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Os espaços de atuação de homens e mulheres quilombolas e a divisão sexual do

CAPITULO III O DESVENDAR DOS SUJEITOS DA PESQUISA: as mulheres

4. Os espaços de atuação de homens e mulheres quilombolas e a divisão sexual do

É evidente que nas comunidades quilombolas existe uma separação e/ou divisão do trabalho segundo os papeis atribuídos ao gênero, resultante de uma divisão sexual, na qual o trabalho da mulher é desvalorizado e invisibilizado enquanto tal. Entretanto, não podemos enquadrar a realidade encontrada na forma de organização do trabalho nas posses das famílias dentro das comunidades quilombolas com os padrões rígidos de divisão das atividades e/ou tarefas entre espaços como casa/roçado, privado/público ou entre espaços improdutivo/produtivo, sendo os primeiros (casa, privado, improdutivo) as esferas por excelência feminina e os últimos (roçado, público, produtivo) os espaços ocupados pelos homens.

Essas dualidades rígidas entre espaços feminino e masculino não é possível de identificar e enxergar claramente nas comunidades quilombolas na Paraíba. Isso por que há uma complexidade nas relações estabelecidas nos diferentes espaços, no qual a Casa44 compreendida como o local que circunda a construção, onde são criados os animais, onde estão às plantas medicinais, a horta, pode ser também o espaço do roçado onde é plantado o feijão, o milho, a fava, a macaxeira, culturas para o autoconsumo. Em

44 Utilizaremos Casa com C maiúsculo para nos referimos ao complexo da construção física do prédio com o terreiro e a casa com c minúsculo quando nos referirmos apenas ao espaço da construção física.

136 algumas comunidades quilombolas na Paraíba, as áreas de plantios se restringem ao terreiro da casa, devido à falta de terra como já assinalamos. Encontramos essas situações nas comunidades quilombolas de Caiana dos Crioulos, Cruz da Menina, Grilo, Matão, Pedra d’Água, Sítio Matias e Areia de Verão. Isso não implica que as famílias plantem somente nas áreas de quintais e/ou terreiro, também arrendam terra e/ou estabelecem outras relações com os proprietários para desenvolver as culturas de autoconsumo como já destacamos.

A decisão sobre o que será plantado não é uma deliberação tomada pelo chefe da família na figura do homem, pois o que será cultivado está diretamente ligado às necessidades alimentares da família, uma vez que dificilmente sobra um excedente para ser vendido. As famílias nas comunidades quilombolas na Paraíba não sobrevivem somente do trabalho na agricultura, são diversas as estratégias acionadas que permitem as famílias continuar e/ou preservar um modo de vida característico, que está diretamente ligado ao território.

Assim, Casa e roçado, privado e público ou espaços improdutivo e produtivo são esferas intricadas e que funcionam de forma dialética. Não conseguimos compreender a divisão sexual do trabalho nestas comunidades a partir dessas separações, sem relativizá-las. Esse modelo de divisão sexual do trabalho nos ajuda a entender a dinâmica da efetivação das tarefas quando pensamos a hierarquia social do campesinato, mas não podemos tomar essas separações e/ou dualidades sem levar em consideração a realidade estudada, a própria dinâmica das famílias e/ou acordos estabelecidos entre os seus membros, com as negociações travadas internamente e as relações de poder imbricadas.

Concordamos com Cunha (1993, p.262) quando destaca que sem uma análise interior a respeito da forma de organização da família camponesa podemos conjecturar ou cair numa “armadilha tradicional” na qual a divisão do trabalho familiar camponês é “marcada por uma rígida divisão sexual do trabalho, no qual homens desenvolvem determinadas tarefas, as mulheres outras. Teríamos identificado o mundo do trabalho camponês como próprio aos homens, e a casa e a família como o mundo das mulheres”. Ainda de acordo com Cunha (1991) a divisão sexual do trabalho no modo de vida camponês não está fundamentada numa rigidez e/ou inflexibilidade de papéis segundo o estudo que realizou:

[...] a divisão do trabalho entre homens e mulheres que compõem as unidades domésticas camponesas, não é rígida e depende de vários

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fatores. Da composição do grupo familiar, considerando-se o sexo, a idade dos seus membros; da condição econômica da família; do tamanho da terra que possui; do acesso ao crédito e à modernização agrícola, entre outros (p.263).

Ir à feira fazer compras para abastecer a casa, ir ao banco pagar as contas e/ou realizar outras atividades, que estão fora do espaço da comunidade ou da casa, que poderia ser entendido como o espaço do público ocupado preferencialmente pelos homens é também uma esfera de circulação feminina. Ir ao banco para as mulheres quilombolas se tornou algo presente no seu cotidiano, isso por que agora recebem a Bolsa Família, recebem a aposentadoria como agricultora. Há também homens que desempenham as tarefas consideradas femininas, o que não é uma regra, se configura numa exceção, quando a mãe, a filha ou algum parente do sexo feminino não pode realizar. Todavia, é evidente que as mulheres são responsáveis pelas tarefas consideradas eminentemente femininas e que existe uma subordinação e uma desigualdade na efetuação dessas tarefas.

