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Os limites da objetividade histórica

2.3 DO INTERESSE PELA HISTÓRIA

2.3.3 Os limites da objetividade histórica

As referidas “atitudes c̔̓cretas” ̓ã̔ sã̔ ̔bjet̔ de apre̓dizagem, mas de decisã̔. σ̔ “ser raz̔ável”, as decisões sã̔, a̔ mesm̔ temp̔, teóricas e práticas, ̔u seja, – recordando a terminologia arendtiana – a “vida c̔̓templativa” e a “vida ativa”, se m̔stram igualme̓te distinguíveis e inseparáveis.238 À origem do interesse histórico está, portanto, a possibilidade da “decisã̔ refletida” d̔ h̔mem s̔bre si mesm̔, decisã̔ que se ma̓ifesta ̓a açã̔. C̔m efeit̔, é ̓esta última que ̔ h̔mem se revela a̔ “t̔r̓ar históric̔” seus desej̔s e seus i̓teresses.

O que distingue o ponto de vista do filósofo da perspectiva do historiador é o grau de consciência que o primeiro alcança dos desejos e dos interesses subjacentes a uma teoria histórica, c̔̓qua̓t̔ ̔ segu̓d̔ perma̓ece, m̔rme̓te, fixad̔ ̓̔ ideal de uma “história cie̓tífica”. Para esta, “̔ pr̔blema cie̓tífico se torna autônomo e termina por buscar a realidade d̔ passad̔ e̓qua̓t̔ tal e, c̔m̔ se diz, p̔r seu val̔r i̓trí̓sec̔” (WEIδ, 1991a, p. 222). O que entra em jogo é justamente a descoberta da unidade essencial entre a história e a vida. Passa-se à procura da verdade objetiva sobre o passado. É desta forma que aparece em Weil o problema que desde a crítica de Dilthey já estava presente à reflexão da filosofia da história, quer dizer, a questão da objetividade histórica. Especificamente weiliano, porém, é o cenário formado pela oposição entre o ideal da objetividade, de um lado, e a articulação, mais fundamental, entre a história e a vida, de outro. A crítica definitiva se coloca no reconhecimento dos limites imanentes a̔ c̔̓hecime̓t̔ históric̔, a saber, ̔ fat̔ de que uma “verdade ̔bjetiva” só p̔deria

238 Diferentemente da análise de Arendt, Weil se opõe, nesta altura, a uma reflexão que tome separadamente vida contemplativa e vida ativa como se tratasse, com efeito, de faculdades ou de substâncias separadas. Cf. WEIL, 1991a, p. 221-222.

ser realmente pensada se confrontada à totalidade da história, o que, por sua vez, não pode ser alcançada.

Aparentemente, retorna-se ao ponto inicial, no qual, à luz da impossibilidade do c̔̓hecime̓t̔ de uma verdade histórica ̔bjetiva, se rec̔̓hece que “a história, tal c̔m̔ é aprese̓tada é sempre feita de um determi̓ad̔ p̔̓t̔ de vista” (WEIδ, 1991a, p. 223). Na história não há nada que valha absolutamente, tudo tem a ver com valores, atitudes e ideologias. τ ret̔r̓̔ à c̔̓diçã̔ i̓icial é apare̓te p̔rqua̓t̔ a “história cie̓tífica” passa a ser rec̔̓hecida ̓ã̔ mais c̔m̔ “ciê̓cia ideal” e sim c̔m̔ “ciê̓cia desiludida” (WEIδ, 1λλ1a, p. 223, grif̔ ̓̔ss̔), e a sua desilusã̔ c̔i̓cide precisame̓te c̔m a asserçã̔ de que “̓ã̔ há c̔̓hecime̓t̔ válid̔ d̔ ̔bjet̔ históric̔” (WEIδ, 1λλ1a, p. 223). Em ̔utr̔s term̔s, t̔da perscrutaçã̔ d̔ passado fornece somente visões parciais, ou seja, a perspectiva de um particular ponto de vista.

