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Uso comum nas terras tradicionalmente ocupadas

CAPITULO I COMUNIDADES NEGRAS RURAIS E COMUNIDADES

2. Uso comum nas terras tradicionalmente ocupadas

32 Entretanto, segundo Almeida (2002), foi o conceito de quilombo estabelecido na primeira metade do século XVIII, pelo Conselho Ultramarino que permeou toda uma geração de estudos sobre quilombos no Brasil. Para este Conselho foi considerado quilombo as habitações de escravos fugidos em lugares “despovoados” com um número superior de cinco cativos que mantivessem “ranchos” ou “pilões”. Para o autor, nesse conceito estavam imbuídos cinco elementos: a) a fuga, pressuposto para a formação dos quilombos; b) um número definido de escravos; c) o isolamento geográfico em lugares de difícil acesso, distantes dos núcleos civilizadores; d) a moradia, que caracterizaria a fixação do grupo no lugar; e) e o pilão símbolo do autoconsumo como objeto identificador da capacidade da reprodução do grupo. Esses elementos como a fuga, o isolamento a autossuficiência nortearam a compreensão de pesquisadores, do Estado, e dos movimentos sociais negros até a década de 1990.

Com a Constituição Federal o quilombo foi reinterpretado, não como um fenômeno remetido a um passado histórico distante, senão sendo reinterpretado para entender uma realidade presente na estrutura agrária brasileira. O termo quilombo pensado tradicionalmente enquanto grupo de escravos fugidos passou a ser atribuído a grupos étnicos que se autoindetificaram enquanto remanescentes de quilombos. O artigo constitucional que garantiu o direito a terra aos remanescentes de quilombos segundo O’ Dwyer (2002) passou a ser entendido como um direito conferido a grupos sociais que existem no presente, não a um sujeito social que ficou no passado escravista. Dito de outra forma a partir do Art.68 o termo quilombo foi reinterpretado não como um fenômeno que ficou congelado no tempo, senão evocando as inúmeras comunidades negras rurais, que se formaram no campo brasileiro segundo o uso o comum da terra.

2. Uso comum nas terras tradicionalmente ocupadas

O uso comum foi um termo utilizado em pesquisas acadêmicas promovidas na década de 1980 para se referir às formas de ocupação da terra protagonizadas pelas comunidades negras rurais principalmente nos estados do Maranhão e Pará. Posteriormente, esse termo passou a ser empregado por Almeida (2002; 2008) para traduzir a relação estabelecida pelas comunidades tradicionais com a terra e os demais recursos naturais. No Brasil as comunidades tradicionais a exemplo dos povos que

33 ocupam os fundos de pasto, os seringueiros, os castanheiros, os faxinalenses, os quilombolas, ribeirinhos, as quebradeiras de coco babaçu e os povos indígenas, foram reconhecidas mediante artigos da Constituição Federal de 1988 (Art. 68 e Arts. 231 a 232), por decreto federal (Decreto Nº 6.040 de janeiro de 2007) e pelas diversas legislações estaduais.

Em sua pesquisa sobre as distintas formas de uso comum da terra no Brasil associadas tanto as povos e comunidades tradicionais, quanto deslocadas de elementos étnico-raciais, Campos (2011) enfatiza que:

Desde o princípio, a terra e todos os seus frutos foram usufruídos tanto individual quanto coletivamente, independentemente da preocupação com a existência da questão da propriedade (p.43).

Mesmo nos dias atuais, terras de uso comum, formas coletivas de produção, aproveitamento em comum de bens naturais, sistemas de entre ajuda, entre outras atividades, são elementos plenamente visíveis em inúmeros lugares, contextos ou situações mundo afora, inclusive no Brasil, apesar do domínio das relações sociais e de produção capitalista (p.26).

É partindo da compreensão de que as formas de uso comum fazem parte do presente, que Almeida (2008) afirma que na história agrária do Brasil essa relação com recursos naturais vêm sendo sistematicamente invisibilizadas e/ou relegadas ao esquecimento como algo pertencente ao passado. As formas de uso comum da terra e os camponeses que as utilizam são frequentemente analisados quando se reportam a formas residuais e sobrevivências de um modo de vida já extinto, estariam, portanto, condenados ao desaparecimento. Segundo essa análise as formas de uso comum dos recursos naturais representam uma relação anacrônica com a natureza, uma vez que as normas costumeiras relativas às terras tradicionalmente ocupadas não permitiram ou conduziram a uma partilha formal da terra e, por conseguinte o seu fracionamento, que possibilitaria a sua disposição no mercado, para ser transacionada livremente.