Ocupar espaços que antes eram somente masculinos não exime as mulheres da obrigação dos afazeres da casa responsáveis pela manutenção e/ou reprodução da família, mesmo quando trabalham fora da comunidade, ou quando estão ocupadas com o artesanato ou com as inúmeras atividades assumidas, que permitem a sobrevivência da família. Não importa quanto ocupada esteja às tarefas da casa são sempre e impreterivelmente obrigações da mulher, que não pode deixar de realizar sob o risco de comprometer o bom funcionamento da dinâmica familiar. Ocasionalmente quando as mulheres se ausentam da casa por algum motivo, o marido e/ou filhos podem assumir algumas tarefas, mas essa situação não é permanente é algo ocasional e provisório.

As mulheres impreterivelmente são responsáveis pelas tarefas que envolvem o cuidado com a manutenção e funcionamento da casa, entendido como a construção física. As atividades relacionadas com o terreiro da casa, normalmente são realizadas por toda a família, bem como o roçado, que muitas vezes pode ser plantado sem a intensa partipação do pai de família, que trabalha na cidade, por exemplo. Queremos deixar claro, que os espaços como a Casa e o roçado podem ser ocupados por ambos, homens e mulheres dependendo das necessidades da família, mas há esferas como a casa, por exemplo, no qual as tarefas são desempenhadas em sua maioria pelas mulheres, salvo algumas exceções quando o homem se responsabiliza por determinadas atividades. Há casos, que em função dos acordos estabelecidos entre o casal, o homem efetua determinados afazeres considerados de responsabilidade feminina. Ou dito de

138 outra forma não podemos entender as diferentes esferas já mencionadas a partir de uma divisão rígida no qual um representa um espaço feminino, enquanto o outro seria um espaço ocupado somente pelo homem. Mas, entendemos que há atividades que são desempenhadas em sua maioria pelas mulheres, em virtude de uma divisão sexual do trabalho.

Quando nos referimos a casa, a maioria das mulheres são responsáveis por tarefas como: a) cuidar dos filhos; b) limpar e arrumar a casa; c) preparar as refeições; d) lavar a louça e roupas; e) estender a roupa no varal; f) cuidar de familiares doentes/idosos; g) ajudar nas tarefas da escola dos filhos. Aliado a essas tarefas nas comunidades onde não há água encanada ou cisternas, são normalmente as mulheres e os filhos que carregam a água dos rios, barreiros e poços para abastecer a casa. São afazeres realizados pelos membros femininos da família, que esporadicamente, contam com a participação dos homens da casa que assumem algumas tarefas e há casos em que dependendo da negociação entre o casal o homem pode realizar determinadas tarefas em caráter permanente como já mencionamos.

Há afazeres que são assumidos pelo grau de escolaridade da mulher ou do homem como ensinar os filhos as tarefas da escola. Os homens em sua maioria ficam responsáveis pela manutenção e reparos da casa, mas as mulheres também se responsabilizam por essas tarefas em conjunto com os filhos (as) e maridos, ou em alguns casos são elas sozinhas que assumem essas atividades quando exercem a profissão de pedreiras.

O terreiro da casa onde são criados os animais, onde está plantada a horta, onde está o pomar, onde dependendo da comunidade, também é realizado o roçado é um espaço no qual a complexidade da divisão do trabalho entre os sexos está posta. Em comparação a casa, os homens estão mais presentes na realização das tarefas do terreiro como: a) cuidar da criação; b) limpar o mato do terreiro; c) limpar o pomar que circunda a casa; d) fazer os reparos na cerca e/ou faxina. Entretanto, as mulheres também estão presentes neste espaço com mesma intensidade da casa.

Com relação à criação observamos que os animais de grande porte como o gado geralmente são de responsabilidade masculina, enquanto galinhas, bodes, cabras, porcos são animais que normalmente ficam sob o cuidado das mulheres como já destacamos. Todavia encontrarmos casos em que homens cuidam das galinhas e as mulheres do gado. Assim não podemos afirmar com propriedade se o terreiro da casa seria um espaço por excelência masculino ou feminino em função da complexidade e até do

139 caráter volátil das tarefas realizadas necessária a manutenção e preservação desse espaço.

Podemos afirmar que as tarefas consideradas pesadas e que, portanto exigem maior força física como limpar o mato do terreiro e/ou podar uma árvore são atividades desempenhados pelos homens. Por outro lado, varrer o terreiro, cuidar da horta, das plantas medicinais geralmente são de responsabilidade das mulheres, que também detém o conhecimento da utilização dessas plantas. Assim, se podar uma árvore e limpar o terreiro com enchada é considerado pesado, por outro lado carregar latas e baldes pesados de água na cabeça para abastecer a casa, trabalho geralmente realizado pelas mulheres, não é considerado trabalho e nem muito menos pesado.