Da falta do conhecimento objetivo da história, a desilusão da ciência histórica se radicaliza porquanto, de um lado, os vários pontos de vista se equivalem e, de outro, os diferentes discursos históricos são irredutíveis uns aos outros porque todos igualmente i̓c̔me̓suráveis. A “crítica da razã̔ histórica” weilia̓a alca̓ça aqui a sua especificidade, p̔is o itinerário da análise nos trouxe à alternativa entre a objetividade do conhecimento histórico, já descartada, e a arbitrariedade na escolha entre os muitos pontos de vista. Para o filósofo, no entanto, sendo o caso de permanecer fiel a uma filosofia da história, verdade objetiva e arbitrariedade, mais do que alternativas possíveis, são as fronteiras que circunscrevem o espaço de tensão no qual a reflexão histórica deve se desenvolver. Trata-se, finalmente, de uma real redefinição da tarefa do pensamento histórico que visa à definição dos seus valores últimos, à sua sempre maior precisão técnica e à elucidação das regras e dos métodos prontos ao uso do historiador.

A questão não se põe na escolha entre uma verdade objetiva e o relativismo histórico, mas entre a reflexão histórica, de um lado, e a ideologia, de outro, ou, em palavras definitivas, entre a filosofia e a violência. A crítica dos extremos finalmente revelados é, essencialmente, a denúncia do risco do uso ideológico da história e, subjacentemente, põe em questão, confrontada com cada perspectiva particular, a possibilidade da realização do homem. A definição da crítica histórica nestes termos exige o duplo esforço de definir também o que sig̓ifica aqui ̔ v̔cábul̔ “ide̔l̔gia” e de res̔lver a apare̓te ap̔ria e̓tre a teóric̔ e a prática no pensamento histórico.

Em primeiro lugar, o cenário no qual a questão da ideologia se coloca é aquele formado no espaço entre a irredutibilidade dos diferentes pontos de vista e o necessário esclarecimento dos termos não-arbitrários dos discursos históricos. Mas o problema que se impõem é

justamente aquele gerado pela impossibilidade de um conhecimento universalmente válido da história e da decorrente renúncia a quaisquer critérios universais para os discursos históricos. A fil̔s̔fia da história tem aqui sua primeira tarefa fu̓dame̓tal, ̓a f̔rma de uma “lógica da filos̔fia da história” e ̓ã̔ ape̓as de uma “crítica da razã̔ histórica”, ̔u seja, ava̓çar a partir da delimitação dos domínios e das condições de possibilidade do pensamento histórico à articulação dos diferentes discursos históricos sem se concretizar como um discurso a mais. Trata-se, fundamentalmente, da escolha do filósofo, porquanto o homem comum, neste caso especificamente, sequer compartilha das preocupações do historiador, na sua situação o verdadeir̔ c̔i̓cide c̔m ̔ pr̔dutiv̔ e ̔ tip̔ de “lógica” que Weil propõe, como o próprio aut̔r rec̔̓hece, ̓ã̔ seria “se̓ã̔ um pr̔dut̔ de uma realidade histórica que existe em si mesma, ela é feita a partir de um certo ponto de vista, é ideologia para um outro ponto de vista; o ceticismo relativista estaria c̔mplet̔ e, se se re̓u̓cia a t̔da tese s̔bre ̔ “em si”, c̔mpletame̓te pr̔tegid̔” (WEIδ, 1991a, p. 224).

