 16, onde constam os procedimentos para a demarcação e titulação das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas. As instruções normativas promulgadas pelo INCRA foram se sucedendo, sendo modificadas e revogadas nos anos posteriores.

Em 2004 é impetrada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade

(

ADIN nº 3239) do Decerto Nº. 4887 pelo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democrata (Dem). Na ação, o PFL requer a impugnação do decreto, contestando os critérios utilizados para a identificação e delimitação das terras pleiteadas pelas comunidades quilombolas18. O

17 Em 2002 foi ratificado pelo governo brasileiro a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reconheceu a identidade indígena ou tribal como preceito fundante para o reconhecimento dos direitos dos sujeitos implicados. Recomenda-se, por conseguinte que os países que ratificarem a Convenção reconheçam o direito de propriedade e/ou posse das terras ocupadas tradicionalmente aos povos interessados. Deverá também ser garantido a esses povos o retorno as suas terras, quando os fatores e/ou razões que os levaram a se retirar cessarem.

18 “A presente ação argui a inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, por constituir, regulamento autônomo incompatível com a Constituição e por que, dentre outros, estabelece a desapropriação do que já pertencia aos remanescentes de quilombolas, definindo o espaço de ocupação como aquele por eles pretendido e não o efetivamente ocupado” (ADN nº 3.239).

51 processo está sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal19. Coincidentemente após essa ação, o Estado iniciou uma série de mudanças nas legislações que tratam da titulação dos territórios quilombolas dificultando o processo.

Assim a Instrução Normativa Nº 16 é revogada em 2005 pela Instrução Normativa Nº 20, direcionando para uma complexificação dos procedimentos. Em 2007 foram aprovadas novas regras para o Cadastro Geral das Comunidades Quilombolas da FCP, que substituiu a Portaria Nº. 06 pela Portaria Nº. 98 de 26 de novembro de 2007. Pela nova regra, a Fundação Cultural Palmares abre a possibilidade de rever as certidões já emitidas pelo órgão, bem como torna o processo mais burocrático. Antes bastava às comunidades apresentarem uma declaração de autoafirmação e pedir a sua inclusão no cadastro geral da FCP, porém com a realização das modificações a comunidade que estiver pleiteando o seu reconhecimento terá que apresentar uma série de documentos20. A certificação emitida pela FCP passa a ser obrigatória para que o processo de regularização fundiária das comunidades quilombolas seja iniciado. Na legislação anterior essa certificação não era imprescindível, tal documento era utilizado como um mecanismo pelas comunidades quilombolas para garantir o acesso às políticas públicas e na defesa de seus direitos (SÃO PAULO, 2008).

A Instrução Normativa Nº. 20 do INCRA que estava vigorando, foi revogada pela Instrução Nº. 49 em setembro de 2008, tornando o processo de titulação das terras quilombolas ainda mais complexo. O INCRA reconstruiu a instrução normativa que regulamentava até então o processo de delimitação e titulação fundiária dos territórios quilombolas complexificando o processo. A Instrução Normativa Nº. 49 transformou o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) em um estudo difícil de ser realizado, uma vez que são exigidas inúmeras etapas. Em 2009, novas discussões são levantadas em torno da legislação que rege a regulamentação dos territórios quilombolas, resultando na reconstrução da IN Nº 49, na qual foram retirados alguns entraves e publicada nova instrução normativa a IN Nº56, em outubro de 2009.

Todavia logo após a sua publicação foi anulada e promulgada nova Instrução

19 O processo está sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal, todavia a Advocacia Geral da União e a Procuradoria Geral da República já deu o parecer contrário à ação. Em 2007 volta novamente à cena às ações contrárias ao Decreto 4.887, um deputado do PMDB apresentou um Projeto de Decreto Legislativo 44/2007 com a justificativa também de que o Decreto seria inconstitucional.

20 As comunidades deverão apresentar ata de reunião aprovada pela maioria dos moradores; caso possua a comunidade deverá enviar à FCP documentos ou informações, tais como fotos, reportagens, estudos realizados, entre outros, que atestem a história comum do grupo ou suas manifestações culturais; realizar relato sintético da trajetória comum do grupo (história da comunidade); será passível também de visita técnica da Fundação à comunidade no intuito de obter informações e esclarecer dúvidas.

52 Normativa, agora IN Nº 57 que manteve o retrocesso apresentado pelas legislações anteriores, permanecendo a exigência de uma série de levantamentos para que seja concluído o RTID. Segundo parecer publicado em 2009 pela Comissão Pró-Indío de São Paulo (Cpisp) 21 a IN Nº 57 desrespeita o direito à autoidentificação; estabelece entraves para a identificação do território reivindicado; apresenta restrições para convênios e contratações; estabelece novos procedimentos de consulta a órgãos públicos; atribui às contestações efeito suspensivo. De acordo com a Portaria nº 98 da FCP e com a nova instrução normativa, para qualquer comunidade quilombola que tenha se autorreconhecido enquanto tal necessita obrigatoriamente para seja aberto o processo junto ao INCRA de uma certidão de reconhecimento emitida pela FCP. Ver Organograma 01 (p.53) que mostra de forma sintética as etapas do processo de titulação.

21 A Comissão Pró-Indio de São Paulo é uma instituição que tem atuado junto aos índios e quilombolas desde 1978 com o objetivo de garantir os seus direitos territoriais, culturais e políticos.

53

Fonte: Instrução Normativa Nº57/2009 Org. Monteiro (2013)

Aberto o processo, o órgão inicia a realização do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), composto por várias etapas: a) a primeira etapa compõe a caracterização econômica, ambiental e sociocultural da comunidade; b) a segunda consta o Relatório de Informações Agronômicas Ambientais do território delimitado; c) a terceira etapa traz uma análise fundiária da área, composta pela cópia

ORGANOGRAMA 01:

ETAPAS DA TITULAÇÃO DOS TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS NO BRASIL COM BASE NA IN Nº 57/2009

Certidão emitida pela FCP Abertura do processo junto ao INCRA

Elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID)

Publicação do RTID

Contestações do RTID elaborado Consultas a órgãos e entidades

Análise da situação fundiária das áreas reivindicadas

Desintrusão dos ocupantes não quilombolas do território reivindicado

Demarcação do território Titulação

54 da certidão da propriedade com título de domínio incidente no território quilombola delimitado e o levantamento de seus ocupantes não quilombolas; d) à penúltima etapa consta o mapa e o memorial descritivo do território da comunidade; e) à última parte é composta pela apresentação de uma lista com as famílias que compõem a comunidade. Concluídas todas as etapas anteriores o RTID é submetido a um parecer conclusivo por um Grupo Técnico Interdisciplinar do INCRA. De forma sintética, quando o RTID é concluído e aprovado pelo INCRA é submetido a consultas a vários órgãos públicos, que irão contestar ou não o Relatório Técnico. Caso não haja nenhuma contestação ao RTID tanto parte de órgãos públicos quanto por parte dos possíveis prejudicados o processo de titulação prossegue com a desintrusão do território reivindicado. O processo de titulação só é concluído quando o registro do imóvel ocupado é registrado em cartório.

5. Comunidades quilombolas no Brasil e na Paraíba em 2013