Nas formas de uso comum, os recursos naturais, entre eles a terra, não são apropriados individualmente por determinado grupo, em uma situação que compreenderia uma propriedade privada e/ou apropriação privada capitalista. Todavia há uma conexão e/ou associação entre uso comum e apropriação privada familiar segundo regras e costumes internos as comunidades, permeadas por relações sociais de solidariedade e de ajuda mútua. São regras estabelecidas em territórios próprios, cujos limites são socialmente reconhecidos pelos seus membros, e pelos vizinhos.

34 sejam as terras de preto, terras de santo e terras de herança7, afirma que estas

emergiram do processo de desenvolvimento contraditório do capitalismo e não representam, portanto sistemas residuais, sobrevivências ou vestígios feudais. São intrínsecos e estão presentes atualmente na estrutura agrária brasileira. Resultaram dos antagonismos e dos conflitos inerentes ao desenvolvimento do próprio capitalismo. Emergiram como forma de autodefesa e representam as alternativas construídas por diferentes segmentos camponeses para se reproduzir e para garantirem suas condições materiais de existência. Insurgiram e se consolidou em momentos de enfraquecimento e/ou decadência do poderio do latifúndio sobre as populações consideradas submissas como indígenas, escravos e agregados. As modalidades de uso comum se transformaram em estratégia tanto para estreitar vínculos e urdir certa coesão, quanto para possibilitar o livre acesso a terra. Esses camponeses e seus descendentes passaram a se autodefinir segundo denominações específicas associadas ao sistema de uso comum indissociável do território ocupado.

As formas de uso comum dos recursos naturais utilizadas pelas comunidades tradicionais remetem às normas de um direito camponês, onde as extensões de terra são utilizadas de acordo com as necessidades e a vontade de cada grupo familiar. Além das áreas de cultivo, como os pomares, as criações e os roçados que são apropriadas de forma individual pelas famílias, existem áreas de uso comum as quais não pertencem a nenhuma família e são essenciais à reprodução do grupo a despeito dos recursos hídricos, caminhos, trilhas, áreas de pesca, de extrativismo, etc. Essa relação com os recursos naturais está presente e faz parte das comunidades quilombolas na Paraíba. Se a terra nestas comunidades é apropriada historicamente de forma individual por cada família, o mesmo não ocorre com as fontes de água, as áreas de mata, de pesca, áreas de pasto que são utilizados por todos.

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As terras de preto representam: a) as propriedades e/ou domínios de terras que foram doados ou entregues as famílias de ex-escavos; b) compreendem também terras doadas pelo Estado às famílias de ex-escravos mediante a prestação de serviços guerreiros; c) situações nas quais famílias de grandes proprietários passaram a cobrar foro às famílias de ex-escravos e a seus descendentes mantendo-as segundo a condição de foreiras; d) também são denominadas de terras de preto áreas e/ou domínios ocupadas por quilombos antigos próximos a núcleos de mineração. As terras de santo estão associadas à decadência dos domínios da Igreja Católica, mas especificamente das ordens religiosas quando estas foram abandonadas ou entregues a escravos, indígenas e aos demais moradores, os quais passaram a adotar as denominações dos santos padroeiros para as fazendas e atribuem aos santos à propriedade da terra. As terras de índio correspondem a concessões de terra doadas pelo estado em troca de serviços prestados por grupos indígenas ou a seus remanescentes. Não representam, portanto, áreas indígenas reconhecidas oficialmente pela FUNAI. As terras de herança representam propriedades que permaneceram indivisas por várias gerações sem que fossem efetuadas formalmente a sua partilha.

35 Essa associação entre a posse familiar e o uso coletivo dos recursos naturais não se refere e não são explicadas segundo as oposições ou dualidades que se traduzem em compreensões nas quais a terra ou é privada ou é comunal, ou é individual ou é coletiva ou está fundamentada em preceitos legais ou é fundada nos costumes. Assim, as análises que pretendem entender essas formas de uso comum nas terras tradicionalmente ocupadas a partir de dualidades rígidas, podem obscurecer a realidade entendendo-as como um ideal de coletividade que não existe, como também pode obscurecer as relações de poder estabelecidas internamente que perpassam relações desiguais, como as de gênero, por exemplo, entre os seus membros. Da mesma forma não podemos considerar que nas comunidades tradicionais há totalidades homogêneas e de caráter totalmente igualitário, pelo contrário são perpassadas por diferenciações internas, por hierarquias sociais que, todavia não representam elementos significativos para dissolução do grupo.

É partindo da compreensão de que as comunidades tradicionais, nelas incluídas as comunidades remanescentes de quilombos, dispõem dos recursos naturais segundo o seu uso comum destituídas de um ideal de coletivismo que discutiremos a seguir como emergiu a luta pelo direito a terra e ao território protagonizados por essas comunidades no Brasil.

3. O surgimento das comunidades remanescentes de quilombos