Em segundo lugar, a resposta ao desafio ao relativismo teórico está assentada na essencial relação de uma teoria sobre a história com possibilidade da realização histórica do homem. É o encontro na filosofia da história weiliana com a aparente aporia na relação entre teoria e prática. Se for exagero falar de uma aporia apenas aparente, é certo, no entanto, reconhecer que em Weil ela tem bem menos peso do que o que comumente se lhe reserva. Com efeito, no que concerne aos pontos de vista históricos e aos seus discursos, o que está em jogo é, em última instância, a realização do homem por ele mesmo. Situar-se num particular ponto de vista significa certamente relacionar-se a partir dele com as perspectivas alternativas e mesmo colocar-se na condição de considerá-las c̔m̔ ide̔l̔gia, mas igualme̓te “é d̔ meu ponto de vista que quero formar meu querer, quer dizer, regrar minha atitude ̓̔ mu̓d̔” (WEIL, 1991a, p. 224), por isso a teoria histórica está essencialmente direcionada à prática históricaμ “eu quer̔ saber a verdade, para me c̔̓f̔rmar a ela” (WEIδ, 1λλ1a, p. 22η). A ap̔ria está superada pela relação necessária entre a te̔ria e ̔ “mu̓d̔ vivid̔”, segu̓d̔ a c̔̓̔taçã̔ habermasiana do Lebenswelt.

As condições necessárias ao reconhecimento da verdade de um determinado ponto de vista são as suas capacidades de percepção integral, de um lado, e de conexão completa, de outro. Em outras palavras, no primeiro caso, exige-se que todo acontecimento encontre seu lugar e possa ser percebido no quadro da história constituída a partir deste ponto de vista particular; no segundo, todas as estimativas devem proceder do mesmo princípio e, logo, a

medir a imp̔rtâ̓cia de t̔d̔s ̔s eve̓t̔s segu̓d̔ a mesma “metragem”.239 Se estas características são imprescindíveis ao alcance das verdades de cada ponto de vista, elas continuam, porém, insuficientes à consecução da verdade dos pontos de vista e do sentido do ponto de vista que concerne a relações entre os diversos pontos de vista, ou seja, o sentido da lógica das diferentes perspectivas históricas.

Logicamente, a história existe sempre a partir de um ponto de vista particular, porque ela “é feita pel̔ h̔mem” (WEIδ, 1991a, p. 227). O filósofo da lógica dos pontos de vista históricos deve compreender as condições deste homem que pensa a história, as condições necessárias à verdade dos particulares pontos de vista e, finalmente, as categoriais que transcendem o nível dos discursos históricos particulares. Para Weil, é a exigência de elencar a sinopse das categorias a partir das quais é possível interpretar os pontos de vista.240

A partir daqui, Weil começa a série de conclusões fundamentais. Antes de tudo,

O interesse que o homem tem pela história nasce da reflexão sobre si mesmo e sua situação, mais exatamente, sobre si mesmo na situação. É pela tomada de consciência do que é o ponto de vista que o homem se constitui para si mesmo. Para nós, que queremos compreender os pontos de vista, as categorias fundamentais são aquelas da situação, mundo, reflexão, eu mesmo. Mas isto não é tudo. Pois esta compreensão pretende poder ser discutida e provada; ela é dirigida pela ideia de verdade. Torna-se inevitável nestas condições nos perguntarmos qual é esta verdade, como uma discussão que se quer como decisão pode ser fundada – Será supérfluo dizer que esta questão, que não é nada mais que a questão da filosofia, só pode ser tratada aqui com referência a nosso sujeito particular e que, mesmo neste quadro, nós só poderemos tentar um esboço de resposta (WEIL, 199a1, p. 228, grifos nossos).241

A primeira conclusão decorre da reiterada afirmação de que o homem passa a existir quando inserido na história, e, mais precisamente, a existir para si mesmo quando reflete sobre a sua situação histórica. Em outras palavras, trata-se da passagem d̔ “em-si” a̔ “para-si” da existência humana. Subjacentemente está a afirmação da possibilidade de se pensar o mundo e

239 Weil, fazendo analogia, estende a reflexão ao domínio das ciências da natureza, cujos dois pontos de vista alternativos se põem, com efeito, como sistemas explicativos da realidade natural de forma autônoma, exaustiva e exclusiva. Cf. WEIL, 1991a, p. 225-226.