Quando pensamos o roçado que pode estar tanto localizado no terreiro como distante dele, verificamos a participação masculina maior nessa esfera, se considerar em ordem de atuação crescente casa, terreiro e roçado. A manutenção dos equipamentos utilizados no roçado é em sua maioria de responsabilidade masculina, enquanto as mulheres participam muito mais de atividades como semear, plantar e colher, os homens geralmente desempenham tarefas como cavar, limpar e roçar. Assim, no roçado, da mesma forma que nos terreiros, para as mulheres são reservadas tarefas tradicionais consideradas femininas e aos homens atividades consideradas de maior força física.

Verificamos que o lugar ocupado pelas mulheres pode ser invertido de acordo com valor social atribuído ao resultado do trabalho despendido. Situação que podemos constatar na Comunidade Quilombola do Senhor do Bonfim. Verificamos que nesta comunidade, os homens que foram obrigados a trabalhar para a dona da terra em troca da permanência da família na propriedade, responsabilizavam-se geralmente pelo plantio e manutenção da cana-de-açúcar utilizada na fabricação da rapadura e da aguardente, trabalho que era pago. Já as mulheres desempenhavam as atividades relacionadas à agricultura de autoconsumo, plantava o milho, a macaxeira, a fava, destinados à alimentação da família nos pequenos roçados dentro da propriedade, além do trabalho doméstico que realizavam na casa grande onde residia a proprietária. Os afazeres realizados na casa grande pelas mulheres não eram pagos, só o trabalho realizado pelos homens era considerado trabalho e, portanto pago.

Com a desintrusão do território da comunidade realizado em 2007 e a retirada do proprietário legal da terra, os homens passaram a trabalhar na produção de alimentos nos roçados familiares e o excedente começou a ser comercializado. As famílias passaram a obter uma renda desse excedente vendido e o processo mudou para as mãos

140 e o controle masculino. Os homens então começaram a ocupar um espaço que antes era somente das mulheres. Elas não saíram do roçado, mais deixaram de trabalhar nele com a intensidade de outrora. Essa mudança também fez com que as mulheres passassem a se responsabilizar mais pelo trabalho da casa e do terreiro, que já realizavam. O valor social do trabalho realizado foi transformado e houve, portanto uma permuta. O trabalho que gera uma renda e é importante para a reprodução da família e que tem um valor social maior é agora de domínio masculino que está à frente desde o processo produtivo até a comercialização da produção.

É importante ressaltar que, da mesma forma que nas outras comunidades camponesas pesquisadas, não podemos entender no caso da Comunidade Senhor do Bonfim o roçado como um espaço produtivo e a casa e o terreiro como um espaço improdutivo. Uma vez que a galinha criada no terreiro é para consumo, mas também é comercializada. As frutas do pomar, que geralmente ficam no terreiro são destinadas ao consumo da família, mas o excedente é comercializado. São esferas que funcionam de forma intricada. Não podemos relegar a cada um uma função única e rígida, uma vez que a Casa pode ser um espaço improdutivo, mas também é uma esfera produtiva.

As mulheres quilombolas na Paraíba estão presentes nos espaços como a casa, o terreiro, o roçado e se responsabilizam pelas tarefas que são realizadas fora da comunidade como: a) levar as crianças na escola; b) ir a cidade pagar contas; c) levar parentes ao médico; d) fazer feira/compras. Na Comunidade Quilombola de Ipiranga são as mulheres em sua maioria que se responsabiliza por essas tarefas, que se pensamos nas divisões mencionadas no texto seriam próprias do espaço público e, portanto, do domínio masculino.

Podemos afirmar que as mulheres são impreterivelmente as responsáveis pelas tarefas realizadas no âmbito da casa e dividem o trabalho do terreiro e do roçado com os filhos e marido. Os homens, por outro lado, só ocasionalmente assumem alguma tarefa da casa e em raras exceções desempenham uma ou dois afazeres de forma permanente na casa. No terreiro e roçado assumem as atividades consideradas de maior força física, como já assinalamos, mas isso não quer dizer que as mulheres também não assumam tais afazeres. A carga de trabalho das mulheres é bem intensa se considerarmos que participam de todos os espaços considerados nesse texto. Não deixam de trabalhar na casa, no terreiro e no roçado mesmo quando trabalham fora da comunidade.

No próximo capítulo apresentamos uma discussão sobre a negação do direito a terra das mulheres camponesas e como essa relação de desigualdade se reflete nas

141 comunidades quilombolas em questão. Interessa-nos saber quais as formas de acesso à terra das mulheres quilombolas e qual é o principal mecanismo de exclusão dessas mulheres do direito a terra. A quem a terra pertence ou quem é o responsável por ela nas comunidades quilombolas pesquisadas? É essa uma das questões que pretendemos responder no Capitulo IV.

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