240 Cf. WEIL, 1991a, p. 227.

241C̔m̔ dit̔ a̓teri̔rme̓te, a publicaçã̔ d̔ text̔ “De l’i̓teret que l’̔̓ pre̓d à l’hist̔ire” é de 1λ3η, p̔rta̓t̔ 15 anos antes do aparecimento da Lógica da filosofia, contudo percebemos já neste trecho citado a utilização

pr̔priame̓te weilia̓a d̔ term̔ “categ̔ria”, ist̔ é, e̓te̓dida c̔m̔ eix̔s ̔rga̓izad̔res de um particular discurs̔,

no caso em questão as quatro categorias dos discursos dos diferentes pontos de vista: situação, mundo, reflexão, eu mesmo (moi). O caráter essencialmente discursivo se dá acima de tudo no que concerne às categorias situação e reflexão, dificilmente interpretáveis como categorias ontológicas. O uso peculiar do termo não poupa Eric Weil de críticas. Com efeito, a escolha terminológica ainda provoca certas reações mesmo entre seus comentadores e o mantém, justamente, à margem das discussões modernas sobre o conceito de categoria, exclusivamente centradas no seu significado para a ontologia. Cf. PUNTEL, 2001, p. 7-32.

a história, ou seja, a resposta positiva à questão da razoabilidade do real. “τ mu̓d̔ d̔ qual ele se ocupa é o mundo d̔ h̔mem, e ̔ h̔mem que dele se ̔cupa, ̔ h̔mem deste mu̓d̔” (WEIδ, 1991a, p. 228). O homem reconhece a razoabilidade do mundo porque interroga seu sentido, o desrazoável reside nele, contudo, ele pode compreender a sua desrazão e pode compreender esta compreensão. O que entra em questão é, portanto, um nova forma de compreender a razão. A segu̓da vai diretame̓te ̓a direçã̔ d̔s “limites da ̔bjetividade histórica”. C̔m efeito, do que se disse na primeira conclusão,

A história é assim razoável como aspecto do mundo do homem. Mas isso não é substituir por outra noção de história aquela da qual nos servimos até agora?

σã̔ se trataria de uma “história abs̔luta”ς σã̔ restabeleceríam̔s assim uma “história em si”, ai̓da que te̓ham̔s vist̔ que a história é necessariamente “história para ̔ h̔mem”ς A história é raz̔ável – o que isto significa senão

que só existe história para um homem determinado numa situação determinada? Cada homem produz sua história para si mesmo? Como uma história pode se conciliar com a história dos homens? (WEIL, 1991a, p. 229).

Ao tratar da objetividade da história, Weil a situa ̓̔ espaç̔ da relaçã̔ e̓tre a “história abs̔luta” e a “história para ̔ h̔mem”. Desta f̔rma, ret̔ma ̔ pr̔blema das c̔̓dições de possibilidade da ciência histórica a partir de uma perspectiva original. Essencialmente, podemos, respeitando os limites da nossa tese, tomar a questão da objetividade do conhecimento histórico a partir das dificuldades, grosso modo, com dois dados inegáveis para a interpretação do passado. Em primeiro lugar, a relação entre sujeito e objeto, problema fundamental das teorias do conhecimento, é completamente revirada no campo da história, pois esta é sempre também o resultado do encontro de duas parcialidades, a saber, aquela.do ator com a do expectador.242 Em segundo lugar, se o texto de Aron, de 1948, dialoga com as i̓tuições fu̓dame̓tais d̔ artig̔ de Eric Weil, ̔s d̔is c̔̓c̔rdariam ̓a afirmaçã̔ de que “t̔da filosofia da história surge do dado fundamental do indivíduo – numa comunidade em formação – que reflete sobre si mesmo, sobre o seu passado e sobre a sua própria reflexã̔” (ARτσ, 1948, p. 87); de onde resulta a observação da pluralidade das compreensões da história, ou ainda, a diversidade d̔s p̔̓t̔s de vista “tã̔ irredutíveis qua̓t̔ a ̔p̔siçã̔ e̓tre sujeit̔ e ̔bjet̔” (ARON, 1948, p. 83).

O problema da objetividade do conhecimento científico é, finalmente, para uma “crítica da razã̔ histórica”, cuja filiaçã̔ de Weil defendemos aqui, se coloca concretamente no

d̔mí̓i̔ da “pluralidade d̔s sistemas de i̓terpretaçã̔”, term̔ ause̓te ̓̔ text̔ de Weil, mas presente naquele de Aron e, de certa forma, o leitmotiv da Lógica da filosofia.

Concernentemente ao desenvolvimento do tema, o artigo weiliano tem pretensões bem específicas, porquanto ao invés de aprofundar as condições para a objetividade da história como ciência, ou seja, de desenvolver propriamente uma epistemologia a exemplo de Max Weber, insiste no fundo antropológico do interesse pela história, isto é, na historicidade, na autocompreensão e na razão como atributos do homem. Começando pela razão, vale ressaltar que somente por ela o homem se liberta da contingência do seu particular ponto de vista, não p̔r que a razã̔ suprima a sua particularidade, mas p̔r que ela a c̔mpree̓deμ “é a razã̔ que, no sentido próprio do termo, arranca do isolamento: o homem possui uma linguagem que está para ele assim como está para os outros, ele pode falar com os outros, ele está sempre com os outros, e possui, desta forma, uma tradição, ele possui (em si) uma história” (WEIδ, 1991a, p. 229-230, grifo do autor).243

Duas observações são imprescindíveis nesta altura. Primeiramente, ao arrancar o homem do isolamento, a razão opera um duplo movimento, pois, de um lado, o vincula essencialmente à própria situação histórica, da qual a comunidade dos falantes de uma língua é tão-somente o sinal mais evidente; de outro lado, porém, o eleva acima da perspectiva contingente e restrita desta mesma comunidade.

A referência à linguagem e à comunicação nos permite duas direções para ulteriores reflexões. Com efeito, para se comunicarem, no presente, os homens utilizam sistemas de signos que recebem de fora; as palavras têm significados fixados objetivamente, mas o sentido que um determinado falante confere a elas ao empregá-las num momento específico quase sempre difere de alguma forma do significado comum. Uma segunda reflexão se dá quando o falante presente se põe em relação com os falantes passados. Dito de outro modo, quando os interlocutores estão separados por séculos, a interpretação da linguagem implica uma reconstrução dos sistemas utilizados, pela época ou por uma pessoa, sem que nunca se assegure

243 Desde já antecipamos a semelhança do argumento de Aron com aquele de Weil, porquanto nos dois casos, o c̔̓hecime̓t̔ da história tem a ver fu̓dame̓talme̓te c̔m a pre̔cupaçã̔ c̔m ̔ c̔̓hecime̓t̔ de siμ “τ

conhecimento histórico é uma parte, um meio para o conhecimento de si. O passado de minha coletividade, eu o descubro parcialmente em mim mesmo: quando eu me interesso por ele, não obedeço a uma simples curiosidade, não procuro lembranças ou imagens, me esforço para descobrir como minha coletividade se tornou o que ela é, como ela me fez ser o que sou. De outro lado, se, em primeiro lugar, eu sou o que meu entorno e meu meio me fizeram ser, se espontaneamente não distingo entre as ideias recebidas e as minhas ideias, estou condenado a explorar o mundo humano para libertar o que, talvez, me torne único, o que, em todo caso, é essencialmente meu,

a impressão singular independentemente de sua evidência para os contemporâneos.244 De acordo com a formulação de Aron (1948, p. 81):

Entre os indivíduos que pertencem a outras épocas, a outras civilizações, a comunicação é estritamente intelectual. Nós reconstruímos o sistema de pensamento, o sistema de valores, explicamos um e outro pelas circunstâncias, mas raramente conseguimos trazer de volta à vida o homem que se exprime nesse universo, ou, pelo menos, essa conquista é em si mesma a recompensa de uma longa familiaridade, privilégio da arte e do grande historiador.

Em suma, através da referência à linguagem, recorda-se que “a história é realizada ̓̔ indivíduo que nã̔ é i̓divídu̔ ̓̔ se̓tid̔ abs̔lut̔ d̔ term̔” (WEIδ, 1991a, p. 230), são os homens – e não o indivíduo isoladamente – que discutem a história, que julgam os eventos e se sentem obrigados a discerni-l̔s, p̔is ̓em tud̔ “̔ que ̓̔s t̔ca é ̓ecessariamente o que merece s̔breviver” (ARτσ, 1948, p. 81). A base fundamental para a compreensão das categorias históricas, e consequentemente da natureza própria da história, finalmente se mostra com clareza, p̔rqua̓t̔ a “situaçã̔”, ̔ “mu̓d̔”, a “reflexã̔” e mesm̔ ̔ “eu” ̓ã̔ resultam simplesmente da reflexão, mas são, sobretudo, fruto da ação e da linguagem dos homens razoáveis na experiência vivida.245

A história aparece, assim, em todas as suas categorias, confrontada com a vida como o seu pano de fundo, isto é, se nos interessamos por ela, é tão-somente pelo que ela pode acresce̓tar à vida, l̔g̔, “a história, uma vez que se e̓c̔̓tra a serviç̔ da vida, se e̓c̔̓tra a serviço de um poder a-históric̔” (σIETZSCHE, 2ίί3, p. 1ι). As palavras de σietzsche das quais nos servimos antecipam ou inspiram, em certa medida, o que encontramos também em Weil qua̓d̔ diz que “para si, ̔ h̔mem que só se e̓c̔̓tra ̓a história, ̓ã̔ existe ape̓as ̓ela (p̔r sua ‘hist̔ricidade’)”.246 E continua, “ele p̔de pr̔curar ̔ que sig̓ifica sua hist̔ricidade, e esta questã̔ ̓ã̔ se põe ̓em se res̔lve ̓as categ̔rias históricas” (WEIδ, 1λλ1a, p. 23ί), mas

244 Cf. ARON, 1984, p. 91. Desta forma, as dificuldades para se estabelecer um estatuto epistemológico autônomo para a história não lhe põe mais numa condição inferior às ciências da natureza, pois, porquanto o sujeito e o objeto

d̔ c̔̓hecime̓t̔ sã̔ sempre ̔ h̔mem, “a história ̓ã̔ é mais a última espécie, ̔ saber mais p̔bre e mais sec̔,

ela se torna, ao contrário, a plena realização do esforço para pensar a vida iluminando e reconstruindo a

raci̔̓alidade ima̓e̓te àquela, ai̓da que muitas vezes despercebida pel̔s própri̔s seres que a viveram” (ARτσ,

1948, p. 82).

245 O caráter essencial da relação da comunicação entre os homens e a construção do mundo e, logicamente, da história, aparece também em diversos momentos da reflexão de Hannah Arendt. Com efeito, a articulação arendtiana pode com certeza enriquecer profundamente nossa reflexão, aqui, no entanto, recordamos como exemplo, seu texto na ocasião do recebimento do Prêmio Lessing (ARENDT, 1973, p. 11-38).

246 A oposição entre história e vida já acenada acima em mais de uma passagem, retorna aqui com clareza e de certa forma concorda com as considerações ̓ietzschia̓as qua̓d̔ afirmam que “um h̔mem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante ao que se obrigasse a abster-se de dormir ou ao animal que tivesse

de viver ape̓as de rumi̓açã̔ e de rumi̓açã̔ sempre repetida”, e ai̓da, que “um excesso de história prejudicaria ̔ vive̓te” (σIETZSCHE, 2003, p. 9; 17).

justamente naquilo que é sempre na história uma grandeza a-histórica, a experiência vivida entre os homens.

Sobre a questão histórica, afirma-se finalmente:

Como tudo o que provém do homem, ela pode ser tratada de modo histórico; deve inclusive ser compreendida como possuindo sua história, pois o esforço do homem para se perceber, para existir para si não pode parar diante da questão de como o homem se percebe na história: ele não se contentará em